A endomiocardite de Löffler é uma miocardiopatia restritiva primária aguda. Relatamos o caso clínico de uma jovem que inicia dor torácica pleurítica associada a febre e hipereosinofilia. Internada por suspeita de miopericardite aguda e submetida a tratamento com ácido acetilsalicílico, verificou-se melhoria clínica. Dez dias após a alta é reinternada por recorrência da dor. O ecocardiograma mostrou uma aparente massa ocupando o apex do ventrículo direito (VD). Referenciada para ressonância magnética cardíaca, esta demonstrou um marcado espessamento do miocárdio no apex do VD. Foi submetida a biópsia endomiocárdica que diagnosticou uma endomiocardite eosinofílica. Após o início do tratamento com prednisolona, verificou-se o desaparecimento da sintomatologia, da eosinofilia e uma regressão completa das alterações no VD. Ao fim de 3 anos de seguimento mantém-se assintomática. O caso descrito revela que o prognóstico da endomiocardite de Löffler, mesmo sem um diagnóstico etiológico da eosinofilia, poderá ser favorável, se o tratamento for iniciado precocemente.
Loeffler's endocarditis is an acute form of primary restrictive cardiomyopathy. We report the case of a young woman with pleuritic chest pain associated with fever and hypereosinophilia. She was hospitalized with suspected acute myopericarditis and was treated with aspirin, leading to clinical improvement. Ten days after discharge, she was rehospitalized due to recurrence of chest pain. The echocardiogram showed what appeared to be a mass filling the apex of the right ventricle (RV). She was referred for magnetic resonance imaging, which revealed marked myocardial thickening in the apex of the RV. The patient underwent an endomyocardial biopsy, resulting in a diagnosis of eosinophilic endocarditis. After treatment with prednisolone, all symptoms and the eosinophilia disappeared, and there was complete remission of the RV abnormalities. After three years of follow-up, the patient remains asymptomatic. This case shows that, even without an etiologic diagnosis of eosinophilia, the prognosis for Loeffler's endocarditis can be favorable if treatment is initiated early.
A manifestação cardíaca da Síndrome hipereosinofílica geralmente apresenta-se como endomiocardite de Löffler. Esta representa uma miocardiopatia restritiva primária aguda resultante de uma produção exagerada e sustentada de eosinófilos com infiltração tecidular. O tratamento é direcionado para a etiologia da hipereosinofilia que na maioria das vezes permanece desconhecida. Esta entidade está associada a um mau prognóstico.
Caso clínicoDoente do sexo feminino, 34 anos de idade, médica de profissão, com antecedentes pessoais de tuberculose pulmonar (TP) aos 14 anos; asma brônquica e eosinofilia (entre 400-2.200/mm3) diagnosticados no ano 2000; sinusite com polipose nasal operada em 2005. Medicada habitualmente com inaladores de fluticasona, salmeterol e salbutamol.
Em abril de 2008 inicia dor intermitente a nível escapular esquerda de características pleuríticas associada a tosse seca e astenia. Foi inicialmente considerado o diagnóstico de infeção respiratória, tendo cumprido dois ciclos de antibioterapia (azitromicina e levofloxacina) sem melhoria. A investigação do quadro incluiu nessa altura o ECG e o ecocardiograma transtorácico (ETT), que não revelaram alterações. Foi então assumida como uma dor de etiologia muscular, sendo realizado tratamento sintomático com paracetamol e anti-inflamatórios. No final de junho, houve agravamento das queixas álgicas e surgimento de febre. O exame objetivo não apresentava alterações relevantes. O ECG evidenciou um BIRD, má progressão da onda «r» de V1-V3 e ondas T negativas de V1-V5, previamente não existentes. Analiticamente foi detetada uma leucocitose (13.500/mm3) com 50% de eosinófilos (6.800/mm3, n < 400), uma elevação da IgE (515 IU/mL, n < 88); da troponina I (1,2 ng/mL, n<0,1); do BNP (158 pg/mL, nb < 100); e da PCR (321mg/dl, n<5). A radiografia (Rx) de tórax apresentava um pequeno derrame pleural esquerdo, sem alterações do parênquima pulmonar e com índice cardiotorácico aumentado. O ETT revelou cavidades cardíacas não dilatadas, boa função sistólica global e segmentar dos ventrículos esquerdo (VE) e direito (VD). As válvulas cardíacas não evidenciavam alterações morfológicas ou funcionais significativas. O pericárdio encontrava-se espessado, com derrame circunferencial médio (12mm na incidência paraesternal eixo longo), mas sem compromisso hemodinâmico (fig. 1). Foi internada com o diagnóstico de miopericardite em 14/07/2008. Iniciou tratamento com ácido acetilsalicílico em doses anti-inflamatórias e analgesia com derivados morfínicos, verificando- se uma melhoria da intensidade da dor. As análises revelaram redução dos valores de troponina i, da PCR e do BNP. O ETT documentou uma redução do derrame pericárdico, mantendo-se o pericárdio espessado. Por persistência da eosinofilia com valores anormalmente elevados, mesmo para os doentes com asma, e coexistência do derrame pleural esquerdo colocaram-se outras hipóteses de diagnóstico além de miopericardite aguda vírica: a) recidiva de TP, c) helmintose, d) síndrome hipereosinofílica, e) Churg-Strauss. O estudo analítico imunológico que incluiu ANA, ANCA e fatores reumatóides foi negativo; o exame direto da expetoração foi negativo para BK; a pesquisa em coproculturas de ovos, quistos e parasitas foi negativa. As serologias para o anticorpo (Ac) CMV IgM, Ac. EBV; Ac Herpes Simplex 1 e 2, Influenza A e B; Adenovirus; Echovirus; Coxsackie foram negativas. A TC torácica revelou um pequeno derrame pleural esquerdo. Teve alta no dia 16/07/2008 referindo apenas ligeira dorsalgia esquerda à inspiração profunda e medicada com ácido acetilsalicílico 1.000mg de 8/8h.
Dez dias após a alta reiniciou dor torácica, sem febre. O ETT de controlo demonstrou VD com hipocinésia do apex e uma massa apical de ecogenicidade idêntica à do miocárdio e sem plano de clivagem com a parede miocárdica (fig. 2). O pericárdio mantinha-se espessado e com derrame médio. Perante os novos achados equacionou-se a hipótese da massa do VD corresponder a um trombo, a um tumor ou representar uma massa secundária à síndrome hipereosinofílica. A doente iniciou anticoagulação oral com varfarina devido à suspeita de trombo e foi transferida para os Hospitais da Universidade de Coimbra para realização de ressonância magnética cardíaca (RMC) e biopsia endomiocárdica (BEM). A RMC revelou um marcado espessamento do miocárdio no apex do VD, com aspeto infiltrativo (fig. 3). No realce tardio observaram-se áreas de hipersinal de forma heterogénea no apex do VD, na parede septal e no apex do VE. Algumas destas áreas apresentavam uma distribuição sub-epicárdica. A BEM mostrou dissociação dos feixes musculares por eosinófilos, havendo destruição miocitária e necrose de coagulação, dados compatíveis com endomiocardite eosinofílica. Foi assim estabelecido o diagnóstico de endomiocardite de Löffler e iniciado tratamento com prednisolona oral, na dose de 1mg/kg/dia, mantendo a anticoagulação com varfarina. No seguimento registamos alívio completo da dor, normalização do valor de eosinófilos e desaparecimento do espessamento miocárdico do VD (fig. 4) confirmado pela RMC (fig. 5). A doente manteve anticoagulação durante 3 meses e corticoterapia durante 6 meses. Após esse período teve um episódio de dor dorsal mantida não acompanhado de hipereosinofilia ou alterações ecocardiográficas tendo realizado 4 semanas de corticoterapia. A doente tem tido consulta semestral onde realiza ECG, análises e ETT. Três anos depois do início do tratamento, e após a realização de outra RMC de controlo a doente encontra-se em remissão completa.
A hipótese de endomiocardite de Löffler foi colocada dado que a doente apresentava uma eosinofilia e uma massa no apex do VD, que a RMC veio mostrar se tratar de um infiltrado do miocárdio. O diagnóstico foi confirmado com a BEM. Para além da asma, que não costuma cursar com valores tão elevados de eosinófilos, a hipereosinofilia pode ter inúmeras causas, sendo as mais comuns a doença auto-imune, a artrite reumatóide, infeção parasitária e leucemia eosinofílica1. Para excluir as primeiras duas hipóteses realizou-se o estudo imunológico no 1.° internamento que foi negativo. A doente não contactou com animais, não realizou viagens recentes ao estrangeiro, não se isolou nenhum agente na coprocultura e teve melhoria clínica com anti-inflamatórios pelo que a hipótese de infeção parasitária foi excluída. Não foi realizada biopsia medular para excluir leucemia eosinofílica, mas a melhoria com a terapêutica corticóide instituída não vai de encontro a essa hipótese. Apesar do tratamento efetuado dever ser dirigido para a etiologia da hipereosinofilia2, na ausência de diagnóstico etiológico, há evidência de regressão do infiltrado miocárdico com corticoterapia3,4. A varfarina foi inicialmente mantida devido à associação entre a endomiocardite de Löffler e eventos embólicos1. O efeito do tratamento anti-inflamatório e imunossupressor com corticóides e agentes citotóxicos pode ser variável embora os casos de síndrome hipereosinofílico com manifestações agudas são os que respondem melhor5,6. O prognóstico geralmente é mau mas há casos descritos de rápida resolução com corticoterapia3,4.
ConclusãoA endomiocardite de Löffler é uma entidade rara. O ETT e a RMC têm um papel fundamental no diagnóstico. O tratamento deve ser orientado para a etiologia da eosinofilia. Na maioria dos casos esta permanece desconhecida, condicionando um mau prognóstico. O nosso caso clínico revela que, em alguns doentes, o prognóstico da endomiocardite de Löffler, mesmo sem diagnóstico etiológico da eosinofilia, poderá ser bom se o tratamento for iniciado precocemente.
Conflito de interessesOs autores declaram não haver conflito de interesses.