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Vol. 34. Núm. 6.
Páginas 411-419 (junho 2015)
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Vol. 34. Núm. 6.
Páginas 411-419 (junho 2015)
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Utilização de cardioversores desfibrilhadores implantáveis em desportistas: revisão sistemática
Use of implantable cardioverter‐defibrillators in athletes: A systematic review
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Ricardo Liz Almeidaa, Rui Providênciaa,b,
Autor para correspondência
rui_providencia@yahoo.com

Autor para correspondência.
, Lino Gonçalvesa,b
a Universidade de Coimbra, Faculdade de Medicina, Coimbra, Portugal
b Serviço de Cardiologia, Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, Coimbra, Portugal
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Figuras (1)
Tabelas (4)
Tabela 1. Classificação dos desportos (adaptado de Maron e Zipes, 20052)
Tabela 2. Causas de morte súbita em 387 atletas jovens (adaptado de Maron, 200311)
Tabela 3. Condicionantes relativas à utilização de CDI em atletas (adaptado de Lawless, 20083)
Tabela 4. Principais estudos avaliando a utilização de CDI em desportistas
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Resumo

As recomendações internacionais excluem todos os atletas possuidores de um cardioversor desfibrilhador implantável (CDI) da prática de todos os desportos exceto os de baixa intensidade, inseridos na categoria IA (golfe, bilhar, bowling). No entanto, estas recomendações são baseadas em consensos de peritos e a segurança ou riscos resultantes da prática desportiva nesta população ainda são largamente desconhecidos da comunidade médica.

Foi realizada uma revisão sistemática da literatura existente na PubMed utilizando a seguinte expressão: «(sudden cardiac death) AND (sport OR physical exercise) AND defibrillator». Após a avaliação de critérios de inclusão e exclusão pré‐definidos, foram selecionados 36 resultados que são explorados neste manuscrito.

Resultados

Preliminares da utilização de CDI nesta população parecem atestar a sua segurança e eficácia. Estudos futuros, permitindo o seguimento de um maior número de desportistas por um período mais duradouro, poderão fornecer mais robustez e evidência mais forte a suportar estes achados. Entretanto, a abordagem ao desportista portador de CDI deve ser personalizada e adequada ao paciente, de acordo com a cardiopatia e tipo de desporto em questão. Uma abordagem generalista com desqualificação de quase todos os desportistas sem atender às suas especificidades pode prejudicar uma quantidade considerável de doentes aos quais será vedada a possibilidade de manter a sua profissão ou prática, para a qual poderiam eventualmente apresentar um risco baixo de morte súbita cardíaca.

Palavras‐chave:
Cardioversor desfibrilhador implantável
Morte súbita cardíaca
Arritmia
Atletas
Desporto
Desqualificação
Abstract

International guidelines exclude athletes with implantable cardioverter‐defibrillators (ICDs) from participating in sports, except those of low intensity (category IA, such as golf, billiards or bowling). However, these guidelines are based on expert consensus, and thus the safety and risks of participating in sports in this population are still largely unknown in the medical community.

We performed a systematic review of the literature in PubMed using the following search string: “((sudden cardiac death) AND (sport OR physical exercise)) AND defibrillator”. After the application of pre‐defined inclusion and exclusion criteria, 36 results were selected, which are explored in this paper.

Preliminary results on ICD use in this population appear to demonstrate the safety and efficacy of the device in this context. Further studies, with longer follow‐up and with larger samples, may provide stronger evidence to support these findings. In the meantime, disqualifying almost all ICD patients from participating in sports, without taking into consideration their individual needs and characteristics, may be prejudicial to a considerable number of patients by preventing them from exercising their profession or engaging in recreational sport, for which their risk of sudden cardiac death may be low.

Keywords:
Implantable cardioverter defibrillator
Sudden cardiac death
Arrhythmia
Athlete
Sports
Disqualification
Abreviaturas e acrónimos
BC36

36.a Conferência de Bethesda

CDI

Cardioversor desfibrilhador implantável

ESC

European Society of Cardiology

ICD

Implantable cardioverter defibrillator

MCH

Miocardiopatia hipertrófica

MSC

Morte súbita cardíaca

ACC/AHA

American College of Cardiology/American Heart Association

Texto Completo
Introdução

A morte súbita cardíaca (MSC) no desportista, a sua prevenção através do uso de cardioversores desfibrilhadores implantáveis (CDI) e a necessidade de eventual desqualificação destes desportistas é uma temática atual e ainda envolta em bastante controvérsia1.

As recomendações estabelecidas pela 36.ª Conferência de Bethesda (BC36) e pela European Society of Cardiology (ESC) excluem todos os atletas possuidores de um CDI relativamente à prática de todos os desportos exceto os de baixa intensidade, inseridos na categoria IA2 (Tabela 1). As bases para estas recomendações residem em supostos riscos como a falha do CDI na entrega da terapia, lesão devido à perda de consciência/controlo devido ao choque ou à própria arritmia e ainda a deterioração ou ocorrência de danos no CDI ou elétrodos3. Estas recomendações2 foram elaboradas segundo o consenso de especialistas e não baseadas em resultados de estudos, pois até à data não havia evidência concreta sobre reais riscos provenientes da prática desportiva para o doente.

Tabela 1.

Classificação dos desportos (adaptado de Maron e Zipes, 20052)

Aumento da componente estática
I. Baixo (<20% CVM)  II. Moderado (20‐50% CVM)  III. Alto (>50% CVM) 
Bobsledding/luge; provas de arremesso; ginástica; artes marciais; vela; escalada; esqui aquático; halterofilismo; windsurf  Culturismo; downhill; esqui; snowboard; skate; wrestling  Boxe; canoagem; ciclismo; decatlo; remo; triatlo; patinagem no gelo em velocidade 
Tiro com arco; automobilismo; mergulho; equitação; motociclismo  Futebol americano; atletismo (saltos); patinagem artística; rodeo; rugby; atletismo (velocidade); surf; natação sincronizada  Basquetebol; hóquei no gelo; lacrosse; atletismo (meio‐fundo); natação; andebol 
Bilhar; bowling; cricket; curling; golfe; tiro  Basebol/softbol; esgrima; ténis de mesa; voleibol  Badmínton; hóquei em campo; orientação; squash; atletismo (fundo); futebol; ténis 
A. Baixa (<40% Max O2)  B. Moderada (40‐70% Max O2)  C. Alta (>70% Max O2) 
Aumento da componente dinâmica

Max O2: capacidade aeróbica máxima; CVM: contração voluntária máxima.

Nas últimas décadas a implantação de CDI tem crescido exponencialmente e, muitas vezes, abrange indivíduos que, embora apresentem uma função miocárdica normal, possuem alterações genéticas passíveis de provocar arritmias fatais4. Como tal, é cada vez mais comum observarmos indivíduos jovens portadores de CDI. Muitos destes jovens são atletas e, de acordo com as recomendações2, deveriam ser desqualificados da prática desportiva2. O problema agrava‐se exponencialmente quando, em alguns casos, o atleta já possui um estatuto profissional e, devido a esta condição, é impedido de praticar a sua profissão, estando sujeito a todos os problemas que daí advêm.

Apesar da existência destas recomendações, segundo um inquérito realizado em 2006, muitos são os clínicos que não as seguem e optam por tomar a decisão terapêutica mediante a individualidade do atleta, da patologia e do desporto em questão5. Nos últimos anos, esta temática foi explorada por alguns centros e os achados poderão fornecer suporte para uma decisão baseada em evidência e levar a mudanças na abordagem desta população. Como tal, este trabalho tem como objetivo rever de forma sistemática o estado da arte no que diz respeito a esta temática.

Materiais e métodos

A pesquisa de informação para a realização do presente trabalho foi efetuada com base na leitura e compilação de informação presente em artigos científicos indexados na MEDLINE (via PubMed). Para esta pesquisa usaram‐se os seguintes termos em combinação: (sudden cardiac death) AND (sport OR physical exercise) AND (defibrillator). Para cada pesquisa foram definidos filtros com restrição para artigos editados em inglês, português ou espanhol, com disponibilização de resumo/abstract para consulta prévia e com data de publicação compreendida entre 1985‐2014.

A seleção dos trabalhos a incluir foi realizada com base na leitura do resumo/abstract dos mesmos, a partir da qual foi inferida a sua pertinência e adequação aos critérios de inclusão e exclusão definidos em seguida. Nos resultados da pesquisa com potencial interesse, foi lido o texto integral para confirmar a inclusão/exclusão do artigo. Critérios de inclusão: 1) investigações incluindo doentes portadores de CDI realizando prática desportiva.

Estes estudos podem ser compostos a) exclusivamente por desportistas portadores de CDI, b) portadores de CDI desportistas e não desportistas, e) desportistas portadores e não portadores de CDI; 2) registos relativos à caracterização e esclarecimento de aspetos epidemiológicos da MSC em desportistas foram também considerados elegíveis. Complementarmente à informação prévia, como alternativa, foram também considerados elegíveis: 3) consensos de peritos ou recomendações internacionais relativamente à temática.

Critérios de exclusão: cartas ao editor; casos clínicos ou artigos de revisão não incluindo novos dados observacionais sobre a temática.

Foram realizadas pesquisas adicionais com expressões alternativas, utilizando diferentes motores de busca (p. ex.: Sci Hub, B‐Online) e consultadas as referências dos artigos selecionados, para deteção de mais bibliografia com potencial interesse, que foi posteriormente analisada mediante a utilização dos mesmos critérios de inclusão/exclusão.

Resultados

Foram obtidas 378 entradas após a utilização da expressão de pesquisa. Destas, após leitura do resumo, 340 foram excluídas por serem consideradas inapropriadas para a revisão sistemática em questão. As restantes 38 foram cuidadosamente analisadas e após pesquisa de critérios de inclusão/exclusão. Foram obtidas mais entradas potencialmente interessantes para o âmbito da revisão, que foram avaliadas à luz dos critérios de inclusão e exclusão. Finalmente, 36 trabalhos foram considerados elegíveis: 35 artigos completos3–29,31–36 e um resumo apresentado em congresso30. O processo de seleção encontra‐se ilustrado na Figura 1.

Figura 1.

Diagrama ilustrando a seleção dos estudos.

(0.33MB).
Definição e epidemiologia da morte súbita cardíaca

A MSC é uma das principais causas de mortalidade de origem cardiovascular em todo o mundo, sendo responsável por mais de 50% de todos os casos e deve‐se, sobretudo, a arritmias «malignas» de origem ventricular6, podendo ser definida como: morte inesperada e súbita, de causa cardíaca, não traumática, num indivíduo sem suspeita de qualquer doença potencialmente fatal, ocorrendo habitualmente num curto intervalo de tempo após o início dos sintomas (geralmente menos de uma hora)7. Embora seja um acontecimento raro nos jovens, uma das principais particularidades deste é o facto de que a prática desportiva de alta competição aumenta o risco desta ocorrência8. A incidência anual de MSC em atletas jovens com idade inferior a 35 anos é descrita entre 1:100000‐1:3000007, embora recentemente alguns estudos tenham considerado este valor uma subestimativa, apontando a razão 1:50000 como mais realista9. É um fenómeno mais frequente no sexo masculino10.

Causas de morte súbita cardíaca

O evento fatal é geralmente causado por distúrbios rítmicos, nomeadamente taquidisritmias, como a fibrilhação ventricular. A etiologia da disritmia é variada (isquemia, disritmia primária, condução auricular rápida), mas o denominador comum é a promoção de instabilidade eléctrica7 (Tabela 2). A principal causa de MSC no atleta jovem é a miocardiopatia hipertrófica (MCH)11. No entanto, uma pequena particularidade foi descrita por um estudo na região de Veneto, Itália, que mostrava que a principal causa seria a displasia arritmogénica do ventrículo direito12. Este facto pode ser explicado por variabilidade regional (Europa versus América do Norte) e pelo facto de em Itália haver um método de screening diferente dos restantes países, que é feito em todos os atletas de competição com menos de 35 anos. Este é constituído por uma cuidada história clínica, história familiar, exame físico e um ECG de 12 derivações, o que torna mais provável a deteção de uma MCH (mais de 95% dos casos têm ECG claramente patológicos)13 do que uma displasia arritmogénica do ventrículo direito, ficando estes últimos casos, que são diagnosticados predominantemente na autópsia, responsáveis por grande parte da mortalidade14. Em atletas com mais de 35 anos, a principal causa é a doença coronária aterosclerótica3.

Tabela 2.

Causas de morte súbita em 387 atletas jovens (adaptado de Maron, 200311)

Causa  Atletas  n (%) 
Cardiomiopatia hipertrófica  102  (26,4) 
Commotio Cordis  77  (19,9) 
Anomalias das artérias coronárias  53  (13,7) 
Hipertrofia ventricular esquerda de causa indeterminada  29  (7,5) 
Miocardite  20  (5,2) 
Rutura de aneurisma aórtico  12  (3,1) 
Miocardiopatia ventricular direita  11  (2,8) 
Pontes miocárdicas  11  (2,8) 
Estenose da válvula aórtica  10  (2,6) 
Doença aterosclerótica das coronárias  10  (2,6) 
Cardiomiopatia dilatada  (2,3) 
Degenerescência mixomatosa da válvula mitral  (2,3) 
Asma  (2,1) 
Choque de calor  (1,6) 
Abuso de drogas  (1,0) 
Outras causas cardiovasculares  (1,0) 
Síndrome QT‐longo  (0,8) 
Sarcoidose cardíaca  (0,8) 
Traumatismo envolvendo lesão estrutural cardíaca  (0,8) 
Rutura artéria cerebral  (0,8) 
Definição de desporto e atleta

Segundo a BC36, podemos definir o atleta como aquele que participa num desporto, de equipa ou individual, que compete regularmente e que possui um treino sistemático de forma a atingir níveis de excelência, que são geralmente de carácter intenso15. Usando a mesma fonte, podemos definir o desporto como uma atividade organizada, competitiva, que envolve habilidade e requer compromisso, estratégia e fair play, na qual o vencedor é definido de acordo com determinados objetivos e regras. É de notar que esta definição não contempla atividades recreativas/lazer, visto não se tratarem de atividades competitivas15. Desta forma, podemos verificar que, segundo a BC36 e a ESC, o desporto é considerado mais extenuante que as outras atividades recreativas e, como tal, vai colocar o paciente num maior grau de risco relativamente à hipótese de uma arritmia fatal. Contudo, é importante ter em conta que alguns desportos de competição podem ter menor risco do que algumas atividades de lazer. Por exemplo, um atleta de competição que pratique tiro ao alvo terá, à partida, menor probabilidade de sofrer um ataque cardíaco do que um praticante amador de halterofilismo2. Como tal, para uma melhor estratificação do risco as recomendações impostas pela BC36 estabeleceram uma classificação dos desportos baseada na sua componente «estática» ou «dinâmica» e ainda segundo a sua intensidade (baixa, moderada ou alta) (Tabela 1). Assim, podemos ter o halterofilismo como um desporto com uma componente estática elevada e o atletismo com uma grande componente dinâmica16.

Utilização de cardioversor desfibrilhador implantável em desportistas

O tratamento para a fibrilhação ventricular é tanto mais eficaz quanto mais imediata e precoce for a desfibrilhação. Se o choque for aplicado nos primeiros 30 segundos, há uma hipótese de aproximadamente 90% de uma ressuscitação bem‐sucedida. Contudo, o sucesso diminui cerca de 7‐10% por cada minuto que passe desde o início do evento até à ressuscitação, acabando por haver apenas 10% de probabilidade de sucesso se esta só for iniciada após dez minutos do evento17,18.

Graças à sua localização, os CDI são capazes de interpretar o ritmo cardíaco e de aplicar o choque quase de imediato, o que faz com que tenham taxas de sucesso na ordem dos 95‐99%19. Graças a estes resultados, nos últimos 20 anos os CDI tornaram‐se na terapêutica gold standard para as arritmias ventriculares4.

As indicações para implementação de um CDI num atleta são semelhantes às estabelecidas para o resto da população, de acordo com as recomendações da ESC6,20 e do American College of Cardiology/American Heart Association (ACC/AHA)6. Quanto às complicações, as principais são o deslocamento/fratura dos eletrocateteres, choques inapropriados e a migração/extrusão do gerador3.

É de notar que graças aos métodos de screening cada vez mais difundidos em famílias com história de doenças cardíacas arritmogénicas hereditárias, canalopatias, miocardiopatias e ainda devido à cada vez melhor identificação dos silent mutation carriers, os grupos com indicação primária para colocação de CDI têm vindo a aumentar exponencialmente nos últimos anos. Assim, vemos cada vez mais pacientes que aparentemente são saudáveis e muito ativos, mas que por haver um risco elevado de arritmia ou para prevenir uma futura recorrência passam a possuir um CDI devido ao elevado risco de MSC como primeiro «sintoma» (utilização em contexto de prevenção primária).

Riscos específicos associados ao cardioversor desfibrilhador implantável na prática desportiva

Existem várias considerações, características dos atletas, que podem colocar em causa a segurança e a eficácia do CDI nesta população e que, por isso, condicionam a decisão de permitir ou não o regresso à prática desportiva aquando da implementação3 (Tabela 3). Um dos grandes receios é o de o CDI não ser capaz de desfibrilhar corretamente o atleta sujeito a grande esforço físico. Isto pode resultar de alterações fisiológicas durante o exercício extremo, como o aumento dos níveis de catecolaminas circulantes, que se relacionam posteriormente com condições como a desidratação, acidose, distúrbios eletrolíticos e depleção de volume, que por sua vez aumentam a propensão e a perpetuação de eventos arrítmicos22. Há falta de dados que comprovem a eficácia de um choque entregue nas condições metabólicas resultantes de exercício intenso21.

Tabela 3.

Condicionantes relativas à utilização de CDI em atletas (adaptado de Lawless, 20083)

↑ Arritmias ventriculares devido ao exercício 
Receio de falha do CDI em desfibrilhar o atleta 
Agravamento de casos de DAVD e MCD 
↑ Choques inapropriados devido a taquicardia sinusal, taquicardia supraventricular ou fibrilação auricular. 
Lesão devido à perda momentânea da consciência e/ou controlo devido à arritmia ou ao próprio choque 
Lesão do próprio mecanismo do CDI1. Fratura dos eletrocateteres2. Migração/extrusão do gerador3. Traumatismo/destruição/«Reset» gerador 
Eficácia do CDI no ambiente de exercício intenso ainda não foi devidamente comprovada 

CDI: cardioversor desfibrilhador implantável; DAVD: displasia arritmogénica do ventrículo direito; MCD: miocardiopatia dilatada.

Por outro lado, sabe‐se também que o exercício intenso e de forma continuada promove o agravamento do estado de algumas condições, como são os casos de displasia arritmogénica do ventrículo direito e de miocardiopatia dilatada23,24.

Outro aspeto é o do potencial de choques inapropriados aumentar durante a atividade física devido à ocorrência de taquicardia sinusal, taquicardia supraventricular ou fibrilação auricular. Além deste, outro perigo para o atleta e, por vezes, para o espectador (no caso dos desportos motorizados), é o da lesão resultante da possível perda transitória de consciência e/ou de controlo devido à arritmia ou ao próprio choque do CDI. Pode ainda haver dano do próprio CDI ou elétrodo devido, sobretudo, ao movimento extensivo e repetitivo dos braços que se observa em alguns desportos como o golfe ou o boxe, ou devido a impactos diretamente no próprio CDI ou no espaço infraclavicular (levando a «esmagamento» do elétrodo nessa zona) como pode acontecer em qualquer desporto de contacto3. Por fim, os defensores da não inclusão de atletas com CDI afirmam que os choques inapropriados podem ter um efeito psicológico negativo no portador de CDI.

Como tal, as atuais recomendações propõem a desqualificação do atleta possuidor de CDI em todos os desportos de competição exceto aqueles que exigem pouca componente cardiovascular (tal como o golfe, bilhar ou bowling – Grupo IA)16,25 (Tabela 1).

Novos estudos e controvérsia

A Tabela 4 resume os principais resultados dos estudos avaliando a utilização de CDI em desportistas.

Tabela 4.

Principais estudos avaliando a utilização de CDI em desportistas

Autor(ano)  População  Principais achados/conclusões  Limitações 
Lampert e Cannom et al. (2006)5  614 clínicos envolvidos na avaliação de desportistas  ‐ Só 10% dos clínicos seguia as recomendações à risca‐ 2/3 tomavam a decisão mediante a doença subjacente‐ Muitos doentes portadores de CDI prosseguiam com a prática desportiva  ‐ Trata‐se de um inquérito e não de um estudo prospetivo‐ Participantes autosselecionados‐ Respostas podem não representar a opinião de todos os clínicos da Heart Rhythm Society‐ Recordação dos eventos pode ser seletiva‐ Fatores com potencial para predisposição aos choques não foram determinados 
Lampert e Olshansky et al.(2013)26  372 desportistas portadores de CDIn=137 alta competição  Muitos atletas com CDI podem enveredar por desportos vigorosos e competitivos sem aparentes riscos acrescidos do ponto de vista arrítmico e para o sistema do CDI/elétrodo  ‐ Doentes autosselecionados‐ Maioria dos indivíduos tinha excelentes frações de ejeção‐ Nem todos os choques eram imediatamente reportados, alguns só no follow‐up semestral 
Saarel et al.(2014)31  21 desportistas portadores de CDIn=21 (alta competição)  Complicações (n=0‐0%), choques apropriados (n=7‐33%) e choques inapropriados (n=1‐5%) foram raros na população de atletas‐ Os desportistas optaram por continuar a prática desportiva, pois esta aparenta ser segura  ‐ Amostra pequena 

CDI: cardioversor desfibrilhador implantável.

Em 2006, um inquérito5 realizado a membros da Heart Rhytm Society, com o intuito de avaliar quais as decisões que os clínicos estavam a tomar relativamente à prática desportiva em pacientes com CDI, chegou a conclusões que mostraram uma realidade muito diferente daquela que seria a esperada pelas recomendações. Dos 614 clínicos que responderam, apenas 62 (10%) seguiam à risca as recomendações da BC36 e da ESC, proibindo a prática de todos os desportos exceto os inseridos na categoria IA, enquanto a grande maioria (n=464; 76%) recomendava apenas a não realização de desportos de contacto. Cerca de 273 (45%) aconselharam os doentes a abandonar a competição. Além do mais, 70% dos inquiridos admitiu seguir atletas com CDI que continuavam a praticar desportos vigorosos e/ou de competição. Mais de dois terços responderam que tomavam a sua decisão mediante a doença subjacente e não apenas baseado nas recomendações. É ainda importante referir que 40% dos clínicos inquiridos tinha mais de dez anos de experiência com doentes portadores de CDI. Embora houvesse uma taxa elevada de doentes a participarem em desportos e a quantidade de choques tenha sido considerável, efeitos adversos foram raros. A maior parte deveu‐se a falhas no dispositivo, como fratura do elétrodo e migração, causadas por movimentos repetitivos dos braços (n=28), como é o caso da halterofilismo (n=16), o ténis (n=2) e o golfe (n=5). Este último, curiosamente, faz parte dos desportos do tipo IA, aconselhados pelas recomendações. Enquanto houve consenso entre os clínicos de que patologias como a insuficiência cardíaca congestiva e doença isquémica devem limitar a participação dos atletas, a mesma opinião já não foi partilhada no que toca à síndrome do QT‐longo e à síndrome de Brugada5.

Mediante estes resultados, observando que os pacientes com CDI, independentemente das recomendações, continuavam a enveredar por desportos de competição, foi iniciado um registo multicêntrico intenacional26. Os participantes deste estudo foram recrutados através dos seus médicos, websites de pacientes e mailling lists. Os dados foram recolhidos através de entrevistas telefónicas a cada seis meses e os registos médicos obtidos a partir de 41 centros nos EUA e 18 na Europa. Os pacientes foram questionados acerca de choques recebidos, sequelas, preshock activity e sobre qualquer outra alteração relativa à sua prática desportiva, saúde ou estado do CDI. Foram incluídos 372 atletas. Desses, 328 estavam envolvidos em desportos organizados e 44 em desportos classificados como de alto risco. A média de idades foi de 33 anos e 33% eram do sexo feminino. As patologias mais comummente encontradas foram a síndrome do QT‐longo (n=73), MCH (n=63) e displasia arritmogénica do ventrículo direito (n=55). Quanto aos desportos mais comuns, o atletismo (n=106), o futebol (n=69) e o basquetebol (n=56) constituem o topo. Já o esqui (n=71) foi o desporto de alto risco mais observado.

Durante o acompanhamento que durou, em média, 31 meses não se registaram mortes, paragens cardíacas com necessidade de ressuscitação, lesões relacionadas com a arritmia ou com o choque durante a prática desportiva. Ocorreram 49 choques em 36 participantes (10%) durante competição/prática desportiva, 39 em 29 (8%) durante outra atividade física e 33 em 23 (6%) durante o repouso. Houve mais indivíduos a receber choques durante competição/prática desportiva e atividade física do que em repouso (16 versus 6%; p<0,0001), no entanto, não houve diferenças significativas entre a proporção daqueles que receberam um choque durante competição/prática desportiva e os que receberam uma intervenção durante qualquer outra atividade física dita normal (10 versus 8%; p=0,34). Houve mais choques apropriados durante competição ou qualquer outra atividade física do que durante o repouso (8 versus 3%; p=0,006), contudo, não houve diferença entre quem estava em competição e quem estava apenas a fazer atividade física (6 versus 4%; p=0,18). Dos 60 indivíduos com menos de 21 anos, participantes em desportos de competição, 17 (28%) experimentaram um total de 25 choques. Não houve diferença significativa entre a quantidade de choques apropriados ocorrida no subgrupo dos atletas de competição durante competição/prática (1%) e a percentagem ocorrida durante o repouso (4%).

Não houve registo de mau funcionamento do CDI em 97% dos participantes nos primeiros cinco anos. Esta percentagem passou para os 90% aos dez anos. Por fim, 70% dos atletas que receberam choques durante a atividade desportiva decidiram continuar a prática desportiva.

Estes dados sugerem que muitos atletas podem participar, de forma segura, em muitos desportos de contacto e/ou vigorosos, sem haver risco de lesão física, lesão do dispositivo ou falha do mesmo em desfibrilhar eficazmente. De uma forma geral, as taxas de ocorrência de choques na população estudada é semelhante à descrita em indivíduos portadores de CDI que não praticam desporto ou são menos ativos27,28. A taxa de falha ou fratura de elétrodos foi também semelhante às de 85‐98% a cinco anos observadas nas populações ditas normais29.

Desqualificar estes atletas da prática desportiva pode afetar significativamente a sua qualidade de vida30, sobretudo os mais jovens, que apontam o sentirem‐se excluídos e «não normais» como o principal problema de terem um CDI. O facto de a maior parte dos atletas do estudo ter continuado a competir, mesmo depois de terem recebido um choque, sugere que os benefícios resultantes da prática desportiva se sobrepõem ao impacto negativo que os choques podem provocar.

No seguimento dos resultados anteriores, mais investigadores têm procurado avaliar esta realidade. Assim, Saarel et al.31 apresentaram recentemente resultados preliminares de um registo com 21 jovens portadores de CDI, que participavam regularmente em desportos competitivos e vigorosos (superiores à classe IA, tanto para o componente estático como para o dinâmico). Desses 21, dez tinham MCH, seis apresentavam síndromes arritmogénicas hereditárias e cinco tinham cardiomiopatia. Foram seguidos, em média, durante cinco anos e os desportos mais praticados eram o basquetebol e o basebol. Os resultados não mostraram qualquer mortalidade nem aumento da morbilidade após quatro anos. Quanto aos choques, um jovem recebeu dois apropriados para tratamento de taquiarritmias ventriculares que surgiram no contexto de um jogo de basquetebol e, depois, decidiu deixar o desporto de competição. Mais nenhum dos participantes apresentou um aumento da incidência de choques durante a prática, tanto apropriados como inapropriados. Também não foi registado qualquer aumento na incidência de problemas técnicos no CDI. É importante referir que todos os participantes do estudo estavam sob terapia com β‐bloqueantes para prevenção de eventuais choques inapropriados devido a taquicardia, tanto sinusal como ventricular31.

Discussão

Os resultados de recentes estudos5,26,31 parecem mostrar que a prática desportiva em portadores de CDI poderá não ser tão deletéria como anteriormente era pensado. A decisão de desqualificar um atleta deverá ser cada vez mais personalizada e adaptada a cada caso em particular.

Nos últimos anos, tem vindo a ser progressivamente mais utilizada em medicina uma postura mais relacionada com decisão centrada no doente, em que este, as suas motivações e preferências são tidas em conta de forma a lhe dar um pouco mais de empowerment/autonomia e papel na decisão32. Porém, deve evitar‐se atingir o reverso da medalha, uma situação em que o médico se comporte como um mero informador e onde é dada total autonomia ao doente para tomar a decisão, independentemente de qualquer opinião que o clínico possua33,34. As recomendações ainda se centram bastante no cardiologista como agente principal da decisão e ainda é desconhecido atualmente qual o grau de empowerment dos desportistas na decisão de «desqualificação»/interrupção da prática desportiva. É importante aconselhar este tipo de pacientes (atletas), gastando o tempo necessário a explicar clara e detalhadamente a informação conhecida (riscos da prática desportiva, benefícios e riscos do CDI e zonas em que não há evidência) e responder a todas as questões que daí possam provir, de forma a proporcionar ao doente um maior sentido de controlo de si mesmo e possibilidade de uma decisão conjunta e informada.

Parece existir consenso entre os clínicos relativamente a patologias como a insuficiência cardíaca congestiva, MCH e doença isquémica e limitação da prática desportiva. O mesmo já não ocorre com, por exemplo, a síndrome do QT‐longo e a síndrome de Brugada3. Também na MCH, a prática de diferentes desportos (p. ex. boxe e futebol) pode colocar os desportistas em diferentes grupos de risco. Situações em que a decisão final não levantará muitas dúvidas serão, por exemplo, casos de disfunção ventricular esquerda com ocorrência de arritmias induzidas pelo esforço. Porém, em doentes portadores de CDI e sem compromisso da função do ventrículo esquerdo já terão que ser tidos em conta mais fatores35.

Embora os choques CDI possam levar a um decréscimo na qualidade de vida36, também a restrição à prática desportiva pode ter igual, ou mesmo pior, efeito. É um facto conhecido de que a atividade física reduz amplamente a morbilidade e mortalidade cardiovascular através de uma variedade de mecanismos37. Há que realçar que muitas vezes está em causa o abandono da profissão ou de uma paixão, o que pode ter graves repercussões pessoais para o atleta30.

Limitações

Existem algumas limitações neste trabalho. A primeira é que há poucos estudos avaliando a utilização de CDI na população dos desportistas. Segunda, o tempo de seguimento dos atletas portadores destes dispositivos é curto, não havendo dados nesta população relativos à eficácia e segurança na utilização a longo prazo. Terceiro, a utilização de desfibrilhadores automáticos externos não constitui alvo de análise deste trabalho por ser uma temática bastante específica e para a qual já existem extensos resultados e consenso na comunidade. Por último, a maioria da evidência resulta de pacientes portadores de dispositivos com elétrodos intravasculares. Dados relativos ao CDI subcutâneo são ainda muito escassos.

Conclusões

A abordagem ao desportista portador de CDI deve ser personalizada e adequada ao paciente (de acordo com a cardiopatia e tipo de desporto) em questão. Uma abordagem generalista com desqualificação de quase todos os desportistas sem atender às suas especificidades pode prejudicar uma quantidade considerável de doentes aos quais será vedada a possibilidade de manter a sua profissão ou prática, para a qual poderiam apresentar um eventual baixo risco de MSC.

As recomendações da BC36 já têm quase dez anos e suportam‐se apenas em consensos de opinião de especialistas, face à falta de evidência na época. Os recentes estudos poderão levar a uma revisão das mesmas. Porém, a evidência atual ainda é escassa e serão necessários mais estudos até termos dados sólidos e que respondam de forma clara a muitas das interrogações existentes nesta área.

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