A doença de Kawasaki (DK) é uma vasculite sistémica, de etiologia desconhecida, constituindo a principal causa de cardiopatia adquirida em idade pediátrica em países desenvolvidos. As principais complicações resultam do aparecimento de aneurismas coronários que podem evoluir para doença coronária isquémica.
Apresenta-se o caso clínico de um adolescente com diagnóstico de DK aos 7 anos. Efetuou terapêutica com imunoglobulina e ácido acetilsalicílico e a avaliação ecocardiográfica na fase aguda foi aparentemente normal. Aos 11 anos de idade desenvolveu quadro de angor e dispneia de esforço. A cintigrafia de perfusão miocárdica com prova de esforço revelou hipoperfusão dos territórios correspondentes às artérias descendente anterior esquerda (DA) e coronária direita (CD). O cateterismo cardíaco demonstrou oclusão dos segmentos proximais de ambas as artérias. Foi submetido a cirurgia de revascularização coronária (artéria mamária interna para a DA e veia safena interna para a CD) com boa evolução clínica e desaparecimento das alterações isquémicas na cintigrafia.
Este caso clínico vem alertar para a importância do diagnóstico e terapêutica atempados e seguimento posterior na DK, salientando-se a potencial gravidade das complicações cardiovasculares a longo prazo desta doença pediátrica.
Kawasaki disease (KD) is a systemic vasculitis of unknown etiology, which is the main cause of acquired heart disease in children in developed countries. The main complications result from the development of coronary aneurysms which can lead to ischemic heart disease.
We present the case of a teenage boy with a diagnosis of KD at the age of seven. He was treated with gammaglobulin and aspirin and echocardiographic evaluation in the acute phase was apparently normal. At the age of eleven, he developed chest pain and exertional dyspnea. Nuclear perfusion scans with exercise revealed hypoperfusion of the left anterior descending (LAD) and right coronary (RC) artery territories. Cardiac catheterization showed occlusion of the proximal segments of both arteries. He underwent coronary artery bypass graft surgery (internal mammary artery bypass graft to the LAD artery and saphenous vein graft to the RC artery), with a good clinical result.
This case report highlights the importance of early diagnosis and treatment of KD and regular cardiological follow-up, bearing in mind the potential late complications of this pediatric disease.
A doença de Kawasaki (DK) é uma vasculite sistémica aguda, de etiologia desconhecida, que atinge principalmente crianças e raramente adolescentes. Atualmente, constitui a principal causa de cardiopatia adquirida na idade pediátrica em países desenvolvidos1.
O diagnóstico baseia-se fundamentalmente em critérios clínicos. Os critérios clássicos são febre com duração mínima de 5 dias e a presença de pelo menos 4 dos seguintes: alterações das extremidades, exantema polimorfo, conjuntivite bulbar bilateral sem exsudado, alterações nos lábios e cavidade oral, linfadenopatia cervical com diâmetro igual ou superior a 1,5cm1,2. A DK incompleta deve ser considerada em todas as crianças com febre sem causa aparente e que apresentem 2 ou 3 dos critérios clínicos para DK, sendo mais frequente nos lactentes. Os achados laboratoriais são pouco específicos, apesar de poderem reforçar o diagnóstico, particularmente nas situações de DK incompleta1.
As principais complicações são cardiovasculares, verificando-se a existência de aneurismas coronários em 15-25% dos casos não tratados, incidência esta que pode ser reduzida para cerca de 5% através da terapêutica com imunoglobulina nos primeiros 10 dias de doença1. Os aneurismas podem sofrer várias alterações: regressão, estabilização, progressão para lesões estenóticas ou obstrutivas (com ou sem recanalização ou desenvolvimento de vasos colaterais) e raramente, rotura, desenvolvimento de novas lesões ou expansão de lesões pré-existentes3. A estenose dos segmentos arteriais adjacentes pode condicionar doença coronária isquémica, enfarte agudo do miocárdio ou morte súbita1.
O diagnóstico da DK constitui um desafio, na medida em que implica um elevado grau de suspeição clínica, e o seu atraso pode implicar sequelas cardiovasculares graves.
Caso clínicoApresenta-se o caso de um adolescente com história de DK diagnosticada aos 7 anos de idade, no contexto de quadro de febre com mais de 5 dias de duração, exantema das palmas das mãos e plantas dos pés, edema da face e das extremidades, adenomegália cervical e distensão abdominal. Em termos analíticos, apresentava aumento da proteína C reativa e da velocidade de sedimentação e trombocitose. Cerca de duas semanas após o início da doença, foi medicado com imunoglobulina intravenosa (IV) e ácido acetilsalicílico (AAS), o qual manteve durante cerca de 2 meses. A avaliação ecocardiográfica, realizada 2 semanas após o início da febre, não revelou alterações. Foi seguido em consulta de Pediatria durante 3 anos, mantendo-se assintomático, não tendo sido referenciado à consulta de Cardiologia Pediátrica, nem tendo repetido avaliação ecocardiográfica.
Aos 11 anos de idade, foi referenciado à Cardiologia Pediátrica por quadro de angor e dispneia de esforço com um mês de evolução. Na telerradiografia de tórax verificou-se a presença de calcificação arrendondada na porção superior esquerda da silhueta cardíaca (Figura 1). Realizou eletrocardiograma que não demonstrou alterações. O ecocardiograma revelou ectasia da coronária esquerda (4 e 5mm nos segmentos proximal e distal, respetivamente), sem alterações segmentares da contratilidade ou regurgitação mitral. Realizou cintigrafia de perfusão miocárdica com prova de esforço, durante a qual o doente referiu desconforto torácico no exercício máximo e o eletrocardiograma no esforço máximo evidenciou infradesnivelamento de ST em ii, iii, aVF, V5 e V6. A cintigrafia demonstrou, em esforço, hipoperfusão grave do ápex e segmentos ântero-septal, septo-apical e ântero-apical e moderada nos segmentos médio e basal das paredes anterior, inferior e infero-septal, correspondendo aos territórios das artérias descendente anterior esquerda (DA) e coronária direita (CD), com reversibilidade das imagens em repouso. Efetuou-se cateterismo cardíaco que revelou artéria DA ocluída na sua porção proximal a jusante de aneurisma calcificado e com enchimento retrógrado por circulação colateral a partir de ramos proximais da coronária esquerda (Figura 2), CD ocluída no seu segmento proximal com enchimento retrógrado circulação colateral a partir da coronária esquerda (Figura 3), e ventriculografia esquerda demonstrando boa função, sem alterações aneurismáticas do ventrículo.
A) Coronariografia esquerda - artéria descendente anterior esquerda ocluída distalmente a aneurisma calcificado (seta). B) Coronariografia esquerda - as setas indicam o aneurisma calcificado. C) Coronariografia esquerda - artéria descendente anterior esquerda ocluída com enchimento tardio, retrógrado (setas), por circulação colateral a partir de ramos proximais da coronária esquerda.
Foi submetido a cirurgia de revascularização coronária sem circulação extra-corporal. Foi tendo sido usada a artéria mamária interna esquerda (MIE) pediculada para a revascularização da DA no seu terço médio e a veia safena interna (SI) para a CD distal. A cirurgia e o pós-operatório decorreram sem complicações. Teve alta medicado com AAS em dose anti-agregante e propranolol.
Sete meses após a cirurgia, efetuou cintigrafia de perfusão miocárdica com prova de esforço que demonstrou ausência de isquémia com significado clínico, traduzindo bom resultado cirúrgico. O ecocardiograma mostra excelente função ventricular global, sem alterações da contratilidade segmentar.
Até à data atual (um ano após a cirurgia) manteve-se assintomático.
DiscussãoNa DK, as alterações das artérias coronárias podem ocorrer a partir do final da primeira semana de doença, atingindo um pico de incidência e gravidade às 4-6 semanas4.
Na fase aguda da DK, a ecocardiografia é o método de eleição para a avaliação cardiovascular, devendo ser realizada assim que haja suspeita diagnóstica, não atrasando contudo o tratamento com imunoglobulina iv. Nos casos não complicados, se o estudo ecocardiográfico inicial é normal, deve ser repetido às duas e às 6-8 semanas após o início da doença. No estudo de Scott et al.4, nenhum doente com ecocardiograma normal entre as 2 semanas e os 2 meses após o início de doença apresentou alterações na avaliação realizada um ano depois. Porém, mesmo em doentes sem dilatação coronária, podem existir alterações na função das artérias coronárias, na reserva de fluxo coronário e dilatação da raiz da aorta, pelo que muitos autores mantêm a reavaliação ecocardiográfica após as 8 semanas; contudo, esta é considerada opcional nas recomendações atuais da American Heart Association (AHA)1. Nos casos com risco mais elevado (febre persistente, anomalias coronárias, disfunção ventricular, derrame pericárdico ou regurgitação valvular), é necessária uma monitorização mais apertada da situação, com utilização de outros meios complementares de diagnóstico. Estes podem incluir ECG, ECG de 24 horas, prova de esforço, ecocardiograma de sobrecarga, cintigrafia de perfusão miocárdica, ressonância magnética cardíaca, tomografia axial computorizada ou cateterismo cardíaco1,5.
Neste caso a terapêutica com imunoglobulina iv foi instituída tardiamente, condicionando portanto um risco aumentado de complicações coronárias. Apesar do doente ter sido submetido a avaliação ecocardiográfica às 2 semanas após o início da doença, que não revelou alterações, não voltou a realizar avaliações posteriores, contra o que seria aconselhado. Postula-se eventual desenvolvimento posterior do aneurisma, de acordo com o pico de incidência descrito acima, que não foi detectado por ausência de avaliação ecocardiográfica posterior.
As recomendações atuais da AHA estabelecem estratégias terapêuticas e de seguimento a longo prazo, de acordo com a estratificação de risco para isquémia do miocárdio. Quando se detetam aneurismas, deve manter-se terapêutica anti-agregante e/ou anticoagulante dependente das dimensões aneurismáticas. Nestes doentes, é importante o seguimento regular com eletrocardiograma, ecocardiograma e prova de esforço. A periodicidade sugerida para estes exames varia consoante a morfologia das coronárias (determinante de risco para isquémia)1,5. Assim, se o diagnóstico de aneurisma tivesse sido realizado ab initio determinaria seguimento clínico apertado e a referida abordagem em termos de exames complementares. A longo prazo, nos doentes com lesões coronárias complexas na ecocardiografia, alterações regionais da contratilidade miocárdica ou sinais de isquémia (clínicos ou nos exames complementares), a coronariografia permite uma informação anatómica mais detalhada, podendo detetar estenose ou oclusão trombótica das artérias coronárias e avaliar a extensão da circulação colateral1.
A angioplastia com balão não tem demonstrado eficácia quando aplicada mais de 2 anos após a doença aguda, tendo em conta a fibrose e calcificação extensas da parede arterial1. As técnicas de intervenção coronária percutânea estão indicadas em doentes com isquémia sintomática, alterações isquémicas nas provas de esforço ou lesões estenóticas graves em risco de progredir para isquémia. Podem ser aplicadas em doentes com estenose grave (≥ 75%) e localizada, sem lesões ostiais ou segmentares longas. Estão contra-indicadas em situações de doença multi-vasos ou disfunção ventricular esquerda5.
Na DK, a cirurgia de revascularização está indicada quando há oclusão grave do tronco comum, do segmento proximal da DA, de mais do que uma artéria coronária principal e/ou quando as artérias colaterais aparentam estar em risco1. No presente caso, existia comprometimento de 2 artérias coronárias principais com oclusão do segmento proximal da DA.
Na cirurgia, os enxertos de eleição nestas situações são da artéria mamária interna, uma vez que esta apresenta capacidade de crescimento em concordância com o crescimento somático do doente1,6, é aparentemente poupada à aterosclerose e poderá ter efeito benéfico em termos de função endotelial6.
No presente caso, optou-se por utilizar a MIE para a revascularização da DA e a SI para a CD. Os enxertos da veia safena demonstraram bons resultados na circulação coronária direita7,8, e excelentes resultados a longo prazo com esta opção foram descritos especificamente em crianças com DK9. Por outro lado desta forma pode poupar-se a artéria mamária interna direita para uma eventual necessidade de reoperação no futuro.
Kitamura et al.6 descrevem uma sobrevida de 95% e uma taxa de ausência de eventos de 60% aos 25 anos de seguimento, após cirurgia de revascularização coronária na DK. De qualquer modo, é sempre recomendado o seguimento regular na medida em que há um declínio progressivo da taxa de doentes livres de evento6 e persistem alterações da função endotelial muitos anos após a doença aguda, o que acontece mesmo nos doentes sem atingimento coronário10.
ConclusãoEste caso clínico vem alertar para a importância do diagnóstico e terapêutica atempados na DK, salientando-se a potencial gravidade das complicações cardiovasculares a longo prazo. É fundamental que os doentes com alterações coronárias sejam monitorizados clinicamente e através das técnicas complementares de diagnóstico adequadas à sua situação clínica, no sentido de detetar precocemente alterações isquémicas. Na presença de doença isquémica, a cirurgia de revascularização coronária tem indicações precisas e, neste doente, os resultados a médio prazo foram excelentes.
Conflito de interessesOs autores declaram não haver conflito de interesses.