In theory, theory and practice are the same. In practice, they are not. Albert Einstein
A insuficiência cardíaca (IC) é considerada «a nova epidemia» cardiovascular do século XXI, dada a sua crescente prevalência, elevada mortalidade e os enormes custos da doença1. Em Portugal, a IC constitui já um importante problema de saúde pública em que urge implantar um conjunto de medidas, de âmbito local e nacional, que possam alterar o atual paradigma da organização dos cuidados de saúde relacionados com a IC2.
O tratamento farmacológico da insuficiência cardíaca com fração de ejeção reduzida (ICFER) é baseado no início e na titulação das doses dos fármacos modificadores do prognóstico, nomeadamente os IECAs/ARAs, os bloqueadores‐beta e os antagonistas da aldosterona 3. Recentemente, o estudo PARADIGM‐HF mostrou que o uso de sacubitril‐valsartan, em substituição do IECA, permitia uma redução adicional de 20% do risco de eventos cardiovasculares 4. Esse estudo mostrou ainda que essa nova estratégia de «modulação», e não apenas de inibição, neuro‐humoral permitia um aumento da sobrevida de cerca de 1‐2 anos no doente com ICFER5.
Atendendo aos bons resultados do PARADIGM‐HF, o uso do sacubitril/valsartan foi incorporado nas guidelines da Sociedade Europeia de Cardiologia como uma recomendação de classe IB nos doentes que permanecem sintomáticos após aprimoramento da terapêutica3. As últimas recomendações americanas de tratamento da IC foram ainda mais além, passando a recomendar que em doentes com IC de classe II ou III da NYHA que tolerem IECA ou ARA esse seja substituído pelo sabubitril/valsartan, com o objetivo de obter uma redução adicional da morbilidade e mortalidade por IC6.
Contudo, contrariando a magnitude da evidência e as recomendações das guidelines, a utilização do sacubitril/valsartan no «mundo real» tem sido lenta e abaixo do esperado7. Existem múltiplas razões que explicam essa dissociação entre a «teoria» (nomeadamente as recomendações das guidelines) e a prática clínica. Por vezes, os doentes testados na fase dos ensaios clínicos não são representativos da população do «mundo real». Neste número da Revista Portuguesa de Cardiologia, os autores deste estudo8 mostram que apenas um em cada quatro doentes com ICFER, seguidos numa consulta de IC de um hospital terciário português, cumpria os critérios de inclusão do estudo PARADIGM‐HF. Num estudo semelhante, que avaliou cerca de 6.000 doentes consecutivos referenciados para uma clínica de IC na Inglaterra, os investigadores reportaram dados semelhantes, mostraram que apenas 20% dos doentes cumpriam os critérios de inclusão do estudo PARADIGM‐HF9. Nesse estudo, é sobretudo interessante analisar que essa proporção aumentou para 60% se não fosse considerada a necessidade de atingimento das doses máximas de IECA/ARA. Esses dados demonstram, mais uma vez, que em muitos doentes com IC não é feita a titulação até às doses máximas recomendadas de IECAs/ARAs, seja pela presença de hipotensão, insuficiência renal ou outras comorbilidades, seja pela inércia clínica em titular as doses dos fármacos na IC.
Importa por isso discutir se deve ser obrigatória a titulação dos fármacos até às suas doses máximas antes de ser considerada a introdução do sacubitril/valsartan. No ensaio clínico PARADIGM‐HF os benefícios do fármaco foram consistentes e independentes das doses e da terapêutica de base10. Além disso, durante o decurso do ensaio clínico cerca de 40% dos doentes tiveram de fazer uma redução de dose de enalapril, sendo os benefícios semelhantes nestes indivíduos11. Assim, atendendo que o sacubitril/valsartan tem benefícios na sobrevida que vão além do possibilitado com o incremento da dose de IECA/ARA, mesmo os doentes a fazerem doses submáximas de IECA ou ARA devem preferencialmente passar a fazer doses equiparáveis de sacubitril/valsartan12.
Em conclusão, a introdução do sacubitril/valsartan constitui um avanço inegável no tratamento da ICFEP13. Está indicado como substituto do IECA/ARA nos doentes com IC com fração de ejeção < 40% e que tenham classe NYHA II‐III. No tratamento da IC, o atraso na iniciação da terapêutica modificadora do prognóstico associa‐se a um aumento significativo da mortalidade14,15. Por isso, como dizia Einstein, sabendo que muitas vezes (sobretudo na medicina) a teoria e a prática não são semelhantes, o sucesso do tratamento da IC estará dependente da implementação da melhor evidência científica na prática clínica do mundo real da insuficiência cardíaca.
Conflitos de interesseO autor declara não haver conflitos de interesse.