A síndrome coronária aguda (SCA) é uma entidade clínica que engloba um grupo muito heterogéneo de doentes, motivo pelo qual se torna imperativa a estratificação de risco como suporte para a subsequente decisão da estratégia a seguir. A maior ou menor agressividade no manejo destes doentes deverá ser proporcional ao risco de eventos cardiovasculares e contrabalançada pelo risco de complicações, nomeadamente hemorrágicas e de agravamento da função renal. A estratificação destes doentes vem dificultada por dois importantes fatores. Por um lado, a decisão clínica acerca da estratégia (invasiva versus conservadora) precede o conhecimento da anatomia coronária, fator determinante do patamar de risco do doente. Por outro lado, existem muitas variáveis (demográficas, fatores de risco, apresentação clínica, eletrocardiográficas, laboratoriais …) com potencial impacto prognóstico, motivo pelo qual nos últimos anos foi feito um esforço no sentido de se desenvolverem scores englobando múltiplas variáveis para uma estimativa global do risco, não só de eventos cardiovasculares – como é o caso dos scores de risco Thrombolysis in Myocardial Infarction (TIMI)1 e Global Registry of Acute Coronary Syndromes (GRACE)2 – mas também de complicações, como é o caso do score de risco hemorrágico Can Rapid risk stratification of Unstable angina patients Suppress Adverse outcomes with Early implementation of the ACC/AHA guidelines (CRUSADE)3.
É neste contexto que se enquadra o artigo de Timóteo et al.4 publicado neste número da Revista Portuguesa de Cardiologia, cujo objetivo foi a validação externa do score de risco Portuguese Registry on Acute Coronary Syndromes (ProACS), desenvolvido a partir do Registo Nacional de SCA (RNSCA)5.
O score de risco proACS permite estratificar o risco precoce tendo sido previamente validado para mortalidade hospitalar. Trata‐se de um score simples, uma vez que inclui apenas quatro variáveis dicotomizadas: idade, pressão arterial sistólica, classe de Killip na admissão e elevação do segmento ST. Neste trabalho os autores foram comparar o desempenho deste score nacional com o do score de risco GRACE, amplamente validado e recomendado nas guidelines europeias6, e um score mais recentemente desenvolvido por um grupo canadiano, o Canada Acute Coronary Syndrome risk score (C‐ACS)7. Os autores conseguiram demonstrar na população de validação externa, constituída por 3170 registos de SCA de um centro único, uma razoável capacidade discriminativa, não só para mortalidade intra‐hospitalar (area under the curve, AUC 0,769) mas também para a mortalidade a 30 dias (AUC 0,755) e a um ano (AUC 0,748), sobreponível à do score C‐ACS, mas inferior à do score de risco GRACE (AUC de 0,857, 0,829 e 0,804 para mortalidade intra‐hospitalar, a 30 dias e a um ano, respetivamente). Os autores do presente trabalho4, bem como o grupo que desenvolveu originalmente o score proACS, devem ser reconhecidos pelo mérito do seu trabalho e o desempenho do proACS deve ser enquadrado no reduzido número de variáveis incluídas (apenas quatro) e o facto de a sua ponderação relativa ser apenas dicotomizada, tornando‐o um score de fácil cálculo, o que poderá contribuir para uma mais fácil adoção na prática clínica. De facto, o balanço entre complexidade (múltiplas variáveis, ponderações relativas) poderá ser inversamente proporcional à sua exequibilidade, motivo pelo qual ainda hoje se continuam a ver múltiplas referências ao score de risco TIMI, cujo desempenho é claramente inferior ao do score de risco GRACE8, como foi demonstrado anteriormente pelo nosso grupo num trabalho que vem citado nas últimas guidelines europeias de SCA6.
O outro mérito que deve ser reconhecido ao proACS reside no facto de este ilustrar o esforço para desenvolvimento e validação de uma ferramenta de estratificação de risco a partir da informação clínica dos doentes incluídos no RNSCA, ressalvando assim eventuais especificidades genéticas e/ou de manejo clínico dos doentes da nossa realidade nacional5.
Por fim, a utilidade e aplicabilidade destes scores poderá ser variável no espectro de doentes com SCA. Se nas SCA sem supra ST a elevada heterogeneidade dos doentes e de opções terapêuticas, aliada à mais recente recomendação para uma estratégia invasiva imediata (em menos de 2h) para os doentes de mais elevado risco6, torna imperativa a estratificação de risco, já nos doentes com EAM com supra ST esta estratificação poderá ser menos importante na fase de decisão e orientação da estratégia inicial, uma vez que nesses doentes a intenção de angioplastia primária é quase universal e, sobretudo, na dependência mais de aspetos logísticos (disponibilidade de sala hemodinâmica em tempo útil) do que do risco clínico. Neste contexto é de realçar a diferença na prevalência de SCA com supra ST que foi significativamente superior na população de validação externa do proACS em relação à população original do RNSCA (62,2 versus 43,6%), o que poderá ter tido alguma influência nas AUC reportadas e na generalização destes dados para outros centros, embora os autores não tenham verificado diferenças significativas no desempenho do proACS nos diferentes contextos clínicos (com ou sem supra ST). A comparação entre os scores de risco proACS e o GRACE espelha bem o dilema da estratificação de risco nas SCA, pelo balanço delicado entre complexidade, diretamente proporcional ao seu desempenho, mas inversamente proporcional à sua adoção na prática clinica diária – quando o ótimo se torna inimigo do bom!
Conflito de interessesO autor declara não haver conflito de interesses.