A hipertensão arterial (HTA) na gravidez complica 6 a 8% das gestações e inclui 4 principais formas de apresentação: HTA crónica, que antecede a gravidez ou é documentada antes das 20 semanas de gestação, pré-eclâmpsia (PE) / eclâmpsia, HTA crónica com PE sobreposta e HTA gestacional. A HTA gestacional define-se como uma elevação significativa da pressão arterial após as 20 semanas de gestação em gestantes previamente normotensas, atingindo valores superiores a 140/90mmHg. Quando os valores de pressão arterial se mantêm acima de 160/110mmHg de forma sustentada, é considerada grave. A pré-eclâmpsia (PE) define-se pela presença de proteinúria (≥ 300mg/24 horas) em gestante com HTA. As síndromes hipertensivas da gravidez encontram-se entre as principais causas de morbimortalidade materno-fetal, sendo que a terapêutica anti-hipertensora faz parte do arsenal terapêutico utilizado na prevenção das suas graves complicações. Apesar do papel da insuficiência útero-placentária por deficiente migração dos trofoblastos para as artérias espiraladas ser universalmente aceite, a fisiopatologia da PE permanece ainda parcialmente uma incógnita e reúne alguma controvérsia. Historicamente, não são conhecidas formas suficientemente eficazes de predição e prevenção da PE, pelo que a investigação nesta área assume particular importância. Esta revisão visa primariamente avaliar os avanços científicos mais recentes nas áreas da fisiopatologia da HTA gestacional e, em particular, da PE e das novas formas de predição desta patologia. Concomitantemente, apresentamos informação sumária recente acerca do diagnóstico, prevenção e tratamento anti-hipertensor na PE.
Hypertension complicates 6-8% of pregnancies and includes the following four conditions: hypertension preceding pregnancy or documented before the 20th week of gestation; pre-eclampsia (PE) / eclampsia; chronic hypertension with superimposed pre-eclampsia; and gestational hypertension. The latter is defined as a significant rise in blood pressure after the 20th week of pregnancy in previously normotensive women, to over 140/90mmHg. When blood pressure remains above 160/110mmHg, it is considered severe. PE is defined as the presence of proteinuria (≥300mg/24h) in pregnant women with hypertension. The hypertensive syndromes of pregnancy are among the leading causes of maternal and fetal morbidity and mortality and anti-hypertensive treatment is part of the therapeutic arsenal used to prevent serious complications. Although the role of utero-placental insufficiency due to deficient migration of trophoblasts to the spiral arteries is universally accepted, the pathophysiology of PE remains largely unknown and is the subject of debate. No effective ways of predicting or preventing PE have been found, which highlights the need for further research in this field. This review aims primarily to evaluate recent advances in our understanding of the pathophysiology of gestational hypertension and especially PE, and new ways of predicting PE. Additionally, we present a brief review on the diagnosis, prevention and treatment of PE.
As síndromes hipertensivas da gravidez são a principal causa de morbimortalidade materno-fetal no mundo desenvolvido1,2, ocorrendo em cerca de 8% das gestantes. Múltiplos trabalhos têm sido desenvolvidos com o propósito de prestar esclarecimentos acerca da apresentação variável e natureza sistémica da pré-eclâmpsia (PE) e outros distúrbios hipertensivos da gravidez3,4. Porém, a literatura disponível até ao momento revela alguma controvérsia relativamente às peculiaridades do tratamento anti-hipertensivo em gestantes de risco, à farmacologia, eficácia e perfil de segurança de alguns dos fármacos disponíveis e sobretudo aos melhores métodos de deteção dos grupos de risco, predição e prevenção de complicações.
Quarenta por cento das gestantes que desenvolvem eclâmpsia não apresentam hipertensão e/ou proteinúria na semana antecedente, reforçando a necessidade do estabelecimento de métodos preventivos5.
As síndromes hipertensivas são também causa de morbimortalidade perinatal, geralmente motivada por restrição do crescimento intrauterino (fruto de insuficiência útero-placentária) e complicações secundárias à prematuridade6. Mesmo a HTA leve se associa a um maior risco de prematuridade e de neonatos pequenos para a idade gestacional7.
Apesar de todo o conhecimento acumulado sobre a sua fisiopatologia, a etiologia da PE persiste ainda insuficientemente esclarecida. A elevação da pressão arterial em casos de PE poderá ser encarada como mecanismo compensatório da diminuição do fluxo sanguíneo materno-fetal8. Diversos estudos têm sugerido uma eventual implicação do gene da síntese do óxido nítrico e do sistema HLA na génese da pré-eclâmpsia, achados que são englobados num amplo espectro de respostas imunológicas maternas ao trofoblasto, com consequente má adaptação placentária, ativação da cascata inflamatória e disfunção endotelial4.
A necessidade da instituição de tratamento na emergência hipertensiva é consensual, porém não é ainda claro qual a melhor droga a utilizar e qual a importância do tratamento anti-hipertensivo de manutenção e do tratamento da HTA não grave, do ponto de vista do binómio materno-fetal.
Objetivos e métodosO objetivo desta revisão consistiu numa avaliação sumária da evidência atual no diagnóstico, fisiopatologia, predição, prevenção e tratamento da HTA na grávida. Foi dado destaque a estudos de investigação mais recentes nesta área, nomeadamente a propósito da fisiopatologia, prevenção e deteção dos grupos de risco e terapêuticas anti-hipertensoras em gestantes com hipertensão grave, analisando a evidência científica disponível acerca da eficácia e segurança dos fármacos disponíveis.
Foram revistas guidelines de atuação na HTA na grávida, com particular relevo para as da Sociedade Canadiana de Obstetrícia e Ginecologia, British Columbia Reproductive Care Program, National Institute for Health and Clinical Excellence (UK) e World Health Organization (WHO). Foram pesquisados os bancos de dados Medline, Pubmed e Biblioteca Cochrane para pesquisa de evidência científica mais recente. Utilizaram-se os seguintes descritores para pesquisa, na língua inglesa: Eclampsia, pre-eclampsia, hypertension/pregnancy, pre-eclampsia/prevention, gestational hypertension, hypertensive disorders of pregnancy. Os conceitos explorados foram o diagnóstico, avaliação, classificação, predição (usando marcadores clínicos ou laboratoriais), prevenção, prognóstico e tratamento.
Diagnóstico e classificaçãoA classificação das síndromas hipertensivas da gravidez baseia-se nas duas manifestações mais comuns da PE: HTA e proteinúria. Assim, a avaliação dos valores tensionais e medição da proteinúria assumem particular importância, sendo exigíveis métodos rigorosos de determinação das mesmas.
De acordo com as recomendações das Sociedades Canadiana e Britânica de HTA, a medição da pressão arterial numa mulher grávida deve respeitar os seguintes aspetos:
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Paciente sentada a 45° e com o braço ao nível da região precordial;
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Utilização de cuff de dimensões apropriadas;
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Utilização de esfigmomanómetro manual. Aparelhos automáticos tendem a subestimar os valores de pressão arterial sistólica e diastólica em 5-15mm Hg. A aplicabilidade deste tipo de aparelhos não foi avaliada em mulheres grávidas com suspeita de PE ou PE confirmada (com exceção de um reduzido número de marcas), pelo que a sua utilização se deveria limitar à simples avaliação da variabilidade tensional em gestantes de baixo risco9,10. Naquelas de elevado risco, a avaliação tensional com esfigmomanómetro de mercúrio é a forma indicada;
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Os Sons de Korotkoff fase v deverão indicar os valores da pressão arterial diastólica11;
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A utilização de métodos de avaliação ambulatória da PA em mulheres grávidas normotensas ou com HTA ligeira não foi, até hoje, alvo de estudos clínicos randomizados e desconhece-se qual o seu impacto, em termos de desfecho materno-fetal12.
A HTA gestacional poderá ser definida pela obtenção de PA sistólica igual ou superior a 140mm Hg e/ou PA diastólica igual ou superior a 90mm Hg, em duas ou mais ocasiões, após a vigésima semana de gestação em mulheres previamente normotensas. As avaliações tensionais usadas para o estabelecimento do diagnóstico deverão distanciar-se um mínimo de 4 a 6 horas e um máximo de 7 dias.
A PA diastólica é uma preditora mais eficaz de eventos adversos na gravidez do que a PA sistólica e o valor previamente referido (90mm Hg) representa o nível acima do qual se verifica elevação da morbilidade perinatal na HTA não proteinúrica13. A HTA grave traduz valores de PA sistólica ≥ 160mmHg ou PA diastólica ≥ 110mmHg, obrigando a repetição da medição 15 minutos, após a primeira avaliação para confirmação dos valores. Estes valores foram selecionados pela evidência do aumento significativo de risco de acidente vascular cerebral em gestantes com valores de PA acima dos mesmos14.
Tal como com a medição da PA, também a avaliação da proteinúria deverá seguir determinadas recomendações.
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Todas as mulheres grávidas deverão ser avaliadas para a possível ocorrência de proteinúria;
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Quando o grau de suspeição de pré-eclâmpsia é baixo, poderá ser usada uma fita-teste. Perante resultado negativo/inconclusivo na avaliação por fita-teste, uma avaliação mais fidedigna (ratio proteína/creatinina na urina de 24 horas) é recomendada quando o grau de suspeição clínica é elevado.
O diagnóstico de proteinúria é sugerido pela presença de 2+ na fita-teste e confirmado pela obtenção de valores superiores a 0,3g/dL, em urina de 24 horas, ou ratio proteína (mg) / creatinina (mmol) superior a 30, em amostra de urina. Importa reter, no entanto, que as complicações de órgão-alvo da PE poderão ocorrer na ausência de proteinúria significativa. Vinte por cento% das gestantes que desenvolvem eclâmpsia apresentam unicamente HTA na semana que antecede a primeira convulsão, 10% apresentam apenas proteinúria e outros 10% não desenvolvem HTA ou proteinúria15.
A Tabela 1 traduz a classificação proposta pela Sociedade Canadiana de Hipertensão e validada pela International Society for the Study of Hypertension in Pregnancy:
Classificação proposta pela Sociedade Canadiana de Hipertensão
Classificação | Definição |
A – HTA pré-existente | HTA diastólica de início prévio ao início da gravidez ou que surge nas primeiras 20 semanas de gestação (pode associar-se a proteinúria). |
- Essencial -----→ | Primária. |
- Secundária -----→ | Secundária a doença renal, feocromocitoma, Cushing. |
B – HTA gestacional | HTA diastólica de início após as 20 semanas de gestação. |
1 - Sem proteinúria -----→ | Excreção proteica em urina de 24 horas inferior a 0,3 g/dL. |
a - Sem complicações | |
b - Com complicações -----→ | Convulsões (eclâmpsia), PA diastólica muito alta (> 110 mm Hg), trombocitopenia, oligúria, edema pulmonar agudo, lesão hepática, náusea grave, cefaleia frontal, distúrbios visuais, dor abdominal persistente no quadrante superior direito, síndrome HELLP, ausência ou reversão do fluxo arterial umbilical telediastólico, oligohidramnios, abruptio placentae, atraso do crescimento fetal intra-uterino. |
2 - Com proteinúria -----→ | Excreção proteica em urina de 24 horas superior a 0.3 g/dL (correspondente à denominação de «pré-eclâmpsia»). |
a - Sem complicações | |
b - Com complicações -----→ | As mesmas de B1b, às quais se acrescentam a ocorrência de proteinúria superior a 3 g/dL em urina de 24 horas, em particular na presença de hipoalbuminemia (albumina < 18 g/L) |
C – HTA pré-existente + sobreposição de HTA gestacional com proteinúria | HTA pré-existente (definida em A) associada a agravamento adicional dos valores de PA e proteinúria > 0,3 g/dL após as 20 semanas de gestação (HTA crónica com pré-eclâmpsia sobreposta). |
D – Não classificável previamente aos 42 dias pós-parto | HTA com ou sem manifestações sistémicas, com o primeiro registo de PA a ser efectuado após as 20 semanas de gestação. Re-avaliação dos valores tensionais é necessária após os 42 dias pós-parto, com re-classificação em HTA gestacional com ou sem proteinúria ou HTA pré-existente, consoante a ausência ou presença de HTA, respectivamente. |
Uma classificação simplificada é proposta pela ICD – International Classification of Diseases (Tabela 2).
Hipertensão arterial na grávida: classificação proposta pela ICD – International Classification of Diseases
O10 | HTA pré-existente complicando gravidez, parto e puerpério |
O11 | HTA pré-existente com proteinúria sobreposta |
O12 | Edema e proteinúria gestacionais sem HTA |
O13 | HTA gestacional sem proteinúria significativa |
O14 | HTA gestacional com proteinúria significativa |
O14.1 | Pré-eclâmpsia grave |
O15 | Eclâmpsia |
O16 | HTA materna não enquadrável nos pontos anteriores |
Apesar de ser causa importante de morbimortalidade materno-fetal, os mecanismos envolvidos na patogénese da hipertensão gestacional não foram ainda totalmente esclarecidos. Estudos desenvolvidos na última década trouxeram novos dados, sugerindo que o evento inicial na HTA gestacional seria a redução da perfusão útero-placentária como resultado da deficiente capacidade de invasão das arteríolas espiraladas pelo citotrofoblasto extravilositário, com consequente redução do afluxo de sangue ao espaço interviloso. A isquemia placentária daí resultante levaria à ativação/disfunção generalizada do endotélio vascular materno, com consequente estímulo à formação de endotelina e tromboxano, maior sensibilidade vascular à angiotensina ii e diminuição da produção de óxido nítrico e prostaciclina. O stress oxidativo e o vasoespasmo sistémico associados à disfunção endotelial complementariam o modelo explicativo da lesão de órgão-alvo16. Um estudo de Gilbert JS et al. corroborou esta teoria, reforçando a associação entre isquemia/hipóxia placentária e a produção de moléculas como o fator de necrose tumoral alfa, autoanticorpos contra o recetor tipo 1da angiotensina ii, interleucina 6 e múltiplas moléculas antiangiogénicas, com consequente disfunção generalizada do endotélio vascular materno, produção de substâncias vasoconstritoras (endotelina, tromboxano e angiotensina ii), espécies reativas de oxigénio (ROS) e diminuição da produção de substâncias vasodilatadoras17. Estas alterações levariam à HTA pelo compromisso da natriurese, elevação da resistência vascular periférica e endoteliose glomerular. Os autores reforçaram a necessidade de novos estudos com vista ao esclarecimento definitivo da conexão entre a isquemia placentária e as alterações cardiovasculares maternas, no sentido de potenciar o desenvolvimento de terapêuticas preventivas eficazes.
Stennet AK et al. acrescentaram novos dados à equação, sugerindo que as citoquinas e ROS libertadas pela placenta alterariam a permeabilidade vascular e atravessariam a barreira hematoencefálica, modulando a atividade do sistema nervoso simpático e os mecanismos neuronais de controlo da PA18. Novos dados foram também lançados por Furuya M et al., que sugeriram que a insuficiente invasão do leito placentário pelos trofoblastos explicaria apenas parcialmente a ocorrência de HTA gestacional, sendo complementada pela: i) secreção aberrante de substâncias pró-inflamatórias para a circulação materna (como a endoglina, a forma solúvel do recetor 1 do fator de crescimento endotelial vascular [VEGF] e o inibidor endógeno da proteína angiogénica VEGF); ii) a lesão direta do endotélio pela pressão de cisalhamento do fluxo útero-placentário; iii) a ocorrência de hipoxia microfocal feto-placentária (de etiologia não esclarecida)19. O modelo de duas fases [deficiente placentação em período gestacional precoce (fase 1), seguida de disfunção endotelial sistémica materna num período mais tardio (fase 2)] seria assim parcialmente questionado, sugerindo os autores que o compromisso da vasculogénese placentária não justificaria, por si só, o espectro clínico da PE.
Um estudo publicado em 2009 no Journal of Experimental Medicine que visava avaliar a possível associação entre a restrição do crescimento intrauterino em gestantes com HTA e os autoanticorpos agonistas dos recetores tipo 1da angiotensina ii sugeriu um efeito deletério direto destes autoanticorpos no desenvolvimento fetal com capacidade de modulação da apoptose de células placentárias e células do trofoblasto20. Shah DM corroborou esta ideia, acrescentando que também a redução dos níveis do fator de crescimento endotelial vascular e dos fatores de crescimento placentários (por via do aumento da forma solúvel da cínase da tirosina tipo 1, proteína antiangiogénica) teriam um papel importante no desenvolvimento da proteinúria e outras manifestações renais da pré-eclâmpsia21.
Um estudo desenvolvido por Wang X. et al. trouxe alguma controvérsia adicional, sugerindo um certo afastamento entre a disfunção endotelial observada na PE e a restrição do crescimento fetal mediada por alterações do fluxo arterial umbilical. De facto, o plasma de gestantes com doença vascular placentária não afetou a expressão endotelial da síntase do óxido nítrico in vitro, o que levou o autor a sugerir que a patologia vascular placentária seria o evento primário e que a redução da circulação útero-placentária seria secundária àquela22. Na sequência destes achados, novos estudos foram efetuados para confirmar esta ideia. Aardema MW et al. colocaram também a possibilidade da existência de outros fatores implicados na fisiopatologia da hipertensão gestacional e PE, para além da deficiente placentação. O seu estudo visava demonstrar que a HTA gestacional e PE, de início precoce e associada a complicações, seria causada por deficiente placentação (dilatação insuficiente das arteríolas espiraladas com subsequente redução da perfusão útero-placentária), contrariamente ao que sucederia na ausência de qualquer tipo de complicação. Foi avaliado o índice de pulsatilidade da artéria uterina (índice de resistência ao fluxo de sangue na circulação útero-placentária) por Doppler, verificando-se que o índice era francamente elevado nas gestantes com PE complicada, sendo normal naquelas com outcome favorável, o que sugeriu que a deficiente placentação se verificaria apenas nos casos com outcome desfavorável, conferindo marcada heterogeneidade à fisiopatologia das síndromas hipertensivas da gravidez23.
Esta última teoria foi definitivamente corroborada por Cross JC, que sugeriu que a PE poderia ser iniciada por, pelo menos, 3 mecanismos independentes: HTA materna pré-existente exacerbada pela gravidez, níveis elevados de angiotensina II na circulação materna por produção exagerada de renina pela placenta (denominado sistema renina-angiotensina placentário) e patologia placentária primária, impedindo este órgão de contribuir para a normal adaptação cardiovascular da gravidez. A identificação de alterações genéticas seria apenas possível após uma correta separação da patologia nos seus diferentes subtipos, consoante o mecanismo etiológico24.
O estudo genético poderá ter um papel importante no futuro, sendo já conhecidas algumas mutações do gene do angiotensinogénio que poderão associar-se a maior predisposição materna para a HTA gestacional19.
Predição do risco de pré-eclâmpsiaUm bom teste de predição do risco de desenvolvimento de PE deveria ser simples, rápido, não invasivo, de baixo custo e de fácil aplicação. Os resultados deveriam ser fidedignos, reprodutíveis, com boa sensibilidade e especificidade. Idealmente, deveria proporcionar uma oportunidade para intervenção terapêutica preventiva precoce.
A capacidade de predição da PE, com razoável margem temporal relativamente ao início dos sintomas, conheceu alguns avanços na última década. Porém, estes avanços não foram significativos, desconhecendo-se atualmente a melhor forma de prever esta complicação gestacional.
Existem vários marcadores de risco para PE, incluindo a história pessoal ou familiar de HTA gestacional ou PE, HTA pré-existente, idade materna avançada na primeira gestação, obesidade materna25, antecedentes de nefropatia e/ou trombofilia (heterozigotia para o fator V de Leiden, síndrome de anticorpo antifosfolipídico, mutações do gene da protrombina)26. Nenhum destes marcadores ou fatores de risco assume valor preditivo positivo suficientemente elevado para poder ser usado de forma isolada.
A investigação realizada nos últimos anos levantou a possibilidade de se conseguir razoável predição do risco de PE, pela avaliação dos valores séricos de determinadas substâncias ou moléculas envolvidas na patogénese desta doença e/ou pela avaliação das características do fluxo da artéria uterina por Doppler.
Um estudo de Boulanger et al. reforçou a necessidade de serem obtidos métodos rápidos e fidedignos de quantificação dos níveis de proteínas antiangiogénicas como as formas solúveis da cínase da tirosina 1 e da endoglina, produzidas em excesso pela placenta na fase que antecede as manifestações clínicas da PE27. Baweja S et al. demonstraram que a quantificação da albumina urinária por cromatografia líquida de alta sensibilidade permitiria a aplicação do ratio albumina: creatinina em amostra de urina de forma significativamente mais fidedigna do que aquela obtida pelo método standard de avaliação da albuminemia. Segundo os autores, um ratio > 35,5mg/mmol conseguiria prever o risco de PE antes do início das manifestações clínicas28.
Múltiplos estudos envolvendo a avaliação por Doppler do fluxo da artéria uterina, concretamente a quantificação de índices de resistência ao fluxo (como o índice de pulsatilidade) e a deteção de notching no espectro obtido por Doppler pulsado, sugeriram que esta poderia ser uma forma eficaz de prever o risco de PE29. Robson SC et al. relataram um maior valor desta técnica no segundo trimestre e uma capacidade adicional (embora de reduzido valor) de predição do risco de restrição de crescimento intrauterino30. Papageorghiou AT et al. complementaram estes achados, referindo que a aplicação do Doppler na avaliação do fluxo uterino poderia detetar as gestantes que beneficiariam da medição sérica de marcadores bioquímicos31. Apesar do entusiasmo associado a estes estudos, foi reforçada a insuficiência da aplicação isolada do estudo Doppler pelo facto de apenas conseguir explicar 40-60% dos casos de PE e 20% dos casos de restrição de crescimento intrauterino32. De qualquer forma, se complementado pela avaliação (no primeiro trimestre) de marcadores séricos envolvidos na fisiopatologia da PE, em particular a proteína placentária 13, fator de crescimento placentário, VEGF e forma solúvel da cínase da tirosina 1, poderia ser possível prever até 90% dos casos de PE grave, com uma taxa de falsa positividade a rondar os 9%33.
Apesar da ausência de estudos randomizados demonstrando benefício da monitorização ambulatória da pressão arterial (MAPA) na predição do risco de PE, alguns autores recomendam a realização seriada deste exame, baseando-se em múltiplos estudos observacionais e estudos de reduzida escala já realizados. Um estudo publicado nos Arquivos Brasileiros de Cardiologia concluiu que alguns dos dados fornecidos pelo MAPA teriam valor preditivo para hipertensão gestacional, nomeadamente a carga pressórica diastólica em vigília, as cargas pressóricas sistólica e diastólica nocturnas, a variabilidade pressórica e a pressão máxima diastólica durante o sono. Em particular, a pressão arterial diastólica máxima no MAPA no período noturno superior a 64mmHg apresentou odds ratio de 6 para hipertensão gestacional com sensibilidade de 80% e especificidade de 60%34.
A Organização Mundial de Saúde iniciou há poucos anos um estudo observacional prospetivo de larga escala para avaliar a potencial utilidade da determinação dos níveis de duas moléculas anti-angiogénicas (formas solúveis da endoglina e cínase da tirosina-1) e uma molécula angiogénica (fator de crescimento placentário) na predição do risco de PE. A possibilidade teórica de eventual reversão do desequilíbrio angiogénico na PE pela adição de fatores angiogénicos exógenos e consequente correção da síndrome da PE é o objetivo final deste tipo de investigação.
Na ausência de um teste capaz de prever isoladamente o risco de PE, modelos multivariados foram elaborados, embora sem particular sucesso até ao momento. Tem sido dado destaque a um modelo desenvolvido recentemente por Peter von Dadelszen et al. e que se encontra atualmente em fase avançada de investigação. O modelo fullPIERS, como é denominado, desenvolvido após estudo prospetivo multicêntrico envolvendo gestantes admitidas em centros terciários por PE ou que desenvolveram PE após a admissão, e apresentado à comunidade científica pela primeira vez em janeiro de 2011, mostrou-se capaz de prever com elevada fidedignidade a ocorrência de outcome desfavorável (mortalidade materna ou outra complicação da PE) nas primeiras 48 horas após a randomização, mantendo capacidade significativa até ao fim dos primeiros 7 dias. Este modelo traz uma nova esperança ao permitir a deteção das gestantes de risco até 7 dias antes da ocorrência de complicações, permitindo dessa forma a aplicação de medidas preventivas e terapêuticas agressivas35. Em breve, poderá conhecer-se o modelo de forma mais detalhada.
Prevenção e tratamentoInvestigação ampla foi dedicada à prevenção da PE, porém as principais recomendações atuais visam primariamente a prevenção das complicações da PE. A hipertensão gestacional não grave pode ter papel adaptativo. Por exemplo, a morbilidade neonatal é inferior e o desenvolvimento neurológico mais favorável em bebés de baixo peso para a idade gestacional, cujas Mães apresentaram HTA ligeira versus na ausência de HTA.
Múltiplos estudos têm avaliado o potencial preventivo de algumas terapêuticas. Foi proposta a utilidade da inibição da fosfodiesterase tipo 5 placentária na reversão da vasoconstrição placentária que está na origem da isquemia/hipoxia da mesma36. O uso de ácido acetilsalicílico (AAS) em baixa dose (75-100mg) é aceite como terapêutica preventiva da PE em gestantes de risco (com HTA gestacional, diabetes mellitus gestacional ou antecedentes de PE)37. A dose de AAS deverá ser individualizada consoante os resultados de testes de avaliação da função plaquetária38. Alguns agentes anti-hipertensores inibem igualmente a ativação plaquetária na HTA essencial, pelo que o seu benefício na HTA gestacional ultrapassa a simples redução da PA.
A suplementação com cálcio é benéfica em casos de baixa ingestão de cálcio e em gestantes de elevado risco de desenvolvimento precoce de complicações. A suplementação com antioxidantes (vitaminas C e E), zinco, melatonina, coenzima Q10, ómega 3 e proteína não mostrou qualquer benefício até ao momento, pelo que o seu uso não é recomendando.
A Tx-HTA não previne a ocorrência de PE ou as complicações associadas a esta, porém reduz em quase 50% a incidência de HTA grave em gestantes com HTA ligeira-moderada. Não pode ser recomendada especificamente para a prevenção da PE até que seja demonstrado que a redução da PA materna não é contrabalançada por um impacto negativo no outcome fetal.
A HTA grave (PA > 160/110mm Hg) deve ser tratada com o intuito de reduzir a morbimortalidade materna. A maioria das gestantes com HTA severa terá PE e quase todas terão apresentado PA normais até um passado recente. Como tal, esta elevação da PA é considerada uma urgência. O Labetalol, a Nifedipina e a Hidralazina são os fármacos recomendados para o tratamento da HTA gestacional grave e cujo objetivo inicial visa atingir valores de PA < 160/110mm Hg (Tabela 3).
Fármacos recomendados para o tratamento da HTA gestacional grave
Agente | Dose | Informação adicional |
Labetalol | 20mg ev + 20-80mg ev a cada 30 minutos; ou 1-2 mg/minuto (máximo de 300 mg) | Pode causar bradicardia neonatal; contraindicações típicas dos betabloqueadores |
Nifedipina | Cápsula de 5-10mg po a cada 30 minutos | Em alternativa, podem ser usados comprimidos de libertação intermédia |
Hidralazina | 5mg ev + 5-10mg ev a cada 30 minutos; ou 0,5-10 mg/h ev (máximo de 20mg ev) | Aumenta o risco de hipotensão materna |
O nitroprussiato de sódio é um fármaco de última linha pelo que apenas deverá ser usado se todas as outras medidas falharem na obtenção de valores de PA < 160/110mm Hg.
O tratamento da HTA não severa (PA 140-159 / 90-109mm Hg) visa obter valores de PA 130-155 / 80-105mm Hg ou 130-139 / 80-89mm Hg em gestantes com comorbilidades nefrocardiológicas. O tratamento inicial deve ser feito com metildopa, labetalol, outros betabloqueantes (como o metoprolol, pindolol e propanolol; o atenolol não é recomendado, embora não seja ainda conhecido o motivo pelo qual este agente, contrariamente aos betabloqueadores anteriormente listados, se associa a atraso do crescimento intrauterino) ou antagonistas dos canais do cálcio diidropiridínicos, por via oral (preferencialmente a Nifedipina de libertação lenta/intermédia). Os antagonistas dos recetores da angiotensina-II e os inibidores da enzima de conversão da angiotensina estão contraindicados pela sua toxicidade (em particular, nefrotoxicidade). O uso de diuréticos tiazídicos após o primeiro trimestre não se associou a eventos materno-fetais adversos, porém igualmente não demonstrou ajudar a prevenir a PE ou hipertensão arterial grave (Tabela 4).
Fármacos recomendados para o tratamento da HTA não grave (PA 140-159 / 90-109mm Hg)
Agente | Dose | Informação adicional |
Metildopa | 250-500mg po bid-qid (máximo 2 g/dia) | Sem necessidade de dose de carga |
Labetalol | 100-400mg po bid-tid (máximo 1200 mg/dia) | Contraindicações típicas dos betabloqueadores |
Nifedipina | Cápsulas de libertação intermédia: 10-20mg po bid-tid, máximo 180 mg/dia; cápsulas de libertação lenta: 20-60mg po id | Cápsulas de libertação rápida estão contraindicadas pelo risco de hipotensão fetal |
O tratamento da HTA não grave levanta alguma controvérsia pelo potencial efeito deletério no desenvolvimento fetal. De facto, duas meta-análises realizadas com o propósito de estudar este tema detetaram uma associação significativa entre a redução da PA média pela terapêutica anti-hipertensora e o risco de prematuridade e baixo peso para a idade gestacional39,40. Reforça-se a noção de que a terapêutica anti-hipertensora não reduz por si só a morbilidade materna na PE ou na eclâmpsia.
ConclusãoA HTA gestacional é ainda uma entidade insuficientemente conhecida, apesar do enorme impacto das suas complicações no outcome materno-fetal. O consenso atual dita a obrigatoriedade de tratamento anti-hipertensor nos casos de HTA grave. O tratamento da HTA não grave reúne alguma controvérsia, pelo potencial risco de efeitos fetais adversos. Os avanços alcançados nos últimos anos, a propósito da fisiopatologia da PE, criaram a expetativa do futuro desenvolvimento de métodos eficazes na predição da ocorrência desta patologia e de eventuais complicações da mesma, com base na deteção de marcadores específicos de disfunção endotelial e/ou proteínas anti-angiogénicas envolvidas na patogénese da PE. A deteção e quantificação destes marcadores, complementadas pela avaliação por Doppler do fluxo arterial uterino, poderiam ajudar na deteção, com suficiente margem temporal, do subgrupo de gestantes em risco de desenvolvimento de complicações. A aplicação de medidas preventivas como o uso de doses baixas de AAS e/ou a suplementação com cálcio, o planeamento do timing mais adequado para o parto, a potencial reversão do status anti-angiogénico com substâncias angiogénicas exógenas e o uso apropriado de substâncias anti-hipertensoras poderiam então ser aplicados com maior certidão e menor risco para o binómio materno-fetal.
Conflito de interessesOs autores declaram não haver conflito de interesses.