As doenças cardiovasculares (DC) são a causa mais frequente de morte em doentes com um quadro clínico de diabetes. Os dados mais recentes da American Heart Association mostram que a taxa de mortalidade relacionada com DC, em diabéticos com mais de 65 anos, é de 68%. Aproximadamente 50% dos adultos com diabetes desenvolvem uma DC fatal, o que implica que um doente diabético terá um risco duas vezes superior de desenvolver DC. Em alguns casos esta probabilidade poderá ser ascender até quatro vezes. A elevada mortalidade causada pela diabetes é ainda mais surpreendente se considerarmos que, atualmente, é possível controlar, de forma rigorosa, os níveis de glicose nestes doentes. Neste contexto, é imperativo concentrar esforços em investigação dirigida ao estudo dos mecanismos biológicos associados a DC em doentes diabéticos.
Um dos estímulos que desencadeia a formação de novos vasos nos diversos órgãos e tecidos é a hipoxia, um mecanismo que se reveste de particular importância em doentes que desenvolvem isquemia do miocárdio no contexto das DC. Este estímulo deve‐se, em parte, à ativação do fator de transcrição Hypoxia Inducible Factor 1 alpha (HIF1A)1,2. A forma mais conhecida de controlo da neovascularização pelo HIF1A tem origem no controlo da transcrição do vascular endothelial growth factor (VEGF) pelo HIF1A, um fator de crescimento fundamental na formação de novos vasos1.
No contexto da diabetes, a modificação de proteínas por açúcares, devido à elevada concentração intracelular de glicose, leva à formação de Advanced Glycation End Products (AGE)3 que, no caso do HIF1A, podem inibir o seu funcionamento1,2. O processo de formação de AGE, designado de glicação, acontece quando a glicose, ou outros açúcares, reagem com os grupos amina de certos aminoácidos para formar uma base de Schiff e um produto de Amadori3. A glicação é uma reação química similar à glicosilação, mas que não necessita de enzimas, não havendo por isso uma regulação celular da sua formação. As proteínas, uma vez glicadas, têm tendência a perder a sua conformação original e, consequentemente, a perder também a sua função, tornando a glicação tóxica para a célula. Por sua vez, o metilglioxal (MGO) é um subproduto da glicose que tem uma reatividade cerca de 20000 vezes superior à glicose4 e que está presente em maiores concentrações em doentes com diabetes1,2. Neste contexto, vários estudos descrevem diferentes mecanismos relacionados com a modificação por MGO como sendo responsáveis pela inibição da ação do HIF1A1,2. No entanto, é provável que a destabilização do HIF1A na diabetes envolva a modificação direta do fator de transcrição pela glicose ou pelo MGO5. De facto, sabe‐se que a glicação do HIF1A altera a sua conformação, desencadeando a eliminação deste fator de transcrição pelo sistema proteolítico das células5. Em consonância com estes dados, tem sido consistentemente observada uma diminuição dos níveis de HIF1A em tecidos hipóxicos de doentes diabéticos1. Ramalho et al. mostram agora que este mecanismo também ocorre em linhas celulares de músculo cardíaco (HL‐1) e que o efeito é mais pronunciado na presença maiores concentrações, ou de tempos de incubação mais longos, com MGO6. Apesar de alguns estudos anteriores terem mostrado que a glicação do HIF1A desencadeia a ubiquitinação e posterior degradação pelo proteossoma5, Ramalho et al. mostram agora que, pelo menos em células de músculo cardíaco em cultura, a inibição do proteossoma não é suficiente para estabilizar o HIF1A na presença de MGO6. Esta é uma observação importante já que existem evidências de que o HIF1A pode ser degradado de forma independente do proteossoma7. De facto, o HIF1A pode ser degradado por um mecanismo dependente do lisossoma e designado de autofagia mediada por chaperones (AMC, ou CMA em inglês) e que parece adquirir particular relevância em condições de hipoxia7.
A estabilização do HIF1A em modelos de cicatrização de ratinhos diabéticos já foi utilizada com algum sucesso usando inibidores das prolilhidroxilases (PHD), como a dimethiloxaliglicina e o quelante de ferro DFO8. Estes compostos impedem a hidroxilação do HIF1A pelas PHD e, por isso, a sua degradação pelo proteossoma. No entanto, o mecanismo canónico de degradação do HIF1A não funciona durante a hipoxia, já que as PHD usam oxigénio na reação de hidroxilação. Neste contexto, os resultados que os autores agora publicam parecem apontar para a AMC como um mecanismo passível de ser manipulado para resgatar de forma mais eficiente a atividade do HIF1A na diabetes. No futuro, será importante avaliar o papel da AMC na degradação do HIF1A em hiperglicemia, tanto em culturas celulares como em modelos animais de diabetes. Alguns compostos que inibem vias degradativas dependentes do lisossoma, como a AMC, são bem conhecidos e compostos adicionais têm vindo a ser desenvolvidos9. Um dos compostos mais conhecidos é a hydroxicloroquina, um fármaco que é utilizado rotineiramente no tratamento da malária. Tendo em consideração este novo conjunto de evidências, é provável que o lisossoma se torne um alvo relevante e atrativo para futuros estudos que tentem prevenir a degradação do HIF1A e promover a revascularização após um evento isquémico, em particular em diabéticos que desenvolvem DC.
Conflito de interessesOs autores declaram não haver conflito de interesses.