A origem anómala das artérias coronárias constitui um importante desafio clínico pela variabilidade anatómica, possíveis repercussões funcionais, mecanismos fisiopatológicos implicados e também pela ausência de grandes séries na literatura que forneçam sólida evidência científica para a sua orientação clínica e terapêutica.
Os autores descrevem o caso de um doente de 55 anos, com antecedentes de hipertensão, dislipidemia e atrofia congénita da perna esquerda, que se apresentou com quadro de dor retroesternal atípica com um ano de evolução. Tendo em conta os fatores de risco cardiovasculares e exames complementares de diagnóstico previamente realizados, considerou-se ser um doente com probabilidade baixa a intermédia de doença coronária. Assim, e pela sua limitação funcional, realizou angioTC cardíaca que revelou uma origem anómala da coronária esquerda na cúspide coronária direita e com trajeto entre a aorta e a artéria pulmonar. Embora esta seja uma variante anatómica com potencial evolução maligna, optou-se por uma atitude conservadora após ponderação do risco-benefício no contexto clínico deste doente.
Anomalous origin of coronary arteries represents a clinical challenge not only because of the anatomical variability, but also the possible functional consequences, pathophysiological mechanisms involved and the absence of large series in the literature that would provide evidence for clinical and therapeutic orientation.
The authors describe the case of a 55-year-old male patient with a long history of atypical chest pain who was considered to have a low to intermediate likelihood of coronary artery disease. Therefore, and also bearing in mind his physical limitations (congenital left leg atrophy), he was referred for cardiac CT to rule out coronary artery disease. The exam showed a left coronary artery arising from the right coronary cusp and with an interarterial course, between the aorta and pulmonary trunk. Although this is a potentially malignant anatomical variant with surgical indication, a conservative approach was chosen, considering the late diagnosis and particular risk-benefit profile.
As anomalias das artérias coronárias constituem a terceira causa de morte súbita em jovens atletas1 e estima-se que possam ser encontradas em 0.3-1% dos indivíduos saudáveis2.
São várias as anomalias coronárias descritas e foram já propostas classificações baseadas no substrato anatómico (anomalias da origem, do trajeto e da terminação) e no prognóstico (anomalias com ou sem significado clínico)2. Considerando este último critério de classificação, verifica-se que a maioria das anomalias não tem significado clínico e como tal não necessitam de nenhuma abordagem terapêutica específica3.
No entanto, fístulas congénitas das artérias coronárias, bridging miocárdico e a origem anómala das coronárias na artéria pulmonar associam-se a uma evolução potencialmente maligna.
Também a emergência de uma artéria coronária a partir do seio coronário contralateral pode associar-se a isquemia miocárdica e morte súbita, quando apresenta um trajeto entre as artérias aorta e pulmonar (interarterial). Os outros trajetos possíveis são considerados benignos: retro-aórtico, pré-pulmonar e subpulmonar ou septal4,5.
A origem anómala da artéria coronária esquerda no seio de Valsava direito é rara, com uma incidência estimada de 0,09 a 0,11% nos doentes que fazem coronariografia6, mas frequentemente associada a morte súbita cardíaca sobretudo durante esforço físico intenso e em adolescentes ou jovens adultos, metade deles previamente assintomáticos7,8.
O trajeto interarterial é observado na maioria destes doentes9 e pensa-se que o mau prognóstico se possa atribuir ao ângulo agudo do ostium, ao estiramento do segmento intramural e/ou à compressão entre a comissura das cúspides coronárias direita e esquerda10.
A angioTC cardíaca é um recente e útil meio complementar de diagnóstico para avaliação das artérias coronárias já que apresenta uma elevada resolução espacial, permitindo uma avaliação tridimensional das artérias coronárias, com melhor definição da origem e porção proximal destes vasos, bem como do seu trajeto e relação com restantes estruturas cardíacas, comparativamente à angiografia convencional11.
A sua crescente utilização aumentou em muito a deteção destes casos, tornando a decisão clínica mais difícil, visto não haver ainda, nem se prevê possível vir a haver, evidência científica suficiente para decidir a melhor estratégia terapêutica em situações dúbias como a descrita neste caso clínico.
Caso clínicoDoente do sexo masculino, 54 anos, avaliado em consulta de Cardiologia por quadro de dor retro-esternal atípica, com cerca de um ano de evolução. Negava outras queixas relevantes do foro cardiovascular, nomeadamente cansaço, dispneia, palpitações ou episódios sincopais.
Apresentava hipertensão arterial e dislipidemia como fatores de risco para doença cardiovascular e uma atrofia congénita da perna esquerda como comorbilidade. Estava medicado com sinvastatina, propanolol, candesartan e AAS.
O eletrocardiograma mostrava ritmo sinusal, com bloqueio incompleto de ramo direito e sem outras alterações significativas. Tinha realizado há cerca de um ano uma cintigrafia de perfusão miocárdica com adenosina, cujo resultado foi negativo para isquemia.
Para esclarecimento do quadro clínico e dado tratar-se de um doente com probabilidade baixa a intermédia de doença coronária e com reduzida capacidade funcional, foi referenciado para a realização de uma angioTC cardíaca, para exclusão de doença coronária. A angioTC cardíaca documentou uma origem anómala da coronária esquerda na cúspide coronária direita, com trajeto entre a aorta e a artéria pulmonar (Figuras 1–3). Não se documentaram placas coronárias e o score de cálcio foi de 0.
Dado o contexto clínico, nomeadamente a idade de 54 anos, ausência de angor típico ou episódios sincopais na história clínica, optou-se por realizar um teste de isquemia. Apesar de se atribuir uma melhor sensibilidade e especificidade aos exames de isquemia de imagem (ecocardiografia de stress com dobutamina, cintigrafia de perfusão miocárdica, ressonância magnética…) optou-se pela realização de uma prova de esforço em tapete rolante na perspetiva de testar a verdadeira capacidade funcional máxima do doente. Para a realização da prova de esforço, foi interrompida a medicação com beta-bloqueante.
Foi possível realizar uma prova máxima (3 minutos e 12 segundos de esforço com protocolo de Bruce), tendo sido atingida a frequência cardíaca máxima prevista, sem queixas de angor ou alterações do segmento ST sugestivas de resposta isquémica. Não foram igualmente desencadeadas arritmias durante a prova. Perante o resultado da prova de esforço, optou-se por manter o doente em vigilância clínica, não tendo sido proposto para cirurgia cardíaca.
DiscussãoEmbora seja um tema ainda controverso, existem algumas orientações que preconizam a cirurgia de revascularização coronária na origem anómala da artéria coronária esquerda no seio de Valsalva direito, quando esta tem um trajeto entre a aorta e a artéria pulmonar, constituindo uma recomendação classe I com nível de evidência B de acordo com as guidelines ACC/AHA referentes ao manejo das cardiopatias congénitas no adulto12.
Quando se trata da coronária direita, está preconizada uma demonstração de isquemia nesse território, para justificar referenciação para correção cirúrgica (recomendação classe i, nível de evidência B).
No entanto, este caso clínico apresenta particularidades: o doente ultrapassou já a faixa etária mais afetada, não apresenta sintomas que possam ser inequivocamente associados à origem anómala da coronária (nomeadamente ausência de angor de esforço típico e de historia de episódios sincopais), e não foi documentada isquemia na prova de esforço (realizada até à limitação da capacidade funcional do doente e tendo sido possível atingir a frequência cardíaca máxima e sem efeito de medicação beta-bloqueante).
Por outro lado, o facto de este doente ter como comorbilidade uma atrofia congénita da perna poderá paradoxalmente ter tido um efeito protetor, uma vez que o impediu de ter atividade física intensa, que poderia desencadear arritmias malignas neste contexto.
Assim, ponderando todos os fatores, considerou-se que a relação risco-benefício era favorável a uma atitude conservadora.
Conflito de interessesOs autores declaram não haver conflito de interesses.