A doença de Chagas, uma infeção parasitária provocada por um protozoário, o Trypanosoma cruzi, é um verdadeiro problema de saúde pública, com uma carga e um custo global muito importante, visto ser a terceira doença parasitária grave mais prevalente, só suplantada pela malária e pela schistosomíase1.
É uma doença endémica na América do Sul, com uma grande incidência, com cerca de 11 milhões de indivíduos infetados2, apesar de se desenvolverem grandes esforços para debelar e erradicar a doença com extensas campanhas de desinfestação contra os vetores voadores responsáveis.
Devido à grande mobilidade migratória das populações, essa patologia ultrapassou fronteiras, universalizou‐se. Tendo a doença de Chagas um potencial de transmissão através de transfusões e transplantação de órgãos, tornou‐se necessária a implantação de rastreios de deteção da doença nos dadores de sangue1, nomeadamente nos Estados Unidos, onde existe um fluxo migratório importante, assim como na Europa, como é o caso da Espanha, de Portugal e de outros países1.
O envolvimento cardíaco dessa doença atinge de 25 a 30% dos casos3, é descrito no Brasil cerca de 1/3 dos doentes com cardiopatia chagásica4. O prognóstico da doença está muito dependente do desenvolvimento de cardiopatia.
Os mecanismos responsáveis pela cardiopatia chagásica têm sido muito estudados e devem‐se essencialmente a três processos: inflamação, morte celular e fibrose. Têm aparecido várias explicações para a cardiopatia, tais como a teoria neurogénica, em que se desenvolve uma disautonomia parassimpática, que provoca uma atividade simpática predominante e uma toxicidade induzida pelas catecolaminas; processos microvasculares, autoimunes e de resposta imunológica ao parasita quando esse persiste, com infiltração linfocitária no nível dos tecidos cardíacos1,5. Esses vários mecanismos levam ao aparecimento da miocardiopatia dilatada e arritmias, muitas vezes malignas.
Assim, o envolvimento cardíaco manifesta‐se por arritmias ventriculares malignas e morte súbita, quadro de insuficiência cardíaca e fenómenos de tromboembolismo.
A morte súbita pode ocorrer mesmo em doentes assintomáticos e na fase de latência, deve‐se ao aparecimento de taquiarritmias: taquicardia ventricular e/ou fibrilhação ventricular e mais raramente de bradiarritmias: bloqueio AV completo, assistolia e doença do nódulo sinusal. A sua incidência é grande, é a causa de morte na cardiopatia chagásica em 55‐65% dos doentes3.
Dada a importância da morte súbita nessa doença foi feito um esforço na tentativa de prever quais os indivíduos de maior risco, através de scores de risco, para se poder abordar esses doentes de maneira mais agressiva e interventiva3,6.
O mais conhecido é o escore de Rassi, descrito e validado num trabalho publicado no NEJM em 20066 por Anis Rassi do grupo de Maurício Scanavacca, em que se classificaram através de seis parâmetros (clínicos, Holter, ECG e ecocardiograma) os doentes em três grupos de risco com prognóstico e mortalidade crescentes: baixo, intermédio e alto risco, é um motivo para que nesse último grupo haja uma abordagem mais invasiva e agressiva, nomeadamente com a implantação de CDI.
Os autores deste trabalho, Ribeiro da Silva et al., do Rio de Janeiro4, pretendem melhorar a capacidade discriminatória e preditora de morte do escore de Rassi, introduzir um novo parâmetro, o limiar anaeróbio, avaliado através duma prova de esforço cardiopulmonar.
Os autores estudaram retrospetivamente 150 doentes com evidência de cardiopatia chagásica, dos quais 45 executaram uma prova de esforço cardiopulmonar em cicloergómetro com protocolo de rampa4.
Nos resultados é de salientar que com a introdução desse parâmetro além do escore, com o uso de um modelo estatístico de regressão logística, houve um aumento do poder preditor da estimativa de morte em 5%4.
É de salientar que essa população era de menor risco, com menos comprometimento cardíaco, havia, no entanto, um resultado significativo em relação ao poder discriminativo desse novo parâmetro introduzido4.
Assim, com a redução do limiar anaeróbio desses doentes associou‐se um aumento do risco de morte.
Os autores explicam os resultados, através do poder discriminatório desse parâmetro em populações de menor risco, devido à deteção de comprometimento precoce ao nível do ventrículo direito e da disfunção diastólica do ventrículo esquerdo, parâmetros já descritos como de risco, antes do aparecimento final da disfunção sistólica e dilatação do ventrículo esquerdo4.
É assim sublinhada a importância do limiar anaeróbio e da capacidade funcional, como parâmetros que avaliam e detetam o comprometimento precoce do coração provocado por essa doença, com uma utilidade clínica importante e relevante4.
Conflitos de interesseO autor declara não haver conflitos de interesse.