A função de bomba cardíaca é o elemento fundamental da fisiologia do sistema cardiovascular. Os miócitos, são células altamente especializadas, com capacidade para condução de impulsos elétricos e contração mecânica1.
Para que esta função mecânica seja cumprida de forma adequada é necessária a ocorrência de ativação elétrica das células miocárdicas de uma forma sequencial e coordenada.
A importância das arritmias cardíacas advém deste potencial para perturbação da função mecânica dos miócitos, com a consequente redução ou mesmo extinção (como os casos de fibrilhação auricular ou ventricular) do débito cardíaco.
A ocorrência de arritmias pode surgir em contexto de cardiopatia estrutural ou em corações sem aparentes alterações estruturais.
Os mecanismos das arritmias podem ser divididos em alteração da formação de impulso (automatismo e atividade deflagrada) e alteração na condução do impulso (reentrada)2.
No que respeita ao circuito de reentrada, este pode ser determinado por um substrato anatómico ou não ser anatomicamente predefinido, mas sim funcional, ou seja, determinado pelas diferentes propriedade eletrofisiológicas dos tecidos3.
Diversos estudos, conduzidos ao longo das últimas três décadas, estabeleceram que o miocárdio ventricular é eletricamente heterogéneo, sendo composto por pelo menos três camadas de células eletrofisiologica e funcionalmente distintas: células epicárdicas, células M e células endocárdicas4,5.
Nos circuitos que são funcionalmente determinados, a heterogeneidade ou dispersão da repolarização, torna‐se um pré‐requisito importante na ocorrência de bloqueio unidirecional (aspeto essencial na ocorrência de reentrada)3.
Ao longo dos anos, tem‐se tentado identificar elementos do eletrocardiograma de superfície, que possam ser preditores da ocorrência de arritmias, ou seja, a identificação de sinais da presença de substrato arrítmico (que possam ser a origem de circuitos de reentrada) ou dito de outra forma, a identificação de diferenças regionais no tecido cardíaco através de métodos não invasivos.
Um dos elementos que podem ser analisados no eletrocardiograma de superfície é a dispersão do intervalo QT. Esta dispersão é indicadora de diferenças regionais na duração do potencial de ação (recuperação da excitabilidade) e em algumas situações representa risco de arritmias malignas6–8.
Neste número da revista Kasapkara et al9, aplicam a ideia de Antzelevitch10 de que a medida eletrocardiográfica do pico da onda T até ao final da onda T (intervalo T‐peak to T‐end (Tpe)) pode ser utilizado como índice do total da dispersão da repolarização e analisam uma população de doentes com o diagnóstico de sarcoidose mas sem sinais de envolvimento cardíaco. Para além desta análise, empregam também o ratio Tpe/QT e aplicam‐no à mesma população.
Dadas as diferenças encontradas nestes parâmetros entre a população com sarcoidose sem envolvimento cardíaco e a população saudável, há esperança de que esta avaliação possa detetar envolvimento cardíaco em fase ainda subclínica.
Apesar dos autores nomearem a população de sarcoidose como sem sinais de envolvimento cardíaco (sendo comparáveis os valores de fração de ejeção do ventrículo esquerdo entre os grupos saudável e com sarcoidose), observa‐se contudo a presença de hipertrofia miocárdica (septo interventricular, parede posterior e espessura relativa das paredes) no grupo com sarcoidose, o que poderá indicar que na verdade o tecido miocárdico já se encontra envolvido pelo processo patológico.
Não obstante esta diferença com potencial para diminuir o impacto dos resultados, resulta interessante a possibilidade avançada pelos autores, da utilização de ferramentas não invasivas (análise do eletrocardiograma de superfície) na estratificação de risco de doentes com patologia sistémica, com envolvimento cardíaco.
Conflito de interessesO autor declara não haver conflito de interesses.