Homem de 34 anos com endocardite infecciosa da válvula aórtica causada por estafilococo aureus meticilino resistente (MRSA), complicada por abcesso do anel aórtico. Na cirúrgica foi implantada prótese aórtica mecânica St. Jude 23HP. O ETT antes da alta evidenciou um aneurisma micótico no segmento basal da parede inferior do ventrículo esquerdo, confirmado por ressonância magnética cardíaca, tendo sido decidido reintervir. O aneurisma foi encerrado com retalho de pericárdio mas a válvula mitral teve de ser substituída.
Apesar de persistir uma pequena fuga no ETE antes da alta, verificou-se resolução total da lesão no exame de reavaliação realizado nove meses depois.
Este caso documenta uma complicação muito rara da endocardite da válvula aórtica e mostra a evolução do aneurisma micótico após encerramento por via transmitral.
We report the case of a 34-year-old man with aortic valve infective endocarditis caused by methicillin-resistant Staphylococcus aureus, complicated by an aortic annular abscess. A 23-mm St. Jude HP aortic mechanical prosthesis was implanted. The pre-discharge echocardiogram revealed a mycotic aneurysm of the basal posteroinferior wall, confirmed by cardiac magnetic resonance imaging, and it was decided to reintervene. The aneurysm was closed with a patch and the mitral valve had to be replaced.
Although a small leak from the aneurysm patch persisted on the pre-discharge transthoracic echocardiogram, there was no trace of the aneurysm at nine-month re-evaluation.
This case illustrates a rare complication of aortic valve endocarditis and shows the evolution of the mycotic aneurysm after closure via a transmitral approach.
A endocardite da válvula aórtica (EVA) pode complicar-se por extensão perivalvular: abcesso, pseudoaneurisma e/ou fístula. O embolismo sistémico e os aneurismas micóticos são também complicações descritas. A extensão perivalvular ocorre mais frequentemente na infecção por estafilococo aureus meticilino resistente (MRSA) e na endocardite protésica, associando-se a morbilidade e mortalidade acrescidas1,2.
Os aneurismas micóticos podem ter localização extracardíaca (baço, rins, cerebrais ou vasculares) ou intracardíaca - envolvendo normalmente o aparelho mitral ou aórtico e a fibrosa intervalvar1. O envolvimento da parede livre do ventrículo esquerdo (VE) é muito raro, sendo poucos os casos descritos na literatura3–6.
Caso clínicoHomem de 34 anos, caucasiano, que se apresentou no hospital local por petéquias periféricas e sintomas neurológicos. A TAC craniana revelou hemorragia cerebral parenquimatosa com necessidade de craniotomia descompressora. Devido à suspeita de endocardite, foi realizado ecocardiograma transesofágico (ETE) que evidenciou múltiplas vegetações na válvula aórtica (VA) e abcesso perianular (6/13mm) localizado às 11h (vista cirúrgica) em válvula aórtica bicúspide. A TAC abdominal mostrou abcessos renais e esplénicos e as hemoculturas foram positivas para MRSA.
O doente foi então referenciado ao nosso centro cirúrgico com o diagnóstico de EVA com regurgitação aórtica grave (RA). Na cirurgia foi implantada prótese mecânica aórtica SJ 23HP, após limpeza e encerramento do aneurisma perianular com retalho pericárdico. O ETE intraoperatório mostrou exclusão do abcesso e uma prótese normofuncionante.
O ecocardiograma transtorácico (ETT) pré-alta, realizado após seis semanas de antibioterapia com meropenem e vancomicina, revelou um volumoso aneurisma micótico do segmento basal da parede inferior do VE junto ao anel mitral posterior (Figura 1), diagnóstico confirmado por RMN cardíaca (RMC) (Figura 2A). Muito embora a morfologia do aneurisma não sugerisse etiologia isquémica, foi realizada coronariografia que confirmou a normalidade das artérias coronárias epicárdicas.
Apical 2 câmaras: Podemos observar um aneurisma com a forma de cogumelo localizado ao segmento basal da parede inferior (x) abrindo no VE imediatamente abaixo do plano do anel mitral posterior. De notar o aumento de tamanho de telediástole (a) para telesístole (b).
AO – Aorta torácica descendente, LA – Aurícula Esquerda, LV – Ventrículo Esquerdo.
Apesar de não existir evidência clínica ou analítica de persistência da infecção, foi decidido reintervir valorizando-se a parede fina e a ampla pulsatilidade do aneurisma, como sinais de rotura iminente.
O aneurisma foi encerrado com retalho de pericárdio bovino mas, devido à proximidade ao anel mitral posterior, houve necessidade de substituir a válvula por uma prótese mecânica St. Jude 27. O ETE intraoperatório mostrou uma pequena fuga através do retalho tendo sido decidido não corrigir por a passagem de fluxo por cor ser mínima.
O pós-operatório decorreu sem problemas tendo o doente alta ao décimo dia pós-cirurgia. No ETT realizado um mês após a intervenção, a pequena cavidade aneurismática (3*3cm) e a pequena passagem de fluxo através do retalho persistiam (Figura 3), decidindo-se por um controlo ecocardiográfico apertado. Ao nono mês pós-operatório, o ETT já não evidenciava sinais do aneurisma e o exame de contraste não mostrou qualquer passagem para fora da cavidade ventricular, resultado que foi confirmado por RMC (Figura 2B).
DiscussãoO enfarte do miocárdio é de longe a causa mais frequente de aneurisma do VE1. Os aneurismas micóticos são muito raros2–5. Outras causas invulgares são: trauma cardíaco, doença de Chagas, sarcoidose e a etiologia congénita1.
Na génese da formação de aneurismas micóticos da parede do VE estão descritos três mecanismos: ocorrência de embolismo coronário séptico com enfarte subsequente e rutura para a cavidade ventricular; disseminação por contiguidade a partir de abcesso perivalvular; e «sementeira» do endocárdio pelo jato regurgitante4.
No nosso caso, a história recente de endocardite por MRSA, a ausência de aneurisma aquando da primeira cirurgia e a presença coronárias normais, são a favor de etiologia infecciosa. A ausência de envolvimento da fibrosa mitro-aórtica ou do aparelho valvular mitral excluem a possibilidade de infecção por contiguidade. Embora a possibilidade de embolização coronária séptica causando enfarte do miocárdio tenha de ser considerada, a evolução do aneurisma no pós-operatório e a sua morfologia, tornam esta hipótese pouco provável. Acreditamos, portanto, que neste doente o mecanismo causal do aneurisma foi a «sementeira» endocárdica, com subsequente infecção miocárdica e ulceração da parede.
Os aneurismas micóticos do VE podem romper para o pericárdio, causando tamponamento4,5, ou cicatrizar sem necessidade de intervenção6. No nosso doente, a exuberância do aneurisma, a reduzida espessura da parede e a presunção de ter tido uma evolução rápida foram valorizados como sinais ominosos que levaram a decidir pelo tratamento cirúrgico. A substituição da válvula mitral foi o preço a pagar para a exclusão do aneurisma. Contudo, a cura do processo infeccioso da parede, com cicatriz residual mínima ou compromisso da função do VE, fazem-nos acreditar que a terapêutica cirúrgica foi a melhor decisão neste caso.
Conflito de interessesOs autores declaram não haver conflito de interesses.