Os autores reportam o caso de um doente de 53 anos, com diagnóstico prévio de estenose mitral ligeira, admitido por agravamento do cansaço. O ecocardiograma (Eco) transtorácico, limitado pela janela acústica, mostrava válvula mitral com ecogenicidade aumentada a nível do anel, deficiente observação dos folhetos e área valvular estimada de 1,8cm2 por tempo de hemipressão. No entanto, a identificação de elevados gradientes transmitral médio e ventrículo direito/aurícula direita (atingindo respetivamente 39 e 117mmHg) intrigou os autores. No Eco transesofágico foi observada estrutura hiperecogénica sobre o anel mitral a condicionar obstrução grave (área do orifício efetivo de 0,7cm2), o que levantou a suspeita de anel supramitral. Esta foi confirmada durante a cirurgia. Após a ressecção do anel e implantação de prótese mecânica, verificou‐se uma franca melhoria clínica e normalização do gradiente aurícula esquerda (AE)/ventrículo esquerdo (VE).
O anel supramitral é uma causa invulgar de estenose mitral congénita, caracterizado pela presença de uma membrana fibrosa adjacente à face auricular da válvula mitral. Existem poucos casos reportados na literatura, sendo a maioria descritos em idade pediátrica e em associação a outras anomalias congénitas. O diagnóstico é desafiante, dado que o anel raramente é visualizado nos exames complementares. Uma elevada suspeita clínica e a integração dos vários achados ecocardiográficos são aspetos fundamentais para a sua identificação, permitindo o tratamento adequado com bons resultados a longo prazo.
The authors report the case of a 53‐year‐old man, with a long‐standing history of mild mitral stenosis, admitted for worsening fatigue. Transthoracic echocardiography (limited by poor image quality) showed mitral annular calcification, leaflets that were difficult to visualize and an estimated mitral valve area of 1.8 cm2 by the pressure half‐time method. However, elevated mean transmitral and right ventricle/right atrium gradients were identified (39 and 117 mmHg, respectively). This puzzling discrepancy in the echocardiographic findings prompted investigation by transesophageal echocardiography, which revealed an echogenic structure adjacent to the mitral annulus, causing severe obstruction (effective orifice area 0.7 cm2). The suspicion of supravalvular mitral ring was confirmed during surgery. Following ring resection and mitral valve replacement there was significant improvement in the patient's clinical condition and normalization of the left atrium/left ventricle gradient.
Supravalvular mitral ring is an unusual cause of congenital mitral stenosis, characterized by an abnormal ridge of connective tissue on the atrial side of the mitral valve, which often obstructs mitral valve inflow. Few cases have been reported, most of them in children with concomitant congenital abnormalities. Diagnosis of a supravalvular mitral ring is challenging, since it is very difficult to visualize in most diagnostic tests. It was the combination of clinical and various echocardiographic findings that led us to suspect this very rare condition, enabling appropriate treatment, with excellent long‐term results.
A etiologia reumática continua a ser a causa mais comum de estenose mitral, sobretudo nos países em desenvolvimento1, enquanto a patologia congénita se mantém uma exceção.
O anel supramitral, também denominado de anel supravalvular mitral ou membrana supramitral1, constitui uma das raras formas de estenose mitral congénita. Caracteriza‐se pela presença de um anel de tecido conjuntivo localizado na face auricular da válvula mitral, frequentemente anexo ao anel valvular e/ou folhetos2,3, podendo comportar‐se como uma lesão obstrutiva da AE.
Após o primeiro relato por Fisher, em 19024, e até 2002, menos de 100 casos foram descritos5. A maior série de casos conhecida até à data envolve apenas 25 doentes reunidos ao longo de 20 anos6. Consequentemente, não existem dados acerca da exata incidência ou predileção por género ou raça1–3. Em 90% dos casos a sua presença associa‐se a outras malformações congénitas (nomeadamente no complexo de Shone) e/ou anomalias da válvula mitral1,2. A sua ocorrência isolada é rara, tendo sido descrita pela primeira vez em 1974 por Chung7.
Caso clínicoDoente do sexo masculino, 53 anos, com antecedentes de amaurose bilateral (por glaucoma juvenil), asma intrínseca e suspeita de sarcoidose pulmonar, sob corticoterapia. Previamente seguido em consulta de cardiologia por «sopro desde criança», tendo sido diagnosticada estenose mitral ligeira (baseada numa área valvular de 1,8cm2, calculada por tempo de hemipressão).
Em 2012 foi admitido no serviço de urgência por agravamento da clínica habitual de cansaço e dispneia. Ao exame objetivo apresentava‐se dispneico, com discreta hipoxemia em repouso (pO2 60mmHg); hemodinamicamente estável; auscultação cardíaca rítmica com sopro mesodiastólico rude, audível sobretudo no ápex, com acentuação pré‐sistólica; auscultação pulmonar com fervores na base esquerda e sibilos dispersos; sem sinais de insuficiência cardíaca direita. Dos exames complementares realça‐se: eletrocardiograma em ritmo sinusal, 80bpm, critérios de dilatação biauricular e bloqueio incompleto de ramo direito; analiticamente com elevação dos parâmetros inflamatórios; telerradiografia de tórax com aumento do índice cardiotorácico e retificação do arco médio, engurgitamento hilar bilateral, cefalização da vasculatura e padrão intersticial de tipo reticulo‐micronodular, sobretudo evidente no andar inferior de ambos os campos pulmonares (sobreponível a exames prévios). O doente foi internado no serviço de pneumologia com o diagnóstico de infeção respiratória.
Por persistência do quadro clínico, apesar de antibioterapia instituída, foi realizado estudo complementar com Eco transtorácico. Apesar do exame ser limitado pela má janela acústica, este revelou: VE não dilatado com boa função sistólica global e segmentar; AE ligeiramente dilatada (área em plano apical quatro câmaras 22,8cm2); deficiente visualização dos folhetos da válvula mitral mas com abertura aparentemente conservada (Figura 1); aparente zona de isoconvergência na face auricular do plano do anel mitral, mas de difícil visualização por ecogenicidade aumentada a este nível; fluxo transmitral com gradiente diastólico máximo de 41mmHg e médio de 21mmHg (frequência cardíaca [FC] 104bpm); área valvular de 1,8cm2 calculada por tempo de hemipressão, sem regurgitação mitral associada; gradiente sistólico ventrículo direito (VD)/aurícula direita (AD) de 117mmHg, tendo sido excluída estenose pulmonar (Figura 2); cavidades direitas de tamanho e contratilidade conservadas.
Dada a presença de hipertensão pulmonar grave, realizou‐se angioTC torácica que detetou dilatação do tronco da artéria pulmonar e seus ramos principais e excluiu tromboembolismo pulmonar; foi feita referência a calcificação do anel mitral e válvula aórtica.
Após otimização da terapêutica e consequente melhoria das condições hemodinâmicas, foi repetido o Eco transtorácico (FC 85bpm) verificando‐se redução do gradiente AE/VE médio para 11mmHg e VD/AD para 56mmHg.
Tendo em conta a discrepância entre os achados ecocardiográficos – gradiente transvalvular sugestivo de obstrução grave em válvula com área estimada por tempo de hemipressão superior a 1,5cm2 e abertura aparentemente conservada dos folhetos – foi levantada a hipótese de anel supramitral ou calcificação exuberante do anel mitral.
O Eco transesofágico, exame mal tolerado pelo doente causando taquicardia sinusal (FC 115bpm), confirmou a presença de folhetos valvulares com razoável abertura mas mostrou estrutura hiperecogénica aposta à face auricular do anel mitral, distal à inserção do apêndice auricular esquerdo (Figura 3), gerando gradiente diastólico AE/VE médio muito elevado (39mmHg). A área do orifício efetivo, estimada pelo método de PISA, foi de 0,7cm2, reforçando a hipótese de anel mitral (Figura 4). Não foram identificadas outras anomalias congénitas.
Ecocardiograma transesofágico (plano 121°): morfologia da válvula mitral em diástole (à esquerda) e em sístole (à direita); observam‐se os folhetos posterior (seta A) e anterior (seta B) com boa abertura e destaca‐se a presença de uma estrutura ecogénica a nível da face auricular do anel mitral (seta verde).
Ecocardiograma transesofágico (plano 121°): à esquerda, destaca‐se pequena zona de isoconvergência (mal visualizada em ecocardiograma transtorácico) a sugerir estenose a nível do anel mitral; a área de orifício efetivo estimada pelo método de PISA foi de 0,7cm2; à direita, gradiente transmitral máximo de 54mmHg e médio de 39mmHg.
O estudo hemodinâmico por cateterismo revelou hipertensão pulmonar grave (pressão arterial pulmonar média de 46mmHg), elevada pressão de encravamento capilar pulmonar (PECP – 20mmHg) e gradiente AE (estimado a partir da PECP)/VE de 18mmHg. A coronariografia mostrou ausência de doença coronária.
Perante a presença de obstrução transmitral grave associada a clínica de insuficiência cardíaca e hipertensão pulmonar, o doente foi referenciado para cirurgia cardíaca. A abordagem da válvula mitral foi efetuada através de auriculotomia esquerda, tendo sido visualizada zona calcificada aderente aos folhetos da válvula, compatível com anel supramitral. Realizada resseção do anel; perante a impossibilidade de conservar a válvula, procedeu‐se à sua excisão, preservando o folheto posterior, e à implantação de prótese mecânica.
Cerca de um ano depois, o doente apresenta melhoria da capacidade funcional e da clínica de insuficiência cardíaca (classe NYHA I); o Eco transtorácico revela prótese em posição mitral normofuncionante com gradiente transprotésico médio de 3,5mmHg e gradiente VD/AD de 26mmHg.
DiscussãoO anel supramitral é uma entidade invulgar, com poucos casos descritos até à data5, estando habitualmente associado a outras anomalias congénitas e sendo frequentemente diagnosticado em idade pediátrica. Este caso clínico torna‐se, assim, peculiar pelo facto de ter sido identificado um anel supramitral isolado na idade adulta – esta combinação ainda mais rara foi reportada pela primeira vez em 20088.
No nosso caso, a ausência de outras lesões congénitas, a limitação da janela ecocardiográfica e a presença de patologia pulmonar crónica concomitante (que justificava a clínica apresentada) poderão ter levado a um atraso no diagnóstico. Apesar de ser uma patologia congénita, é sabido que a turbulência do fluxo pode provocar aumento gradual da rigidez e/ou dimensões da membrana, causando por isso uma obstrução progressivamente mais grave ao longo de anos, tornando o início da sintomatologia mais tardia3.
O diagnóstico de anel supramitral constitui um desafio. Apesar de existir uma grande variabilidade na composição do anel e na sua relação com a válvula mitral, este apresenta‐se habitualmente como uma fina membrana com espessura inferior a 1mm, aderente ao folheto anterior da válvula mitral2,3; pelo que, como seria expectável, a sua visualização acarreta algumas limitações técnicas7.
O Eco transtorácico permite o diagnóstico em menos de 50% dos casos7. Num estudo conduzido por Sullivan et al., o anel foi visualizado em apenas 45% dos doentes; nessa série, uma análise retrospetiva dos ecocardiogramas após a cirurgia permitiu a deteção da anomalia em 91% dos pacientes, mas tal exigiu uma visualização muito detalhada imagem‐a‐imagem, o que é clinicamente impraticável5. Porém, mesmo não permitindo a visualização do anel, o Eco transtorácico é um exame essencial que levanta a suspeita diagnóstica4. No caso aqui relatado, foi a discordância dos vários parâmetros ecocardiográficos – fluxo turbulento a condicionar gradiente transmitral muito elevado em válvula mitral morfologicamente normal – que chamou a atenção dos autores para a necessidade de estudo adicional.
O Eco transesofágico assume‐se como o melhor exame complementar para a deteção do anel supramitral2,4, podendo permitir a sua visualização e definir pontos de ancoragem, competência da válvula nativa e diagnósticos diferenciais5.
A angiografia cardíaca, utilizada como método de diagnóstico numa era com menos acesso a exames não invasivos9, não constitui atualmente uma mais‐valia no esclarecimento diagnóstico4,5. A ressonância magnética cardíaca nunca permitiu a identificação do anel supramitral nos casos em que foi utilizada2.
No caso clínico relatado, e tal como ocorreu na maioria dos casos já reportados, a confirmação diagnóstica foi apenas obtida durante a cirurgia, apesar de o Eco transesofágico ter já permitido o reconhecimento de uma estrutura anómala adjacente ao anel mitral. No futuro, o Eco tridimensional poderá tornar‐se um exame interessante na avaliação destes doentes, contudo, ainda existe pouca referência à sua utilização na literatura10.
Na avaliação de um doente com suspeita de anel supramitral impõe‐se a realização do diagnóstico diferencial com uma patologia mais comum – o cor triatriatum. Este resulta de uma falha no desenvolvimento embriológico da veia pulmonar esquerda4, levando à divisão da AE em duas cavidades, por uma membrana de tecido fibromuscular, que se localiza proximal à inserção do apêndice auricular esquerdo e por isso afastada da válvula mitral. Já o anel supramitral, resultante da divisão incompleta dos cochins de tecido endocárdico11, insere‐se distalmente ao apêndice auricular esquerdo, sendo esta a principal característica que diferencia estes dois diagnósticos5.
Quanto ao tratamento, a primeira correção cirúrgica de um anel supramitral foi descrita por Lynch et al., em 1962, num estudo envolvendo 14 doentes7. Mais recentemente, em 2006, Collison et al. confirmaram os excelentes resultados a longo prazo4. A reparação cirúrgica da válvula mitral nem sempre é possível, dada a presença de aderências e contiguidade com o folheto anterior, podendo ser necessária, para além da excisão do anel, também a substituição valvular10 com implantação de prótese, como ocorreu no caso apresentado. Os fatores que determinam resultados menos favoráveis são a aderência da membrana à válvula mitral, anomalia do aparelho subvalvular, existência de outras anomalias congénitas e presença de hipertensão pulmonar5,6.
Ao contrário de outras formas de estenose mitral, em que a valvulotomia por balão é uma alternativa aceitável, na estenose supravalvular a cirurgia parece ser o único tratamento possível7. Num estudo conduzido por Spevak et al., envolvendo nove crianças com estenose mitral congénita submetidas a angioplastia por balão, os resultados menos favoráveis foram obtidos nas estenoses não puramente valvulares12.
O seguimento destes doentes é fundamental, dado o risco de recorrência do anel. Esta foi descrita pela primeira vez por Tulloh et al., num estudo que envolveu 23 crianças submetidas a cirurgia de ressecção de estenoses mitrais supravalvulares. Em quatro crianças foi reportada a recorrência da estenose, após dois a nove anos13. Apesar de o período de seguimento do doente apresentado ser ainda de um ano, o resultado final é para já satisfatório, com franca melhoria clínica e com correção da obstrução e redução significativa do gradiente VD/AD.
ConclusõesEste caso pretende destacar uma entidade rara, cuja forma ideal de diagnóstico e tratamento ainda estão por elucidar. Uma elevada suspeita clínica é necessária quando se realiza o Eco transtorácico e é recomendada a realização do Eco transesofágico sempre que obtidos elevados gradientes transmitrais. A excisão do anel, e assim a correção da obstrução, permite obter resultados gratificantes a longo prazo.
Responsabilidades éticasProteção de pessoas e animaisOs autores declaram que para esta investigação não se realizaram experiências em seres humanos e/ou animais.
Confidencialidade dos dadosOs autores declaram que não aparecem dados de pacientes neste artigo.
Direito à privacidade e consentimento escritoOs autores declaram que não aparecem dados de pacientes neste artigo.
Conflito de interessesOs autores declaram não haver conflito de interesses.