Os autores relatam o caso de uma mulher de 52 anos com síndrome depressiva, medicada com lamotrigina há cerca de cinco meses, que recorre à urgência por dor pré-cordial atípica. Realizou eletrocardiograma (ECG) que revelou supradesnivelamento do segmento ST de 2mm, em rampa descendente, e onda T negativa em V1 e V2. Por suspeita de síndrome coronária aguda com supradesnivelamento de ST, a doente efetuou cateterismo que revelou coronárias normais. O ECG da entrada era sugestivo de padrão de Brugada tipo 1, mas os ECG seriados eram menos típicos, tendo-se realizado o teste de flecainida, onde se objetivou o mesmo padrão.
Com a interrupção da lamotrigina, houve reversão do padrão eletrocardiográfico típico de Brugada.
Apesar de não estar atualmente contraindicada na síndrome de Brugada, a lamotrigina é um antidepressivo que bloqueia canais de sódio, normalmente inativados na membrana das células cardíacas na síndrome de Brugada, podendo ser responsável por manifestação de padrão de Brugada tipo 1.
The authors report the case of a 52-year-old woman with depressive syndrome, treated with lamotrigine for about five months, who went to the emergency department for atypical precordial pain. The electrocardiogram (ECG) revealed a 2-mm downsloping ST-segment elevation and negative T waves in V1 and V2. Due to suspicion of ST-elevation acute coronary syndrome, cardiac catheterization was performed, which revealed normal coronary arteries. The initial ECG was suggestive of type 1 Brugada pattern, but subsequent serial ECGs were less typical. A flecainide test showed the same pattern.
After discontinuation of lamotrigine reversal of the typical Brugada ECG pattern was observed.
Although not currently contraindicated in Brugada syndrome, the antidepressant lamotrigine blocks sodium channels, which are usually inactivated in heart cell membranes in Brugada syndrome, and may be responsible for the expression of type 1 Brugada pattern.
A síndrome de Brugada é uma patologia cardíaca genética, autossómica dominante em metade dos casos, resultante de mais de 70 mutações possíveis, correspondendo a uma mutação de SCN5A em cerca de 20% dos casos. É mais comum em homens jovens e normalmente a patologia resulta da inativação precoce dos canais de sódio da membrana das células cardíacas1,2.
O diagnóstico desta síndrome é feito através de critérios clínicos e eletrocardiográficos. Os doentes apresentam normalmente história de síncopes ou morte súbita, resultado de arritmias malignas como fibrilhação ventricular e taquicardia ventricular. Podem ainda ter antecedentes de morte súbita em familiares jovens1-4. Electrocardiograficamente existem dois tipos de padrão típico, observado nas derivações de V1 a V3: o tipo 1, mais específico, corresponde a elevação do segmento ST com pelo menos 2mm, em rampa lentamente descendente, côncava ou retilínea em relação à linha isoelétrica, com onda T negativa simétrica; o tipo 2 corresponde a onda R’ com pelo menos 2mm de amplitude em relação à linha isoelétrica, seguida de elevação de ST de pelo menos 0,05mV, com onda T positiva em V2 e variável em V11,3.
O padrão de Brugada é por vezes intermitente e pode ser observado em certas situações como febre, intoxicação, estimulação vagal, desequilíbrio eletrolítico, isquemia miocárdica aguda, pericardite, miocardite e alguns fármacos (bloqueadores de canais de sódio). Este padrão, que surge por múltiplas causas e desaparece com a sua correção, é denominado fenocópia de Brugada1.
Caso clínicoOs autores descrevem o caso de uma mulher de 52 anos de idade, com antecedentes de hipertensão arterial, dislipidémia e síndrome depressiva, medicada com lamotrigina 100mg há cerca de cinco meses. Não foram apurados antecedentes familiares relevantes. A doente recorreu ao serviço de urgência por dor pré-cordial atípica (tipo picada e sem irradiação) e à entrada realizou eletrocardiograma (ECG) que mostrou V1 e V2 com supradesnivelamento de 2mm do segmento ST, em rampa descendente, e onda T negativa (Figura 1). Perante esta clínica, numa doente com fatores de risco cardiovascular, o quadro foi interpretado como enfarte agudo do miocárdio e a doente realizou cateterismo que mostrou coronárias normais.
Após exclusão do diagnóstico de enfarte, com necessidade de intervenção urgente, verificou-se que o ECG da entrada era sugestivo de padrão de Brugada tipo 1. Foi excluída história de síncopes e o ecocardiograma era normal. Os ECG seriados eram menos típicos, pelo que foi realizado teste de flecainida. Os elétrodos V1 e V2 foram colocados sucessivamente no quarto, terceiro e segundo espaços intercostais, antes da administração do fármaco inibidor dos canais de sódio, e foram realizados ECG em cada uma das posições. Seguidamente foi administrada a dose de flecainida ajustada ao peso da doente. Foram de novo realizados ECG com V1 e V2 no quarto, terceiro e segundo espaços intercostais sucessivamente. Todos os ECG realizados antes da administração de flecainida (Figura 2, A e B) e os ECG realizados com V1 e V2 no quarto (Figura 2, C) e terceiro espaços intercostais, após administração do fármaco, não mostraram padrão típico de Brugada. No entanto, o ECG realizado após administração de flecainida, com V1 e V2 no segundo espaço intercostal, revelou o padrão de Brugada tipo 1 (Figura 2, D).
ECG realizados no primeiro teste de flecainida com a doente medicada com lamotrigina. A) Derivações V1 e V2 no quarto espaço intercostal, sem administração de flecainida. B) Derivações V1 e V2 no segundo espaço intercostal, sem administração de flecainida. C) Derivações V1 e V2 no quarto espaço intercostal, após a administração de flecainida D) Derivações V1 e V2 no segundo espaço intercostal, após a administração de flecainida, com supradesnivelamento de 2mm do segmento ST em rampa descendente e onda T negativa simétrica – padrão de Brugada tipo 1.
A associação de vários psicofármacos com arritmias malignas na síndrome de Brugada e com fenocópias do padrão tipo 1 de Brugada é já conhecida. A lamotrigina é um psicofármaco inibidor de canais de sódio, tal como os fármacos antiarrítmicos da classe I como a flecainida. Neste contexto foi colocada a hipótese da lamotrigina ter despoletado o padrão e o fármaco foi retirado.
Cerca de duas semanas depois da retirada deste antidepressivo a doente voltou a ser observada, mantendo-se na altura assintomática e já medicada com topiramato 25mg. Realizou novo teste de flecainida, usando o mesmo protocolo, e não foi obtido padrão de Brugada tipo 1 em nenhum dos ECG, inclusive com V1 e V2 no segundo espaço intercostal após administração da flecainida (Figura 3).
DiscussãoVários psicofármacos como lítio, amitriptilina, nortriptilina, oxcarbazepina e clomipramina estão contraindicados em doentes com síndrome de Brugada por se associarem a arritmias malignas, com síncope ou morte súbita5. Os antiarrítmicos de classe I, como a flecainida, propafenona, procainamida, ajmalina e pilsicadina, inibindo o início do potencial de ação da célula cardíaca através do bloqueio dos canais de sódio, estão igualmente contraindicados na síndrome de Brugada pelo mesmo motivo5,6. A lamotrigina não está contraindicada nestes indivíduos, no entanto, atua também através de bloqueio de canais de sódio voltagem dependentes, no córtex cerebral, de forma a inibir a libertação de neurotransmissores5,7. Assim, é uma potencial causadora do padrão de Brugada tipo 1.
Em alguns casos o padrão só é evidente em derivações pré-cordiais mais altas (V1 e V2 no segundo ou terceiro espaços intercostais). Isto acontece porque a atividade elétrica anormal está limitada à zona do trato de saída do ventrículo direito. Este é o princípio do teste de flecainida, antiarrítmico de classe I1.
ConclusãoEste caso clínico relata a situação de uma doente com padrão tipo 1 de Brugada no ECG, despoletado pela lamotrigina, que, atualmente, não se encontra entre os fármacos contraindicados na síndrome de Brugada. O fármaco foi retirado pelo potencial risco de arritmias malignas. No entanto, a situação não seria identificada sem o conhecimento do mecanismo de ação do fármaco e da fisiopatologia do padrão de Brugada. O teste de flecainida teve um papel essencial na identificação da situação.
A importância de estar atento a potenciais efeitos secundários dos fármacos e o sentido crítico relativamente às suas ações revelaram-se cruciais no correto diagnóstico clínico desta doente.
Conflito de interessesOs autores declaram não haver conflito de interesses.