O tema da transferência inter‐hospitalar de doentes é de grande atualidade na presente realidade do nosso sistema de saúde. Os grandes avanços tecnológicos na área das doenças cardiovasculares têm chegado atempadamente ao nosso meio, mas de uma forma geral só ficam acessíveis nos grandes centros, havendo a necessidade de organizar redes de referenciação dentro do parque hospitalar.
Os profissionais que trabalham fora dos centros chamados «fins de linha» têm a experiência da enorme dificuldade na organização de transporte quer para as atividades de rotina quer para as emergentes. É comum os tempos de internamento ficarem afetados por situações de doentes que aguardam consultas ou tratamentos estomatológicos, realização de Doppler carotídeo, provas de função respiratória, realização de angio‐TC, observação em consulta de cirurgia cardíaca etc. Estes atrasos na atividade de rotina podem não ter influência direta na mortalidade, mas contribuem muito para a ineficiência do sistema, nomeadamente para a disponibilidade de internamento hospitalar.
Mais críticas são as situações de transferência inter‐hospitalar com carácter de emergência/urgência. De uma forma geral os hospitais não estão preparados para que este tipo de transporte se faça de forma expedita e imediata. A regra é a organização had hoc da transferência. Este processo começa pela discussão para a atribuição da tarefa aos profissionais que acompanham o doente, se do serviço que pede o transporte ou se da equipa de urgência, ao que se junta conseguir uma corporação de bombeiros ou empresa privada que assegure a ambulância. Muitas vezes, por falta de pagamento dos hospitais, as corporações mais próximas recusam assegurar o transporte e são organizações a dezenas de quilómetros que o fazem. Pode parecer exagero chegar a este grau de detalhe. Do meu ponto de vista não é. Durante os mais de oito anos que venho a acompanhar a iniciativa Stent for Life – Stent Save a Life (SFL/SSL) este foi sempre um problema real, não resolvido e frequentemente ignorado. Não temos números exatos dos tempo door‐in‐door‐out (DI‐DO) em Portugal, mas dificilmente cumprirão os 30min recomendados.
Em 2011, quando iniciamos a iniciativa SFL/SSL, encontramos, como uma das principais barreiras ao bom desempenho da Via Verde Coronária, as dificuldades de comunicações entre o pré‐hospitalar e os centros de cardiologia de intervenção, assim como a organização do transporte secundário. O INEM não tinha como missão o transporte secundário dos doentes com STEMI, embora após negociação entre o SFL/SSL e a direção do INEM, esta instituição assumisse este transporte. Em 2011 o transporte secundário efetuado pelo INEM tinha sido de 0,5% atingindo os 12,5% em 2014, ano em que esta tendência veio a ser contrariada através do despacho 10319/2014, que voltou a dar a responsabilidade deste transporte aos hospitais1. Em 2016 o transporte secundário pelo INEM desceu para 8,1%. A verdade é que muitos dos hospitais não têm transporte organizado, de forma a responder de imediato ao STEMI, tendo como consequência o aumento do atraso do sistema.
O artigo de Ferreira et al. agora publicado2 aborda o impacto na mortalidade da admissão direta versus a transferência inter‐hospitalar nos dentes com enfarte agudo do miocárdio com supra de ST (STEMI) submetidos a intervenção coronária percutânea primária (pPCI), concluindo que a transferência inter‐hopitalar aumentou significativamente o tempo até à realização da pPCI (145min nos doentes transferidos versus 88min na admissão directa), mas sem se observar uma diferença significativa na mortalidade a um ano.
O primeiro ponto em discussão é saber qual o impacto que o atraso no tratamento tem na mortalidade. A oclusão coronária conduz a uma necrose irreversível do miocárdio3 é crucial restaurar o fluxo coronário tão rápido quanto possível, observando‐se que o tempo total de isquemia (TIT) se correlaciona com a mortalidade4. Para melhor caracterizar os tempos envolvidos neste processo e para uma abordagem mais específica e individualizada, o TIT tem sido subdividido em múltiplos componentes: atraso do doente, atraso do sistema, DI‐DO, porta‐balão etc. Embora este tipo de análise tenha vindo a ser muito útil, a avaliação isolada de um só dos componentes por vezes conduz a resultados contraditórios. Mesmo a avaliação do TIT por vezes afigura‐se difícil, pois está dependente do efeito de memória do doente quanto à hora de início da dor, ao que se acresce que nas análises publicadas habitualmente não estão incorporados os doentes que morrem antes de chegar ao hospital. O indicador clássico de qualidade na pPCI foi o tempo porta‐balão (D2B), que deveria ser inferior a 90min e que serviu para avaliação do desempenho de qualidade dos hospitais para as sociedades científicas, entidades reguladoras e seguradoras. Logo no primeiro ano de vigência da iniciativa SFL/SSL em Portugal verificamos que este indicador não era de grande utilidade no nosso país, pois estando dentro dos valores recomendados (mediana 64min) não representava a realidade portuguesa, pois os doentes estavam a ser tratados com tempo total de isquemia de 288 min5,6. Mesmo avaliações isoladas do atraso do doente (PD) e do atraso do sistema (SD) podem ser enganadoras. Em Portugal, durante a vigência do SFL/SSL não se verificaram alterações significativas destes tempos: PD de 114min em 2011 versus 119min em 2015 e SD de 115min em 2011 versus 127 em 20157,8. No entanto, verificaram‐se importantes progressos no total de doentes tratados, que em 2002 foi de 106 pPCI/ano/milhão e em 2013 foi de 308 pPCI/ano/milhão, assim como da percentagem de doentes que ligou para o INEM (35,2% em 2011 vs. 46,6% em 2016) e do transporte primário pelo INEM (13,1% em 2011 e 30,5% em 2016), todos eles indicadores de sucesso do programa de pPCI em Portugal9–11. Ao estendermos a oferta de pPCI a regiões do país com menos densidade populacional, maiores distâncias de transporte, centros de cardiologia de intervenção mais longínquos, consequentemente aumentamos os tempos de tratamento, mas simultaneamente estamos a ser mais inclusivos, contribuindo para que o sistema esteja a melhorar na sua globalidade.
O artigo de Ferreira e al. está baseado nos resultados retrospetivos de um único centro de cardiologia de intervenção numa região em que os hospitais referenciadores estão servidos por uma excelente rede de autoestradas, situação que não reflete o restante interior de Portugal, nomeadamente a Beira interior. Na realidade as medianas do TIT, dos doentes entrados diretamente (88min) e mesmo dos transferidos (145min), é bem mais favorável do que os números nacionais acima descritos. Os resultados relativamente à mortalidade podem também estar contaminados pelo facto do grupo de doentes que foi transferido apresentar praticamente metade dos doentes com choque cardiogénico (5,8% vs. 3,2%), sendo este um grupo de doentes com elevada mortalidade. Como os autores reconhecem, é bem possível que no grupo de doentes oriundo de hospitais sem laboratório de hemodinâmica os doentes com choque tivessem falecido antes da transferência se ter efetuado.É positivo verificarmos que no Minho se observaram tempos de transferência relativamente aceitáveis, mas isso não deverá servir para escamotear uma realidade que consideramos maléfica para o nosso sistema de saúde, que é o facto de não haver uma boa organização do transporte inter‐hospitalar dos doentes emergentes e urgentes.
As dificuldades no transporte secundário não se limitam à cardiologia. Também para a Via Verde do AVC se coloca o mesmo problema, ainda agravado por esta via estar confinada a três grandes cidades, cada uma com um único centro em prevenção e numa patologia em que a janela temporal ainda é mais apertada do que a da cardiologia.
Há poucos anos consideraria impensável que num país com uma boa rede viária e de centros de cardiologia de intervenção relativamente bem distribuídos houvesse quem publicamente afirmasse considerar retomar a fibrinólise devido às dificuldades de oferecer pPCI aos seus doentes de forma atempada, isto é, em menos de 120 minutos após o primeiro contacto médico. Na verdade percebo essa perspetiva, mas é da responsabilidade de todos nós lutar para que em Portugal o tratamento do STEMI seja a angioplastia primária.
Conflitos de interesseO autor declara não haver conflito de interesses.