A pré‐eclâmpsia (PE) é uma síndroma clínica específica da gravidez, cujo diagnóstico se baseia no aparecimento de hipertensão (TA>=140/90mm Hg) e proteinúria (>300mg/24h) após as 20 semanas de gestação ou, excecionalmente, imediatamente após o parto. A PE ocorre em 4‐8% das gestações e constitui a principal causa de morbimortalidade perinatal. A PE pode ser considerada uma doença sistémica com acentuado componente inflamatório, antiangiogénico e de produção aumentada de autoanticorpos1–3. A redução da irrigação sanguínea da placenta é a base da PE. Sem placenta (ou restos placentários) não há PE, mas pode haver PE sem feto, como ocorre na PE que complica a mola hidatiforme. Tem sido genericamente aceite (para revisão ver4) que na PE a isquemia placentária é o achado central da doença que resulta de alterações do processo fisiológico de invasão da camada interna da parede uterina pelo trofoblasto extra viloso, ao que se associa um desequilíbrio imunológico, com aumento da proporção entre células T CD4/células T reguladoras. Este desequilíbrio gera, entre outras perturbações, um processo inflamatório crónico, caracterizado por libertação de citocinas pró‐inflamatórias e de auto‐anticorpos, bem como desenvolvimento de stress oxidativo e disfunção endotelial. O processo pró‐inflamatório e antiangiogénico perpetua a isquemia placentária, que facilita a formação e libertação de material sincicial e radicais livres de oxigénio. Estes, na ausência de capacidade tecidular antioxidante adequada, irão agravar o ciclo pró‐inflamatório e de lesão tecidular, bem como gerar inoportuna ativação dos leucócitos, agregação plaquetária e vasoconstrição, levando à agressão sistémica de vários tecidos maternos. Alguns autores5 verificaram que as mulheres com PE exibem, desde as 16 semanas de gestação, níveis mais elevados do malonildialdeido e da peroxidase do glutatião, uma diminuição da superóxido dismutase, bem como uma menor expressão placentária do glutatião e da peroxidase do glutatião, o que representa e significa a presença de um aumento do stress oxidativo. Embora o stress oxidativo pareça estar invariavelmente presente na deterioração homeostática, na disfunção endotelial, na produção placentária de fatores antiangiogénicos (p. ex.: sFlt‐1)6 e na fisiopatologia da PE, permanece a dúvida se constitui uma causa, um epifenómeno ou uma consequência da deterioração nosológica presente. No primeiro caso, seria defensável considerar os radicais livres de oxigénio como um vilão e, consequentemente, um potencial alvo terapêutico, justificando a procura de intervenções capazes da sua neutralização. É nesta perspetiva que se situa o interessante trabalho de Menezes de Oliveira et al., publicado na RPC7. Os autores partem da convicção de que o stress oxidativo assume um papel determinante na etiopatogenia da PE, pelo que uma alimentação deficitária em nutrientes antioxidantes seria um fator de suscetibilidade e de agravamento a doença, suscetível de ser corrigido. Ou seja, acreditam os autores que a suplementação alimentar desses nutrientes poderia constituir um fator protetor neutralizante desse excesso de radicais livres de oxigénio. Assim, os autores pretenderam avaliar a ingestão e o coeficiente de variabilidade de nutrientes antioxidantes, em 90 mulheres com PE e em 90 mulheres sem PE, através de dois questionários alimentares com posteriores ajustes das calorias e dos nutrientes, bem como através de um questionário validado de frequência de consumo alimentar de nutrientes antioxidantes. Observou‐se globalmente, nas mulheres com PE e sem PE, um consumo alimentar insuficiente dos antioxidantes: vitaminas A e E, selénio, zinco e cobre, e maior consumo de leite, tomate e ovos, embora a ingestão de vitamina A fosse ainda menor nas PE versus mulheres sem PE. O estudo7 pretende concluir que o consumo de nutrientes antioxidantes pelas gestantes com PE é inadequado, ao que se soma a elevada variabilidade diária na sua ingestão. Porém, em boa verdade, o stress oxidativo preenche somente uma das várias teorias dos mecanismos etiopatogénicos da PE. O facto de existirem biomarcadores de stress oxidativo na PE (oriundos da placenta e/ou presentes no sangue materno) não assegura (somente sugere) um eventual papel etiopatogénico do stress oxidativo na PE. Por outro lado, apesar de algumas tentativas, numa meta‐análise de 15 estudos aleatorizados8 não foi possível demonstrar que a utilização de antioxidantes (na forma de suplementos, medicamentos ou alimentos) fosse capaz de convincentemente prevenir, retardar a PE ou melhorar a morbilidade materno‐fetal que lhe está associada. Ou seja, as provas que corroboraram a teoria, de que é possível corrigir um eventual stress oxidativo na PE com medicamentos ou alimentos, são, de momento, débeis ou mesmo ausentes. Há até trabalhos9 que sugerem um efeito inconveniente da suplementação com vitaminas C e E na PE. Contudo, o facto de o tratamento antioxidante falhar não exclui definitivamente a possível participação na doença do stress oxidativo. No estudo presente, há outra dúvida pendente que não é totalmente esclarecida, i.e., se o deficit alimentar em nutrientes antioxidantes é específico das mulheres com PE ou, pelo contrário, é generalizado a todas as mulheres com baixo nível socioeconómico da região onde o estudo foi efetuado, ou seja, não representando assim uma característica alimentar específica das mulheres com PE. De facto, foram observadas em ambos os grupos de gestantes, com e sem PE, baixas médias de consumo de antioxidantes (vitamina A, selénio, zinco e cobre) e elevados coeficientes de variabilidade no consumo destes nutrientes, apesar do maior consumo de vitamina A e selénio nas mulheres sem PE. Ou seja, as diferenças do consumo de antioxidantes das doentes com PE, relativamente à população sem PE, são efetivamente ténues. É pena que não haja referência alguma aos dados antropométricos das doentes estudadas (p. ex. IMC, pressão arterial), ao tempo de gestação, à semana gestacional de diagnóstico da PE, aos antecedentes obstétricos, etc. Para além disso, teria sido de grande valor saber quais os desfechos materno‐infantis perinatais (pressão arterial, albuminúria, edemas, convulsões, tempo de gestação, prematuridade, taxas de cesariana, morbilidade perinatal de mãe e filhos, etc.), em função de diferentes teores ingeridos dos vários nutrientes antioxidantes. É verdade que a suplementação de L‐arginina (precursor do NO) por via alimentar parece poder prevenir a PE em gravidezes de alto risco10 (por provável reversão da disfunção endotelial), mas tal obviamente não prova que esta proeza tenha decorrido de efeitos antioxidantes. Em resumo, vários dados apontam para a presença de manifestações de stress oxidativo na PE. Pelo menos experimentalmente, existe um corpo de doutrina que relaciona o stress oxidativo aumentado na PE e a demonstrada baixa capacidade antioxidante do trofoblasto com inflamação, apoptose, disfunção endotelial, fatores antiangiogénicos, etc., mas a verdade é que, pelo menos até hoje, os instrumentos antioxidantes disponíveis não conseguiram produzir benefícios nos vários estádios de desenvolvimento da PE. De qualquer forma, o risco de complicações materno‐fetais da PE, a sua complexidade fisiopatológica, o fascínio do seu modelo de compreensão e a escassez atual de meios de prevenção e tratamento, justificam e estimulam a prossecução de estudos como o presente, no sentido da abertura de novos caminhos conducentes à sua compreensão e controlo.
Conflito de interessesO autor declara não haver conflito de interesses.