Homem 56 anos, referenciado ao nosso serviço em 1978, com o diagnóstico de cardiopatia congénita não cianótica operada: encerramento de comunicações interventricular (CIV) e interauricular (CIA) associado a correção de estenose valvular pulmonar. A radiografia do tórax mostrava mesocárdia. A partir de 1992 verificaram‐se sintomas/sinais de insuficiência cardíaca, com sopro sistólico no bordo esternal esquerdo. Nos ecocardiogramas transtorácicos (ETT) seriados detetava‐se CIV residual alta, tendo uma ressonância magnética cardíaca (RM), em 1999, colocado o diagnóstico de transposição das grandes artérias sem presença de CIV/CIA.
Em 2005, foi‐lhe implantado um cardioversor desfibrilhador (CDI) por taquicardia ventricular sincopal (Figura 1).
Em 2011, foi internado no Luxemburgo por quadro febril, cefaleias, náuseas e alterações neurológicas não focais (estado estuporoso). Uma TAC‐CE mostrou um abcesso cerebral na região frontal mediana esquerda e o ecocardiograma transesofágico (ETE) identificou vegetações no eletrocateter. Apresentava hemoculturas positivas para Streptococcus constellatus e Micromonas micros.
Após apirexia mantida durante duas semanas (sob antibioterapia) foi transferido para o nosso serviço com os diagnósticos de endocardite de eletrocateter e abcesso cerebral em doente com Tetralogia de Fallot operada sem CIA/CIV.
Realizou ETT/ETE, tendo sido modificado o diagnóstico da cardiopatia congénita de base para «transposição dos grandes vasos congenitamente corrigida» (TGVCC) e CIA baixa (conforme figuras). Foi feita a extração do sistema de CDI. Por se ter observado durante o seu seguimento em consultas de CDI, prévias ao internamento, períodos de bloqueio auriculoventricular de terceiro grau e grande dependência de pacing ventricular e por se querer que o doente fique com o mínimo de material protésico intravascular, colocou‐se pacemaker dupla‐câmara epicárdico e CDI subcutâneo. Teve alta clinicamente estável.
ETE: a) imagem anatómica normal; b) imagem correspondente mostrando ausência de continuidade entre a válvula aórtica e a válvula auriculoventricular esquerda (morfologicamente tricúspide), através de um infundíbulo (asterisco); ventrículo morfologicamente direito em posição esquerda e válvula aórtica em normal continuidade com vaso sistémico (aorta) (vídeo 2).
ETE: inserção das válvulas aurículo ventriculares no mesmo plano (seta), de acordo com associação de TCCGV com defeito de canal AV, que ocorre em até 75% dos casos2 (vídeo 3).
ETE: aurícula recebendo duas veias cava (aurícula direita); válvula AV morfologicamente mitral em posição direita; eletrocateter (seta branca) identificando veia cava superior e ventrículo morfologicamente esquerdo em posição direita; SIA com shunt residual baixo (seta azul) (vídeos 4 e 5).
Conclui‐se assim que da cirurgia corretiva realizada em 1978 ficou CIA baixa residual com shunt sistémico‐pulmonar, diagnosticada em ETT, mas não confirmada por RM e que se revelou ser o mecanismo determinante de embolização sistémica paradoxal.
Embora não tivesse sido possível obter o relatório operatório nas notas clínicas do doente, identificou‐se o case report1 publicado pelo cirurgião em 1978, onde é descrita a malposição L‐anatómica dos grandes vasos, suportando o diagnóstico atual (Tabela 1).
Critérios imagiológicos para diagnosticar transposição dos grandes vasos congenitamente corrigida – dupla discordância: auriculoventricular (AV) e ventrículo‐arterial
Grandes vasos paralelos com aorta em posição anterior (Figura 2) |
Ventrículo morfologicamente direito (trabeculado), relacionado com válvula AV morfologicamente tricúspide em posição esquerda e em continuidade com válvula aórtica e aorta torácica (Figuras 2 e 3) |
Inserção da válvula AV morfologicamente tricúspide em posição esquerda num plano inferior ou no mesmo plano do que a válvula AV em posição direita (Figura 4) |
Ventrículo morfologicamente esquerdo (sem infundíbulo), relacionado com aurícula recetora de duas veias cava. Neste caso, observa‐se trajeto de eletrocateter identificado em ambas as cavidades (Figura 5) |
Realça‐se a importância da análise ecocardiográfica complementar ETT e ETE para o diagnóstico das cardiopatias congénitas, mais concretamente para a identificação de shunt residual, não observado pela RM. O reconhecimento deste shunt residual revelou‐se o principal determinante da mudança da estratégia terapêutica.
Responsabilidades éticasProteção de pessoas e animaisOs autores declaram que para esta investigação não se realizaram experiências em seres humanos e/ou animais.
Confidencialidade dos dadosOs autores declaram ter seguido os protocolos do seu centro de trabalho acerca da publicação dos dados de pacientes.
Direito à privacidade e consentimento escritoOs autores declaram que não aparecem dados de pacientes neste artigo.
Conflito de interessesOs autores declaram não haver conflito de interesses.