Mais de 40 anos após a sua concretização no ser humano, a transplantação cardíaca mantem‐se como o tratamento de eleição num grupo definido de doentes com insuficiência cardíaca avançada, apesar dos enormes progressos verificados no tratamento da insuficiência cardíaca1.
Os progressos da terapêutica médica permitiram uma duplicação da expetativa de vida nos doentes com insuficiência cardíaca associada a disfunção sistólica do VE2. Em grupos específicos de doentes com insuficiência cardíaca, a ressincronização cardíaca melhora a classe funcional, reduz a frequência das hospitalizações e melhora a sobrevida, tal como os desfibriladores intracardíacos reduzem os episódios de morte súbita e a mortalidade tardia3,4. Um número não desprezível de doentes com doença coronária e ou valvular é atualmente aceite para cirurgia cardíaca convencional e ou técnicas cirúrgicas de redução de volume ventricular com bons resultados a médio prazo5. As sucessivas melhorias tecnológicas apresentadas pelos dispositivos de assistência ventricular, agora na sua 4.ª geração, colocam‐nos, do ponto de vista clínico, como uma solução multiopcional – desde suporte transitório e ponte para decisão ou transplantação até terapêutica definitiva6.
A transplantação cardíaca, mesmo continuando a ser o gold standard da terapêutica da insuficiência cardíaca avançada – uma expetativa de sobrevivência superior a dez anos com melhor capacidade funcional e qualidade de vida – circunscreve‐se a um grupo mais restrito de doentes, quer pela existência de outras opções terapêuticas em estádios menos avançados quer pelas suas próprias limitações7. O pool de potenciais dadores é relativamente reduzido apesar dos consensos clínicos gerados para a otimização do seu manejo e para a utilização dos chamados dadores marginais em condições específicas8. Se os critérios cardiológicos para indicação de transplantação cardíaca são relativamente consensuais, um número significativo destes potenciais recetores nunca é considerado para transplantação, quer pelas contraindicações a um tratamento imunossupressor para toda a vida quer pela idade e comorbilidades que condicionam a otimização de um recurso escasso9. Embora os resultados a longo prazo da transplantação cardíaca mostrem progressos lentos, mas sustentados, existem barreiras até agora intransponíveis à sua melhoria significativa – a deterioração funcional do enxerto cardíaco causado pela rejeição crónica, o aumento progressivo da malignidade e as infeções graves10,11. Igualmente, e da maior importância, são o valor económico atribuído ao procedimento e as considerações éticas e legais, diferentes de país para país, bem como a disponibilidade local de técnicas de assistência circulatória eficientes e duráveis12.
A transplantação cardíaca é, portanto, cada vez mais uma cirurgia para um número limitado de doentes de muito elevado risco – aumento do número de doentes em estado crítico, muitas vezes com suporte mecânico, redução do número de doentes em ambulatório13,14. Este conjunto de fatores concorre para uma necessidade atual de 5‐7 transplantações por milhão de habitantes, face às necessidades percebidas há duas décadas atrás de dez transplantações por milhão de habitantes. E em países com economias fortes é previsível que a atividade de implantação de assistência ventricular esquerda e ou biventricular definitivas ultrapasse rapidamente a atividade da transplantação cardíaca. De facto, os ensaios clínicos com dispositivos de assistência ventricular esquerda mostram resultados de curto e médio prazo muito satisfatórios, com QUALY's elevados, mas progressivamente mais baixos15,16.
Este estado de coisas merece, no entanto, algumas observações, principalmente num país como Portugal onde os recursos financeiros são escassos. Os resultados da transplantação cardíaca são melhores e mais eficientes nos doentes que não atinjam um estado crítico e está nas nossas mãos uma melhor estratificação de risco com os instrumentos de decisão clínica existentes17. Por outro lado, um maior esforço deve ser dirigido para o máximo aproveitamento dos potenciais dadores disponíveis já que não me parece existirem, de momento, condições para criar um programa de assistência ventricular definitiva que ainda apresenta um custo‐eficiência incomportável para o país18. Por último, a atividade de transplantação cardíaca, sendo provavelmente a primeira experiência real de heart team, deve estar idealmente integrada em unidades clínicas que tenham o conhecimento e a experiência do estado da arte no tratamento da insuficiência cardíaca avançada. Sendo o volume cirúrgico sustentado uma condição importante para a qualidade do tratamento, outros vetores como a existência de alternativas terapêuticas médicas e cirúrgicas consistentes, a disponibilidade no local de várias formas de suporte circulatório e a dimensão das áreas de referenciação demográfica são igualmente de considerar19.
A experiência de dez anos de transplantação cardíaca dos HUC relatada no trabalho publicado nesta edição da Revista Portuguesa de Cardiologia é um contributo importante para o conhecimento da realidade atual da transplantação cardíaca20. Apresenta um elevado volume anual de transplantações para os padrões ibéricos com uma significativa experiência acumulada de mais de 250 casos com bons resultados a longo prazo em circunstâncias muito satisfatórias de tempos de espera dos recetores, tempos de isquemia do enxerto e características hemodinâmicas dos doentes. É minuciosa e muito informativa na descrição das características clínicas pré‐operatórias dos doentes, dos dados peroperatórios e das complicações precoces e tardias específicas deste tipo de procedimento. Teria sido muito interessante a apresentação de dados comparativos entre os sucessivos períodos da experiência relatada, o que iria contribuir para um melhor conhecimento da evolução mais recente da transplantação cardíaca – variação dos graus de prioridade dos doentes, resultados da utilização de dadores marginais, efeitos da modificação dos protocolos de tratamento – e que certamente será objeto de futuros trabalhos clínicos.
Conflito de interessesOs autores declaram não haver conflito de interesses.