O pseudoaneurisma do ventrículo esquerdo é uma complicação rara do enfarte agudo do miocárdio, associada a elevada mortalidade. No entanto, pode manifestar‐se de modo inespecífico, dificultando e atrasando o seu diagnóstico.
Os autores apresentam o caso de um doente de 65 anos, hipertenso, sem outros antecedentes relevantes conhecidos, em que toracalgia, tosse e derrame pleural esquerdo, inicialmente atribuídas a um processo pneumológico, foram as manifestações de um pseudoaneurisma do ventrículo esquerdo, após enfarte agudo do miocárdio silencioso. O diagnóstico foi suspeitado por ecocardiografia, confirmado por ressonância magnética cardíaca e o doente foi submetido a cirurgia de reparação do pseudoaneurisma com sucesso.
Este caso ilustra uma forma de apresentação atípica de um pseudoaneurisma do ventrículo esquerdo, em que as manifestações resultaram da extensão pericárdico‐pleural do processo inflamatório associada à rotura miocárdica contida. O caso demonstra a necessidade de suspeitar o diagnóstico e o valor dos vários exames de imagem para a confirmação do mesmo, de modo a possibilitar a terapêutica cirúrgica adequada e assim modificar o curso da doença.
Left ventricular pseudoaneurysm is a rare complication of acute myocardial infarction, associated with high mortality. However, it can present in a non‐specific manner, complicating and delaying the diagnosis.
The authors present the case of a 65‐year‐old patient, hypertensive, with no other known relevant medical history, who presented with chest pain, cough and left pleural effusion, initially attributed to a pulmonary process. However, these were in fact the result of a left ventricular pseudoaneurysm following silent acute myocardial infarction. The diagnosis was suspected on echocardiography and confirmed by cardiac magnetic resonance imaging, and the patient underwent successful surgical pseudoaneurysm repair.
This case illustrates an atypical presentation of a left ventricular pseudoaneurysm, in which the manifestations resulted from pericardial and pleural extension of the inflammatory process associated with contained myocardial rupture. The case demonstrates the need for a high index of suspicion, and the value of imaging techniques to confirm it, in order to proceed with appropriate surgical treatment, and thus modify the course of the disease.
O pseudoaneurisma ventricular esquerdo é uma complicação mecânica rara do enfarte agudo do miocárdio, resultante de rotura miocárdica contida pelo pericárdio adjacente. Está associada a elevada mortalidade, contudo, pode desenvolver‐se em doentes sem eventos clínicos prévios identificados, e manifestar‐se de forma insidiosa e inespecífica. Uma vez que a reparação cirúrgica pode modificar o curso da doença, o seu diagnóstico assume elevada relevância clínica1,2.
Caso clínicoOs autores apresentam o caso de um homem de 65 anos, hipertenso, que foi admitido no serviço de urgência por dor torácica esquerda, pleurítica e tosse sem expetoração, com agravamento progressivo nos três meses anteriores. Encontrava‐se febril, taquicárdico, polipneico, com diminuição do murmúrio vesicular no terço inferior do hemitórax esquerdo, sem estase pulmonar, sem alterações na auscultação cardíaca e sem edemas periféricos. Apresentava leucocitose 11000/ul, PCR 10,50mg/dl e troponina <0,02μg/ml. A radiografia de tórax mostrou hipotransparência do terço inferior esquerdo, levando à hipótese de pneumonia com derrame pleural associado. Esta hipótese foi corroborada pela TC de tórax que revelou derrame pleural esquerdo com espessamento e hipercaptação dos folhetos pleurais, sugerindo processo inflamatório, associada a atelectasia ou possível condensação do parênquima pulmonar adjacente. A toracocentese efetuada revelou líquido compatível com exsudado, no entanto, o exame cultural foi negativo. Toda a restante investigação microbiológica foi também negativa, incluindo hemoculturas, cultura de expetoração, de lavado broncoalveolar e de biópsia pulmonar transbrônquica. Apesar de múltiplos esquemas antibióticos instituídos, incluindo tuberculostáticos, o doente mantinha febre e parâmetros inflamatórios elevados.
Este doente apresentava, desde a admissão, eletrocardiograma com onda Q patológica e onda T negativa em III e aVF, sugerindo cicatriz inferior. O ecocardiograma transtorácico mostrou deformação da parede inferior, com expansão em sístole, aparente perda de espessura da parede, associado a derrame pericárdico ligeiro, sugerindo pseudoaneurisma versus aneurisma verdadeiro (Figura 1).
Ecocardiograma transtorácico sugestivo de pseudoaneurisma da parede inferior (seta). Em apical duas câmaras visualização de aneurisma da parede inferior com redução da espessura da parede e Doppler‐cor sugerindo fluxo ventrículo‐aneurisma (A e B); imagem do pseudoaneurisma em corte transversal‐paraestenal curto‐eixo no plano basal (C) e em janela subcostal (D); derrame pericárdico ligeiro (*).
O doente realizou ressonância magnética cardíaca que evidenciou derrame pericárdico de pequeno volume, sem repercussão hemodinâmica, com ganho de intensidade de sinal do espaço pericárdico nas sequências de perfusão, material trombótico parietal nas sequências de realce precoce e tardio e realce tardio pericárdico. Estes achados confirmaram o diagnóstico de pseudoaneurisma dos segmentos médio e basal da parede inferior, parcialmente preenchido por trombo (Figura 2).
Ressonância magnética cardíaca. Sequências SSFP em longo‐eixo de 2 cavidades (A) e curto‐eixo (B) do ventrículo esquerdo, revelando pseudoaneurisma da parede inferior (ponta de seta), derrame pericárdico de pequeno volume; imagens de realce precoce com evidência de trombo (*), preenchendo parcialmente o pseudoaneurisma (C,D); realce tardio transmural envolvendo segmentos basal e médio do septo inferior e segmento médio da parede lateral; no segmento basal inferior, a parede do VE é constituída por trombo (*), cicatriz de enfarte (seta) e pericárdio (ponta de seta), sendo notória a presença de realce tardio sobre os folhetos pericárdicos, confirmando tratar‐se de pseudoaneurisma (E, F).
A coronariografia revelou lesão de 80% da artéria circunflexa proximal e oclusão do segmento médio da coronária direita.
O doente foi operado tendo‐se encontrado um psuedoaneurisma com parede espessa e fibrosa no colo, muito extenso e com trombos, expandindo‐se para a parede inferior e esquerda do pericárdio. Realizou a reparação do pseudoaneurisma pelo procedimento de dor modificado (exclusão do pseudoaneurisma e colocação de patch de Dacron) e bypass aorto‐coronário com veia para a primeira obtusa marginal, sem complicações (Figura 3). Intraoperatoriamente verificou‐se que o patch ficou um pouco acima do colo que era muito largo. A evolução subsequente foi favorável, com remissão da toracalgia, da febre, dos parâmetros inflamatórios e do derrame pleural. O ecocardiograma de controlo mostrou aneurisma remanescente na parede inferior, com continuidade dos vários componentes da parede ventricular (Figura 4).
O pseudoaneurisma ventricular esquerdo resulta de rotura miocárdica, em que o processo hemorrágico é contido pelo pericárdio, impedindo o desenvolvimento de tamponamento cardíaco. A periferia do hematoma organiza‐se em tecido fibroso aderente ao pericárdio adjacente, resultando numa estrutura sacular, sem tecido muscular, contendo trombos organizados e em comunicação com a cavidade ventricular1‐3.
O enfarte agudo do miocárdio transmural é a causa mais comum de pseudoaneurisma do ventrículo esquerdo (55%). Menos frequentemente os pseudoaneurismas ocorrem como complicação de cirurgia cardíaca (33%), após trauma torácico (7%), em consequência de endocardite (5%) e, raramente, após pericardite supurativa ou infiltração tumoral1,4.
Os pseudoaneurismas localizam‐se mais frequentemente na parede inferior e posterior, em consequência da oclusão da artéria coronária direita ou circunflexa. De modo distinto, os aneurismas verdadeiros localizam‐se em 80‐90% dos casos no ápex ou parede ântero‐lateral, em consequência de oclusão da descendente anterior4.
A técnica cirúrgica para reparação é idêntica para a maioria dos aneurismas e pseudoaneurismas, quando indicada pelas suas dimensões e/ou complicações. Contudo, os primeiros apresentam tecido muscular na sua parede, tornando a probabilidade de rotura extremamente baixa, contrariamente ao que acontece com os pseudoaneurismas. Deste modo, o diagnóstico diferencial com o aneurisma verdadeiro é muito relevante, embora nem sempre seja fácil5.
O risco de morte súbita por rotura do pseudoaneurisma é de 30‐45%. É provável que parte significativa dos doentes que desenvolvem pseudoaneurisma não tenha o diagnóstico na fase aguda, em razão da sua rotura precoce e fatal2.
A maioria dos diagnósticos é realizada na fase crónica, podendo evoluir por muitos anos sem rotura. Os doentes com pseudoaneurisma do ventrículo esquerdo podem ser completamente assintomáticos (cerca de 10%). Podem apresentar manifestações de insuficiência cardíaca devido à disfunção sistólica ventricular esquerda determinada pelo volumoso pseudoaneurisma e também por insuficiência mitral decorrente de disfunção do músculo papilar posterior e/ou da alteração morfológica do ventrículo esquerdo causado pelo pseudoaneurisma2,4. A dor torácica pode surgir em consequência de isquemia miocárdia pós‐enfarte ou por inflamação pericárdica decorrente da rotura, como parece ter ocorrido no presente caso. O pseudoaneurisma pode também manifestar‐se com arritmias e embolia sistémica do material trombótico contido no pseudoaneurisma4.
O diagnóstico clínico nem sempre é fácil. As manifestações clinicas e o exame objetivo tendem a ser inespecíficos. O eletrocardiograma e a radiografia de tórax podem ser também pouco informativos, dificultando o diagnóstico6,7.
Neste caso, as queixas de toracalgia associada a tosse e febre, num doente sem antecedentes revelantes, não fez suspeitar do diagnóstico. E o derrame pleural esquerdo, de características exsudativas, embora um aspeto frequentemente referido em vários casos de pseudoaneurisma da literatura, levou a que a investigação diagnóstica se afastasse da hipótese correta8. No entanto, foram as alterações eletrocardiográficas que conduziram à suspeição de um processo cardiogénico e os exames de imagem foram cruciais na confirmação diagnóstica de pseudoaneurisma.
A ecocardiografia com ou sem contraste, a tomografia computadorizada, a ressonância magnética e a ventriculografia podem definir o diagnóstico, diferenciando‐o do aneurisma verdadeiro3.
O ecocardiograma constitui o método de primeira linha que permite identificar a dilatação aneurismática, suspeitar da descontinuidade do endocárdio ventricular, identificar a presença de um orifício relativamente estreito entre as cavidades ventricular e aneurismática, através do qual se pode identificar fluxo sistólico e diastólico. Apesar de detetar anormalidades em até 90% dos pacientes, permite o diagnóstico definitivo em apenas 25‐33% dos casos9.
Recentemente tem sido referida a utilidade da ressonância magnética cardíaca na caracterização do pseudoaneurisma e identificação das diversas estruturas adjacentes, nomeadamente pericárdio, trombos e a descontinuidade do miocárdio, fazendo o diagnóstico diferencial com aneurisma verdadeiro6. Particularmente útil destaca‐se a avaliação de perfusão quando na presença de derrame pericárdico associado, o qual apresenta aumento da intensidade do sinal, compatível com comunicação com a cavidade ventricular. Além deste aspeto, tal como tem sido referido na literatura e como se verificou neste caso, a presença de realce tardio sobre o pericárdio adjacente, podendo relacionar‐se com a reação tecidular do mesmo à presença de componentes do sangue, pode ser um elemento apoiando o diagnóstico de rotura contida10.
Apesar de a ventriculografia ter sido considerada o método de eleição para o diagnóstico desta complicação, atualmente tem vindo a ser reconhecida a vantagem dos métodos diagnósticos imagiológicos como a ecocardiografia e a ressonância magnética, por serem não invasivos, não requererem utilização de contraste nefrotóxico, nem exposição a radiação X2,7.
Por essa razão, neste caso, após confirmação diagnóstica por ressonância magnética, no momento de realização da coronariografia, dispensou‐se a realização de ventriculografia.
O risco de rotura fatal do pseudoaneurisma na fase aguda do enfarte agudo do miocárdio é muito elevado (50%), pelo que o tratamento cirúrgico está sempre indicado, ainda que associado a elevada mortalidade (23‐28%)1,4.
Para os casos crónicos a opção terapêutica não é consensual. Tem sido considerado que mesmo os pseudoaneurismas com longo tempo de duração têm indicação cirúrgica, uma vez que o risco de rotura e morte tende a aumentar com o passar do tempo, e o pseudoaneurisma acarreta ainda risco de embolização trombótica cerebral (10% num ano)1,2. Contudo, estudos com pequenas séries de doentes têm mostrado que a probabilidade de sobreviver é de 90% após um ano e de 75% aos quatro anos, e que o risco de morte súbita se relaciona com a gravidade da insuficiência cardíaca, o grau de disfunção ventricular esquerda e a extensão da doença coronária subjacente. O risco de rotura é também mais elevado nos primeiros meses após o enfarte e nos casos em que se verifica rápida expansão11,12. De acordo com esta opinião, o tratamento cirúrgico fica reservado para os doentes sintomáticos, com diagnóstico recente (<3 meses), com pseudoaneurismas volumosos (>3cm) ou de aumento progressivo4.
No presente caso, o doente apresentava um pseudoaneurisma com tempo de evolução indeterminado e que condicionava sintomatologia significativa, com cerca de três meses de evolução, essencialmente relacionada com a inflamação pericárdica e com a extensão pleural do processo inflamatório com derrame significativo, tendo‐se optado por realizar a cirurgia de reparação do pseudoaneurisma, com carácter de urgência.
ConclusãoA dor torácica pleurítica, a tosse, os sinais de um processo inflamatório em curso, levaram a marcha diagnóstica a focar‐se erradamente em processos pneumológicos, admitindo‐se, por fim, que estes aspetos não fossem mais que a extensão pericárdico‐pleural da inflamação associada à rotura.
A apresentação clínica com sinais e sintomas escassos e inespecíficos é também descrita noutros casos da literatura, reforçando a necessidade de manter elevada suspeita clínica. Os métodos de imagem são cruciais para estabelecer o diagnóstico e a sua informação deve ser integrada de modo a proceder à intervenção cirúrgica adequada e atempadamente.
Responsabilidades éticasProteção de pessoas e animaisOs autores declaram que para esta investigação não se realizaram experiências em seres humanos e/ou animais.
Confidencialidade dos dadosOs autores declaram que não aparecem dados de pacientes neste artigo.
Direito à privacidade e consentimento escritoOs autores declaram que não aparecem dados de pacientes neste artigo.
Conflito de interessesOs autores declaram não haver conflito de interesses.