A cardiomiopatia de stress e o enfarte agudo do miocárdio são geralmente considerados diagnósticos mutuamente exclusivos. Neste artigo reportamos o caso de uma doente de 54 anos com um quadro clínico de angor inaugural em repouso, cujo ecocardiograma e ventriculografia eram típicos de cardiomiopatia de stress. Não obstante, a coronariografia revelou uma lesão coronária suboclusiva, verificou‐se elevação muito significativa de troponina e documentou‐se uma cicatriz de enfarte subendocárdico por ressonância magnética cardíaca. Este é um caso raro em que um enfarte agudo do miocárdio e uma cardiomiopatia de stress ocorreram simultaneamente, em que o primeiro poderá ter sido o stressor que despoletou o segundo, dada a ausência de outras causas identificáveis.
Stress cardiomyopathy and myocardial infarction are generally regarded as mutually exclusive diagnoses. We report the case of a 54‐year‐old woman who presented with acute chest pain. Her echocardiogram and ventriculography were typical of stress cardiomyopathy, but she had one subocclusive coronary lesion, a highly significant rise in troponin and a subendocardial myocardial infarction scar documented on cardiac magnetic resonance. This is a rare case of concomitant myocardial infarction and stress cardiomyopathy, in which the acute coronary syndrome itself may have been the stressor, given the absence of other identifiable causes.
A cardiomiopatia de stress é geralmente um diagnóstico de exclusão após afastadas as hipóteses de enfarte agudo do miocárdio, miocardite e feocromocitoma. Reportamos um caso raro em que os dois primeiros ocorreram simultaneamente no mesmo doente, desafiando os critérios de diagnóstico atuais.
Caso clínicoUma doente de 54 anos com antecedentes de dislipidemia e hábitos tabágicos recorreu ao serviço de urgência (SU) por precordialgia opressiva, com irradiação dorsal. A dor teve início súbito em repouso 16 horas antes. Não tinha outros sintomas nem tinha estado sob eventos de stress nesse dia nem no passado recente. À chegada ao SU estava febril (38°C), mas os restantes sinais vitais e exame objetivo eram normais. O eletrocardiograma (ECG) apresentava apenas um padrão rS em DIII e aVF. O primeiro ecocardiograma efetuado no SU revelou dilatação ventricular esquerda com acinesia mesoapical de todas as paredes e hipercinesia de todos os segmentos basais, a condicionar imagem de balonização do ventrículo. A doente foi imediatamente enviada para o laboratório de hemodinâmica e submetida a cateterismo emergente. A ventriculografia revelou os mesmos achados previamente objetivados no ecocardiograma (Figura 1). A coronariografia revelou uma lesão suboclusiva mesodistal da artéria coronária obtusa marginal (Figura 2). Observaram‐se ainda irregularidades na artéria coronária direita.
A doente foi internada no serviço de cardiologia. Na admissão ao serviço verificou‐se resolução espontânea de dor. O internamento decorreu sem intercorrências. O valor máximo de troponina I foi de 42ng/mL. Os níveis séricos de catecolaminas eram normais. Efetuaram‐se ECG seriados ao longo do internamento, que foram sobreponíveis aos da admissão hospitalar. Foram também efetuados ecocardiogramas seriados, tendo‐se verificado regressão progressiva dos achados objetivados na admissão hospitalar, com exceção da persistência de hipocinesia da parede posterior. A apresentação clínica da doente, associada à elevação significativa de troponina I verificada, bem como à persistência de alterações segmentares num único território, levou‐nos a considerar a hipótese de que, para além de uma cardiomiopatia de stress, a doente tivesse também sofrido um enfarte agudo do miocárdio ou miocardite aguda. Procedeu‐se então à realização de ressonância magnética cardíaca (RMC), a qual revelou a presença de realce tardio subendocárdico póstero‐inferior, consistente com uma cicatriz de enfarte do miocárdio no território da artéria coronária circunflexa.
Os diagnósticos de alta foram enfarte agudo do miocárdio e cardiomiopatia de stress. Seis meses após a alta, repetiram‐se as avaliações ecocardiográfica e de RMC, que foram sobreponíveis. A doente permaneceu sempre assintomática.
DiscussãoA cardiomiopatia de stress é uma entidade patológica não inteiramente compreendida. Entre os vários mecanismos fisiopatológicos encontram‐se a toxicidade decorrente de excesso de catecolaminas, disfunção microvascular e espasmo multivaso1. Não existem atualmente critérios definitivamente estabelecidos para o diagnóstico, mas os mais utilizados são os da Mayo Clinic2. Estes critérios requerem a presença de (1) alterações segmentares típicas da síndrome, (2) ausência de doença coronária obstrutiva ou evidência de rutura aguda de placa aterosclerótica, (3) alterações eletrocardiográficas de novo ou elevação modesta de troponina e (4) ausência de feocromocitoma ou miocardite. É comum a existência de um desencadeante (stressor) físico ou emocional, não obstante a sua presença não ser necessária para o diagnóstico.
A RMC é um exame complementar útil para o diagnóstico diferencial. Os doentes com cardiomiopatia de stress tipicamente não exibem realce tardio significativo3. Pelo contrário, existe realce tardio com distribuição tipicamente subendocárdica no enfarte agudo do miocárdio, ou focal ou subepicárdica nas miocardites4.
Neste caso clínico, a elevação muito significativa de troponina, a cicatriz eletrocardiográfica típica, a persistência de hipocinesia restrita a um único território após a resolução das restantes alterações segmentares, a existência realce tardio subendocárdico documentado por RMC e ainda a presença de uma lesão suboclusiva em um único vaso (responsável pela irrigação do território afetado) tornam claro que esta doente sofreu um enfarte agudo do miocárdico. No entanto, esta lesão isquémica aguda não explica a balonização típica transitória que ocorreu nesta doente, achado clássico da cardiomiopatia de stress. Deste modo consideramos que esta doente sofreu um enfarte agudo do miocárdio, tendo desenvolvido concomitantemente uma cardiomiopatia de stress, sendo que o próprio enfarte do miocárdio poderá ter sido o stressor desencadeante.
Apesar de ser conhecido que a cardiomiopatia stress pode ocorrer em doentes com doença coronária obstrutiva, tal é excecionalmente raro, como os próprios autores dos critérios da Mayo Clinic admitem2. Adicionalmente, encontrámos apenas um caso clínico em que uma síndrome coronária aguda e uma cardiomiopatia de stress ocorreram concomitantemente no mesmo doente5.
Mas a raridade não excluiu a possibilidade e, como este caso ilustra, um enfarte agudo do miocárdio pode não excluir uma cardiomiopatia de stress, podendo talvez ser até o seu desencadeante.
Responsabilidades éticasProteção de pessoas e animaisOs autores declaram que para esta investigação não se realizaram experiências em seres humanos e/ou animais.
Confidencialidade dos dadosOs autores declaram que não aparecem dados de pacientes neste artigo.
Direito à privacidade e consentimento escritoOs autores declaram que não aparecem dados de pacientes neste artigo.
Conflito de interessesOs autores declaram não haver conflito de interesses.