A endocardite infecciosa é uma doença cuja mortalidade, apesar das opções terapêuticas médicas e cirúrgicas existentes, se mantém elevada. A intervenção cirúrgica está indicada em casos de insuficiência cardíaca diretamente relacionada com a disfunção valvular, infecção não controlada e, por vezes, na prevenção de fenómenos embólicos. Os autores descrevem o caso de um doente de 56 anos, com doença degenerativa mitroaórtica, esplenectomizado e com linfoma de Hodgkin recentemente recidivado, internado por endocardite infecciosa a Streptococcus dysgalactiae. Ao trigésimo dia de antibioticoterapia dirigida verificou-se um aumento significativo do volume e mobilidade da vegetação mitral, tendo sido equacionada a opção cirúrgica. No entanto, e dada a estabilidade clínica e analítica do doente, optou-se por uma atitude conservadora com prolongamento da antibioticoterapia. Foi constatada regressão franca da vegetação sete dias depois. Dado o comportamento atípico da vegetação com regressão mais lenta que o habitual para o agente em causa, os autores sugerem que, em doentes com algum grau de imunocompromisso, a antibioticoterapia deva ser mais prolongada.
Infective endocarditis continues to be associated with high mortality, despite the medical and surgical therapeutic options available. Surgical intervention is indicated in cases of heart failure or uncontrolled infection and sometimes for the prevention of embolic phenomena. The authors present the case of a 56-year-old male patient, with fibro-calcific mitral-aortic valve disease, splenectomized and with recently relapsed Hodgkin's lymphoma, who was admitted with infective endocarditis due to Streptococcus dysgalactiae. On the thirtieth day of directed antibiotic therapy, the mitral vegetation showed a significant increase in size and mobility. Surgery was considered at this point. However, given the patient's clinical stability and laboratory results, it was decided to adopt a conservative approach and to extend antibiotic therapy. The vegetation had regressed considerably seven days later. Given this atypical vegetation behavior, with slower than usual regression for the causative agent, the authors suggest that antibiotic therapy should be extended in patients with some degree of immunosuppression.
Embora a epidemiologia da endocardite infecciosa se tenha alterado nos últimos 50 anos (a cardiopatia reumática é cada vez menos frequente, em contraponto com a doença valvular degenerativa), a incidência e a mortalidade têm-se mantido constantes1.
A incidência é de quatro a dez em cada cem mil pessoas por ano, sendo ligeiramente mais frequente no sexo masculino, e a mortalidade, apesar dos sofisticados meios diagnósticos e terapêuticos disponíveis, mantém-se elevada: cerca de um em cada cem mil, anualmente2,3.
O tratamento da endocardite infecciosa tem como objetivos a erradicação do microrganismo responsável e a resolução de eventuais complicações infecciosas intra e extracardíacas.
O primeiro objetivo é muitas vezes alcançado com antibioticoterapia bactericida endovenosa atempada e dirigida ao agente, enquanto o segundo exige frequentemente intervenção cirúrgica.
O regime de antibioticoterapia é adaptado ao tipo de válvula envolvida (nativa ou protésica), à relação temporal entre implantação da prótese valvular e evento infeccioso (prótese valvular implantada há mais ou menos de um ano) e ao agente etiológico, quando identificado4.
A evidência na literatura em relação à mais adequada duração da antibioticoterapia em endocardites a agentes não oportunistas em doentes imunocomprometidos é escassa.
Caso clínicoDoente do sexo masculino, 56 anos, com doença degenerativa mitroaórtica sem compromisso funcional significativo, hipertenso, esplenectomizado desde 1980 no contexto de doença de Hodgkin diagnosticada nesse ano e com recidiva abdominal recente.
É internado no Instituto Português de Oncologia de Lisboa a 13/10/2010, em choque séptico, tendo iniciado suporte inotrópico e antibioticoterapia com piperacilina e tazobactam, à qual se associou posteriormente vancomicina por isolamento de Streptococcus dysgalactiae em hemoculturas. Realizou ecocardiograma transesofágico (ETE) que revelou vegetações nas válvulas mitral e aórtica. Realizou ainda estadiamento da doença de Hodgkin, que revelou múltiplas adenopatias infradiafragmáticas, cuja biópsia permitiu diagnosticar recidiva de linfoma de Hodgkin.
Transferido para o nosso hospital a 28/10/2010, já estabilizado clinicamente, com o diagnóstico de endocardite infecciosa das válvulas mitral e aórtica a S. dysgalactiae. Foi alterada antibioticoterapia, de acordo com teste de sensibilidade antibiótica, para ceftriaxone, tendo cumprido também, durante a primeira semana, gentamicina.
O ETE na data da admissão revelava válvula aórtica moderadamente espessada com abertura ligeiramente diminuída e regurgitação ligeira e pequena vegetação móvel com cerca de cinco milímetros de comprimento apensa à face arterial da válvula aórtica (Figuras 1 e 2). Na válvula mitral observava-se imagem sugestiva de vegetação com cerca de cinco milímetros de comprimento adjacente à porção basal da face ventricular do folheto anterior; moderada calcificação do anel e regurgitação mitral ligeira (Figura 3).
Durante o internamento, manteve-se clinicamente estável e assintomático, cumprindo antibioticoterapia dirigida. Ao trigésimo primeiro dia de antibioticoterapia é documentado em ecocardiogramas transtorácico e transesofágico desaparecimento da vegetação aórtica. No entanto, assiste-se a um aumento muito significativo do volume (catorze milímetros de comprimento) e mobilidade da vegetação mitral com pedículo mais longo e extremidade arredondada mais evidente (Figura 4); esta vegetação é muito móvel na câmara de saída do ventrículo esquerdo, entrando em contacto com a face ventricular das cúspides aórticas durante a sístole, sugerindo acentuado risco embólico.
Atendendo às características da vegetação e ao tempo de antibioticoterapia decorrido, equacionou-se intervenção cirúrgica.
No entanto, tendo em conta as comorbilidades, nomeadamente a imunossupressão, a estabilidade clínica (apirexia mantida, ausência de sinais de insuficiência cardíaca ou de embolização sistémica) e analítica (PCR inferior a 2mg/dL, sem leucocitose) do doente e também a ausência de complicações locais, optou-se por uma atitude expectante com prolongamento da antibioticoterapia, tendo repetido ecocardiograma transtorácico após sete dias. Este mostrou uma franca redução do volume e mobilidade da vegetação em causa, aspectos confirmados em ecocardiograma transesofágico (Figura 5) realizado no quadragésimo sexto dia de antibioticoterapia, pelo que teve alta.
O doente mantém-se assintomático, com hemoculturas negativas.
DiscussãoNa endocardite infecciosa o tratamento cirúrgico é usado em cerca de metade dos casos, por complicações graves5. Se por um lado deve ser uma opção na fase ativa da doença, para evitar a progressão da insuficiência cardíaca, dano estrutural irreversível e a embolização sistémica, por outro a fase ativa da doença associa-se a um risco operatório mais elevado6.
As indicações atualmente aceites para tratamento cirúrgico são: (1) insuficiência cardíaca refratária diretamente relacionada com a disfunção valvular; (2) infecção não controlada; (3) prevenção de fenómenos embólicos7.
O risco de fenómenos embólicos é muito elevado nos doentes com endocardite infecciosa (20-50%). No entanto este risco decresce rapidamente após o início de antibioticoterapia dirigida, em particular após as duas primeiras semanas8.
O risco embólico das vegetações relaciona-se fortemente com o seu tamanho e mobilidade, estando preconizada a cirurgia para vegetações de diâmetro superior a dez milímetros após uma ou mais embolias, ou quando associadas a preditores de evolução desfavorável – insuficiência cardíaca, infecção persistente – e, ocasionalmente, em vegetações com diâmetro superior a quinze milímetros. Esta última recomendação é de classe Iib, com nível de evidência C9.
Existem poucos relatos de casos de endocardite em doentes imunocomprometidos, sobretudo a agentes não oportunistas e esta situação não está especificamente contemplada em guidelines.
O S. dysgalactiae, um streptococcus do grupo C e G de Lancefield, embora possa estar associado a maior risco de complicações locais, nomeadamente abcessos, não exige um prolongamento da antibioticoterapia quando em válvula nativa, embora o tratamento de curta duração (duas semanas) esteja contraindicado10,11.
O caso apresentado, dado o comportamento atípico da vegetação com regressão mais lenta que o habitual para o agente em causa, pode sugerir que em doentes com algum grau de imunocompromisso, a antibioticoterapia deva ser mais prolongada.
ConclusõesO caso clínico ilustra uma evolução pouco habitual da doença e a necessidade de uma atitude ponderada, não exclusivamente baseada em guidelines, mas em que se avalia o risco/benefício da intervenção cirúrgica conjugando as características do doente, evolução clínica, achados analíticos, imagiológicos e tempo de antibioticoterapia para que seja tomada a melhor decisão terapêutica.
Conflito de interessesOs autores declaram não haver conflito de interesses.