Informação da revista
Vol. 31. Núm. 7 - 8.
Páginas 493-502 (julho - agosto 2012)
Partilhar
Partilhar
Baixar PDF
Mais opções do artigo
Visitas
51996
Vol. 31. Núm. 7 - 8.
Páginas 493-502 (julho - agosto 2012)
Artigo Original
Open Access
Taxa de filtração glomerular: que fórmula deverá ser usada em doentes com enfarte agudo do miocárdio?
Glomerular filtration rate: Which formula should be used in patients with myocardial infarction?
Visitas
51996
Sérgio Barra
Autor para correspondência
sergioncbarra@gmail.com

Autor para correspondência.
, Rui Providência, Joana Silva, Pedro Lourenço Gomes, Luís Seca, José Nascimento, António Leitão-Marques
Serviço de Cardiologia, Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, Hospital Geral, Coimbra, Portugal
Este item recebeu

Under a Creative Commons license
Informação do artigo
Resume
Texto Completo
Bibliografia
Baixar PDF
Estatísticas
Figuras (4)
Mostrar maisMostrar menos
Tabelas (4)
Tabela 1. Descrição da amostra do estudo
Tabela 2. Valor prognóstico da TFG calculada pela fórmula MDRD
Tabela 3. Distribuição de eventos conforme estadio da insuficiência renal [IR] (avaliada pelas fórmulas MDRD e Cockcroft-Gault)
Tabela 4. Valor prognóstico da TFG calculada pela fórmula de Cockcroft-Gault
Mostrar maisMostrar menos
Resumo
Introdução

A escolha do melhor método para avaliação da função renal em doentes com enfarte agudo do miocárdio não é ainda consensual. Este estudo visa comparar 2 fórmulas habitualmente usadas para avaliação da taxa de filtração glomerular (TFG) (Cockcroft-Gault [CG] e MDRD) em termos de predição de extensão da doença coronária (DC) e risco cardiovascular (CV) global.

População e métodos

452 doentes admitidos numa Unidade de Cuidados Intensivos Cardíacos (idade 69,01±13,64, 61,7% do sexo masculino, 38,5% diabéticos) foram incluídos e seguidos por 2 anos após alta. A TFG foi calculada usando as fórmulas CG e MDRD e estas foram comparadas em termos de predição da extensão da DC, risco de mortalidade intra-hospitalar (MIH) e risco CV durante o follow-up.

Resultados

TFG<60mL/min/1,73m2 pela fórmula MDRD associou-se a DC marginalmente mais extensa (2,70 segmentos afetados vs. 2,20, p=0,052) e maior risco de: mortalidade aos 2 anos (p<0,001, OR 3,84, CI95% 2,04-7,22); reenfarte (p<0,001, OR 4,09, CI95% 2,00-8,39); insuficiência cardíaca descompensada (ICd) [p<0,001, OR 3,95, CI95% 2,04-7,66]; eventos cardiovasculares combinados (p=0,001, OR 2,47, CI95% 1,47-4.17). A TFG<60mL/min/1,73m2 pela fórmula de CG previu apenas maior risco de ICd (p=0,016, OR 4,5, CI95% 1,11-16,57) e uma tendência para maior número de endpoints cardiovasculares (p=0,09, OR 2,84). Ambas as fórmulas previram o risco de MIH.

Discussão/Conclusões

Este estudo confirmou o valor da TFG na predição de múltiplos endpoints CV em doentes com EAM. A fórmula MDRD foi significativamente mais útil na predição da gravidade da DC e do risco CV.

Palavras-chave:
Taxa de filtração glomerular
Enfarte
Coronariopatia
Abstract
Introduction

There is disagreement regarding the best method for assessing renal dysfunction in patients with myocardial infarction (MI). This study aims to compare two commonly used formulas for measuring glomerular filtration rate (GFR) (Cockcroft-Gault [CG] and modification of diet in renal disease [MDRD]) in terms of predicting extent of coronary artery disease (CAD) and short- and long-term cardiovascular risk.

Methods

We studied 452 patients admitted to a cardiac intensive care unit (ICU) with MI (age 69.01±13.64 years; 61.7% male, 38.5% diabetic) and followed for two years. CG and MDRD GFR estimates were compared in terms of prediction of CAD extent, in-hospital mortality risk and cardiovascular risk during follow-up.

Results

GFR <60ml/min/1.73 m2 using the MDRD formula was associated with a tendency for more extensive CAD (2.70 affected segments vs. 2.20, p=0.052) and higher two-year mortality risk (p<0.001, OR 3.84, 95% CI 2.04-7.22) and risk for reinfarction (p<0.001, OR 4.09, 95% CI 2.00-8.39), decompensated heart failure (DHF) (p<0.001, OR 3.95, 95% CI 2.04-7.66) and combined cardiovascular endpoints (p=0.001, OR 2.47, 95% CI 1.47-4.17). Using the CG formula, GFR<60ml/min/1.73 m2 only predicted higher risk for DHF (p=0.016, OR 4.5, 95% CI 1.11-16.57), despite a tendency for more overall combined cardiovascular endpoints (p=0.09, OR 2.84). Both formulas predicted in-hospital mortality.

Discussion/Conclusions

This study confirmed the value of GFR in predicting various cardiovascular endpoints in patients with MI. Compared to the CG formula, the MDRD formula was significantly more accurate in predicting the severity of CAD and two-year CV risk in patients admitted to the ICU with MI.

Keywords:
Glomerular filtration rate
Myocardial infarction
Coronary artery disease
Texto Completo
Introdução

A doença renal crónica prediz maior risco de doença e mortalidade cardiovascular1 e, frequentemente, associa-se a doença aterosclerótica mais extensa2. Contudo, a aplicação de estratégias agressivas em doentes renais para redução da morbilidade/mortalidade cardiovascular tem sido limitada3.

A função renal, estimada pela taxa de filtração glomerular (TFG), é fator prognóstico em doentes admitidos numa Unidade de Cuidados Intensivos Cardíacos (UCIC) com o diagnóstico de enfarte agudo do miocárdio (EAM), assumindo-se como preditora de mortalidade intra-hospitalar4. Mesmo a insuficiência renal (IR) ligeira pode ser considerada fator de risco major para complicações no pós-EAM5.

A fórmula de Cockcroft-Gault e a fórmula MDRD podem ser usadas para a avaliação/estimativa da função renal em doentes com insuficiência cardíaca (IC) ou EAM, permitindo avaliação mais precisa que aquela fornecida pelos valores séricos de creatinina6,7. Contudo, não está ainda determinado qual das duas fórmulas prevê com maior acuidade a mortalidade a curto e longo prazo, assim como outros endpoints cardiovasculares, sendo os resultados existentes até ao momento contraditórios.

O objetivo deste estudo consiste em avaliar e comparar a importância prognóstica de duas fórmulas conceituadas na estimativa da função renal (fórmulas MDRD e Cockcroft-Gault) em doentes admitidos por EAM, nomeadamente a capacidade de predição de mortalidade intra-hospitalar (MIH) e aos 2 anos pós-alta do internamento (endpoints primários). Foi secundariamente avaliada a capacidade de as duas fórmulas ajudarem a prever o risco de reinternamento por insuficiência cardíaca (IC) descompensada durante seguimento de 2 anos, reenfarte, angina recorrente e AVC isquémico (endpoints secundários).

Métodos e população

Estudo prospetivo envolvendo 452 doentes admitidos consecutivamente na UCIC durante período de 16 meses (1 novembro de 2006 a 28 fevereiro de 2008) com o diagnóstico de EAM (baseado nos critérios revistos da Organização Mundial de Saúde8).

Relativamente a cada doente, foram recolhidos os seguintes dados:

  • -

    Resultados da coronariografia (número de vasos e segmentos com lesões significativas nos 362 pacientes submetidos a cateterismo; a não realização de cateterismo em 90 casos teve várias explicações: 1 - a idade muito avançada de alguns dos doentes em causa, com múltiplas comorbilidades que aumentavam significativamente o risco da estratificação invasiva, em particular a insuficiência renal (n=53); 2 - o falecimento de alguns doentes previamente à realização do cateterismo (n=18); 3 - a existência de coronariopatia severa previamente tida como não revascularizável em alguns casos; n=19);

  • -

    Realização de procedimentos de revascularização (dos 362 doentes cateterizados, 274 foram revascularizados, dos quais 258 por via percutânea e 16 por cirurgia de revascularização miocárdica);

  • -

    Valores analíticos na admissão (glicemia, creatinina, hemoglobina e proteína C reativa);

  • -

    Valores máximos de troponina i;

  • -

    Exame objetivo na admissão e caracterização do enfarte de acordo com classificação Killip.

Para cada doente, foi calculado o valor da TFG usando a fórmula MDRD [TFG (mL/min/1,73m2)=186*(Creatinina plasmática)−0,154 * (idade)−0,203 *(0,742 se mulher)*(1,210 se Afro-Americano)] e Cockcroft-Gault (TFG=[(140-idade)*(Peso)*(0,85 se sexo feminino)]/(72*Creatinina plasmática), e os valores do score de GRACE. Em adição, foi calculado o score de TIMI para aqueles com enfarte sem supradesnivelamento do segmento ST [NSTEMI], para melhor caracterização deste subgrupo (Tabela 1).

Tabela 1.

Descrição da amostra do estudo

Idade  69±13,6 
Sexo masculino  61,7% 
Tipo de enfarte  STEMI – 44,5%; NSTEMI 52,4% 
Diabetes Mellitus  38% 
Hipertensão arterial prévia  74,8% 
Dislipidemia  56,2% 
Tabagismo ativo  26,1% 
Doença coronária prévia conhecida  28,1% 
Killip Class na admissão médio  1,42 
Killip Class máximo médio  1,66 
Número de vasos com lesões significativasa  1,68 
Número de segmentos com lesões significativasa  2,36 
Troponina I máxima atingida  44,7±83,2 
Creatinina na admissão  123,4±114,1 
TFG MDRD na admissão  66,8±30,3 
TFG CGC na admissão  77,3±47,5 
Score de GRACE  161,7±44,6 
Score de TIMIb  3,4±1,3 

TFG CG – Taxa de Filtração Glomerular calculada pela fórmula de Cockcroft-Gault; TFG MDRD: Taxa de Filtração Glomerular calculada pela fórmula MDRD; aLesão coronária significativa definida como estenose de ≥ 50% numa das principais artérias coronárias epicárdicas ou ≥ 30% no caso de se tratar do Tronco Comum; bAplicado apenas a doentes com enfarte sem supradesnivelamento do segmento ST.

Realizado follow-up de 24 meses (contacto telefónico realizado cada 3 meses) para avaliação da ocorrência de mortalidade por qualquer causa (endpoint primário), reenfarte, angina recorrente [definida como a recorrência de dor torácica de características idênticas à dor ocorrida aquando do EAM; ou novo episódio passível de categorizaçao como angina atípica ou angina típica], reinternamento por IC descompensada (obrigando a período de permanência no Hospital superior a 48 horas) e acidente vascular cerebral (AVC) isquémico (confirmado com a realização de TAC cranioencefálico).

As duas fórmulas de estimativa da TFG foram comparadas quanto ao impacto prognóstico neste tipo de doentes, nomeadamente a capacidade de predição de endpoints primários − MIH e mortalidade durante seguimento de 2 anos – e de endpoints secundários (descritos previamente) num follow-up de 2 anos. Como informação complementar, foi feita breve análise de eventual vantagem de alguma das fórmulas na avaliação da extensão/severidade da doença coronária.

Os doentes foram divididos em dois grupos: TFG<60mL/min/1,73m2 vs. TFG60mL/min/1,73m2.

Realizada análise estatística com SPSS v16.0: comparação de variáveis nominais com teste chi-square; teste t-student para comparação de variáveis contínuas; testes não paramétricos equivalentes quando adequado; análise univariada com teste chi-square para estabelecer eventual relação entre valor de TFG<60mL/min/1,73m2 e determinados endpoints cardiovasculares (com risco relativo respetivo e intervalo de confiança de 95%); análise multivariada com regressão logística para avaliar se a TFG, estimada pelas fórmulas MDRD e Cockcroft-Gault, pode ser incluída em modelos preditores de risco. Resultados com p<0,05 considerados significativos. Traçadas curvas Kaplan-Meier para avaliar sobrevida consoante valores de TFG (cut-off 60mL/min/1,73m2). Realizadas curvas ROC para comparar o valor prognóstico de ambas as fórmulas.

Resultados

Durante o internamento, verificaram-se 48 óbitos (10,6% dos doentes): idade média 77,2±9,9 anos, 52,9% do sexo feminino, classe Killip (KK) médio na admissão 2,1±1,1, Troponina I máxima 68,5±131,4 ng/mL, score de GRACE 210,5±36,6 (score de TIMI 3,9±0,9 naqueles com NSTEMI) e TFG de 43,3±19,3mL/min/1,73m2 pela fórmula MDRD e 52,5±30,3mL/min/1,73m2 pela fórmula Cockcroft-Gault.

Durante o follow-up, verificaram-se 80 óbitos (19,8% dos doentes que tiveram alta após o EAM), apresentando estes doentes sobrevida média de 10,2±7,2 meses, sendo maioritariamente do sexo masculino (55,8%), com idade média 77,4±10, score de GRACE 180,4±34,8 (score de TIMI 3,97±1,14 naqueles com NSTEMI) e TFG de 50,14±28,5mL/min/1,73m2 pela fórmula MDRD e 57,17±25,28mL/min/1,73m2 pela fórmula Cockcroft-Gault.

Excluindo os doentes que faleceram no internamento (n=48) ou durante o seguimento (n=80), o follow-up médio foi de 23,8 meses. 313 doentes foram seguidos durante 24 meses completos, porém, em 10 casos, o seguimento não atingiu os 2 anos (follow-up médio de 17 meses neste pequeno grupo).

113 doentes (27,9%) apresentaram angina recorrente e 57 (14,2%) foram admitidos por novo EAM. 57 doentes (14,2%) foram recateterizados durante o follow-up, 70 (17,4%) admitidos por IC descompensada e em 20 doentes (4,9%) foi feito o diagnóstico de AVC. Reportados 397 eventos cardio/cerebrovasculares num período de 2 anos, dispersos por 200 doentes (49,6% dos 404 que tiveram alta após o EAM).

Fórmula MDRD

A TFG calculada pela fórmula MDRD separou os doentes em estadios consoante a presença/ausência de IR e a gravidade da mesma:

  • -

    Estadio 2 (TFG entre 60 e 89mL/min/1,73 m2): N=165 (36,5%);

  • -

    Estadio 3(30-59mL/min/1,73 m2): N=125 (27,7%);

  • -

    Estadio 4(15-29mL/min/1,73 m2): N=36 (8,2%);

  • -

    Estadio 5(<15mL/min/1,73 m2): N=19 (4,2%);

  • -

    Todos os restantes: N=107 (23,4%).

Os 48 doentes que faleceram durante o internamento apresentavam TFG mais baixa que os restantes 404 (43,3±19,3 vs. 69,5±30,2mL/min/1,73m2, p<0,001). A TFG (MDRD) correlacionou-se negativamente com o score de GRACE (p<0,001, r=−0,526) e um valor<60mL/min/1,73m2 associou-se a doença coronária mais extensa (1,84 vasos afetados vs. 1,61, p=0,047; 2,70 segmentos afetados vs. 2,20, p=0,050) e maior risco de: MIH (20,2% vs. 3,8%, p<0,001, OR 6,44, IC95% 3,11-13,32); IC aguda, [=KK máximo>KK na admissão ou KK na admissão >1 em doente sem história de IC] (56,3% vs. 22,3%, p<0,001, OR 4,47, IC95% 2,96-6,75); mortalidade no follow-up (34,8% vs. 12,2%, p<0,001, OR 3,84, IC95% 2,04-7,22); reenfarte (26,4% vs. 8,0%, p<0,001, OR 4,09, IC95% 1,99-8,39); re-internamento por IC descompensada (31,5% vs. 10,4%, p<0,001, OR 3,95, IC95% 2,04-7,66); qualquer evento cardio/cerebrovascular (64,1% vs. 42%, p=0,001, OR 2,47, IC95% 1,47-4,17). Considerando apenas doentes que faleceram durante o follow-up, uma TFG<60mL/min/1,73m2 associou-se a menor tempo médio de vida (16,3 vs. 19,5 meses, p=0,001).

Modelo preditor de MIH em análise multivariada (Hosmer-Lemeshow test: 1,0; Nagelkerke R square: 0,606) incluindo valores da TFG calculados pelas duas fórmulas (variáveis contínuas) e todos os preditores de MIH em análise univariada, localizados previamente, incluiu as variáveis IC aguda na admissão (p=0,022, OR 3,12, IC95% 1,80-9.06), GRACE para MIH (p=0,014, OR 1,024, IC95% 1,004-1,044), TFG pela fórmula MDRD (p=0,048, OR=0,970, IC95% 0,94-0,98) e realização de revascularização (p=0,018, OR 3,34, IC95% 2,01-9,87). A idade do doente, fatores de risco CV, extensão da necrose miocárdica e doença coronária, níveis de hemoglobina na admissão, valores da TFG calculados pela fórmula de Cockcroft-Gault e frequência cardíaca na admissão não foram incluídos no modelo preditor. Sujeitos com missing values para o modelo foram excluídos.

Análise multivariada incluindo valores da TFG calculados pelas duas fórmulas e outras variáveis com valor prognóstico aos 2 anos em análise univariada estabeleceu modelo preditor do mortalidade durante o seguimento (Hosmer-Lemeshow test: 0,612; Nagelkerke R square: 0,412) que incluiu as variáveis TFG calculada pela fórmula MDRD (variável contínua) [p<0,001, OR 0,976, IC95% 0,962-0,989] e score de GRACE para MIH (p=0,006, OR 1,013, IC95% 1,004-1,023). As restantes variáveis incluídas na análise, nomeadamente os fatores de risco CV tradicionais, ocorrência de IC aguda na admissão, extensão da doença coronária e presença prévia da mesma, TFG pela fórmula Cockcroft-Gault, níveis máximos de Troponina I, Hemoglobina na admissão e idade do doente não acrescentaram valor ao modelo.

A Tabela 2 e a curva Kaplan-Meier na Figura 1 avaliam a importância da TFG (fórmula MDRD) na avaliação do prognóstico destes doentes.

Tabela 2.

Valor prognóstico da TFG calculada pela fórmula MDRD

TFG (mL/min/1,73 m2)Fórmula MDRD  < 60  > 60 
Vasos afetados  1,84±1,03  1,61±0,94  0,047 
Segmentos afetados  2,70±2,07  2,20±1,73  0,050 
Troponina I maxima  53,46±106,78  39,18±62,56  N.S. 
GRACE mortalidade intra-hospitalar  181,5±43,19  141,4±35,65  <0,001 
GRACE mortalidade aos 6 meses  149,8±32,24  114,1±30,19  <0,001 
Score de TIMI (doentes com NSTEMI)  3,68±1,21  3,12±1,29  0,001 
Mortalidade intra-hospitalar  20,2%  3,8%  <0,001, OR 6,44IC95% 3,11-13,32 
Insuficiência cardíaca aguda  56,3%  22,3%  <0,001, OR 4,47IC95% 2,96-6,75 
Mortalidade no follow-up  34,8%  12,2%  <0,001, OR 3,84IC95% 2,04-7,22 
Insuficiência cardíaca descompensada  31,5%  10,4%  <0,001, OR 3,95IC95% 2,04-7,66 
Angina recorrente  33,3%  24,9%  0,14 
Reenfarte  26,4%  8,0%  <0,001, OR 4,09IC95% 1,99-8-39 
Recateterização  10,9%  16,4%  0,23 
Acidente vascular cerebral  6,6%  4,1%  0,37 
Qualquer endpoint  64,1%  42,0%  0,001, OR 2,47IC95% 1,47-4,17 
Figura 1.

Curva Kaplan-Meier demonstrando o impacto da TFG calculada pela fórmula MDRD no risco de mortalidade nos 2 primeiros anos pós-alta.

(0.08MB).

A distribuição de eventos no follow-up (404 doentes) de acordo com o estadio de IR avaliado pela fórmula MDRD pode ser observada na Tabela 3.

Tabela 3.

Distribuição de eventos conforme estadio da insuficiência renal [IR] (avaliada pelas fórmulas MDRD e Cockcroft-Gault)

Estadio de IR  Sem IR ou grau I  Grau II  Grau III  Grau IV  Grau V 
Fórmula MDRD
105  155  101  27  16   
Mortalidade  4,3%  18,2%  23,1%  66,7%  70%  < 0,001 
Reenfarte  10%  7%  19,7%  23,1%  80%  < 0,001 
Angina recorrente  33,3%  19%  28,8%  41,7%  60%  0,024 
Recateterização  23,2%  12,2%  9%  15,4%  20%  0,17 
Acidente vascular cerebral  2,9%  5,1%  8,8%  0%  0%  0,43 
Insuficiência cardíaca descompensada  7,2%  13%  28,8%  41,7%  33,3%  0,001 
Qualquer evento  43,5%  41,6%  58,8%  76,9%  88,9%  0,004 
Fórmula de Cockcroft-Gault
114  130  119  28  13   
Mortalidade  4,8%  12,1%  21,4%  0%  0%  N. S. 
Reenfarte  4,7%  8,8%  20,7%  7,1%  0%  0,16 
Angina recorrente  28,6%  20,6%  31%  0%  33,3%  N. S. 
Recateterização  18,6%  15,2%  14,3%  0%  0%  N. S. 
Acidente vascular cerebral  0%  6,1%  7,1%  0%  0%  N. S. 
Insuficiência cardíaca descompensada  7%  3%  24,1%  21,4%  0%  0,056 
Qualquer evento  34,9%  38,2%  55,2%  0%  50%  0,10 
Fórmula de Cockcroft-Gault

A fórmula de Cockcroft-Gault permitiu igualmente a separação dos doentes em estadios: 13 (2,9%) apresentavam IR estadio 5, 28 (6,3%) encontravam-se no estadio 4, 119 (26,4%) no estadio 3 e 130 (28,7%) no estadio 2 (os restantes 162 − 35,7% − não apresentavam IR).

Os 48 doentes que faleceram durante o internamento apresentavam TFG na admissão mais baixa (50,1±28,5 vs. 77,9±48,1mL/min/1,73m2, p=0,001), tal como sucedido com a fórmula MDRD. Uma TFG<60mL/min/1,73m2 não se associou a doença coronária mais extensa ou maior extensão da necrose miocárdica. Porém, este grupo de doentes apresentou scores de GRACE mais elevados, tanto para MIH (178,6 vs. 139,2, p<0,001) como para mortalidade aos 6 meses (146,4 vs. 111,1, p<0,001). Este valor de TFG associou-se a maior risco de MIH (20,3 vs. 3,4%, p<0,001, OR 7,11, IC95% 2,28-22,2) e re-internamento por IC descompensada (20% vs. 5,3%, p=0,016, OR 4,5, IC95% 1,22-16,57).

O risco de mortalidade pós-alta consoante os valores de TFG estimada por esta fórmula pode ser avaliado na Figura 2, enquanto a Tabela 4 descreve a sua capacidade de predição de risco. A distribuição de eventos no follow-up (404 doentes) de acordo com o grau de IR pode ser observada na Tabela 3.

Figura 2.

Curva Kaplan-Meier avaliando o impacto da TFG calculada pela fórmula de Cockcroft-Gault no risco de mortalidade nos 2 primeiros anos pós-alta.

(0.09MB).
Tabela 4.

Valor prognóstico da TFG calculada pela fórmula de Cockcroft-Gault

TFG (mL/min/1,73 m2)Fórmula Cockcroft-Gault  < 60  > 60 
Vasos afetados  1,81±1,05  1,63±0,89  0,21 
Segmentos afetados  2,54±2,17  2,22±1,69  0,64 
Troponina I máxima  59,95±138,42  43,47±70,43  0,096 
GRACE mortalidade intra-hospitalar  178,6±47,51  139,2±37,84  <0,001 
GRACE mortalidade aos 6 meses  146,4±36,31  111,1±31,82  <0,001 
Score de TIMI (doentes com NSTEMI)  3,29±1,33  3,22±1,32  0,94 
Mortalidade intra-hospitalar  20,3%  3,4%  <0,001, OR 7,11IC95% 2,28-22,2 
Insuficiência cardíaca aguda  51,9%  22,4%  <0,001, OR 3,73IC95% 2,01-6,95 
Mortalidade no follow-up  17,1%  8%  0,19 
Insuficiência cardíaca descompensada  20%  5,3%  0,016, OR 4,5IC95% 1,22-16,57 
Angina recorrente  30,6%  25%  0,53 
Reenfarte  16,7%  6,5%  0,089 
Recateterização  14,3%  17,1%  0,71 
Acidente vascular cerebral  5,7%  2,7%  0,43 
Qualquer evento  51,4%  36,4%  0,09 

O valor da TFG calculado por esta fórmula não foi incluído em quaisquer modelos preditores de MIH ou mortalidade no seguimento em análise multivariada por regressão logística, contrariamente ao sucedido com a fórmula MDRD. Este dado manteve-se inalterado mesmo após remoção da TFG calculada pela fórmula MDRD do grupo de variáveis testadas.

Para comparação mais fidedigna entre as duas fórmulas, as Figuras 3 e 4 ilustram curvas ROC avaliando o impacto da TFG calculada pelas fórmulas MDRD e Cockcroft-Gault no risco de mortalidade no seguimento e readmissão por IC descompensada.

Figura 3.

Curvas ROC avaliando e comparando o impacto da TFG calculada pelas 2 fórmulas em estudo no risco de mortalidade aos 2 anos: AUC (MDRD): 0,714; AUC (Cockcroft-Gault): 0,654.

(0.1MB).
Figura 4.

Curvas ROC avaliando e comparando o impacto da TFG calculada pelas 2 fórmulas em estudo no risco de readmissão por IC descompensada: AUC (MDRD): 0,689; AUC (Cockcroft-Gault): 0,685.

(0.1MB).
Discussão

Um estudo realizado por Lekston et al. relatou o impacto prognóstico adverso da disfunção renal na doença cardiovascular9. Rutherford et al. confirmaram esta ideia, referindo que a estimativa da função renal, pelos valores de creatinina ou TFG calculada pela fórmula de Cockcroft-Gault, tinha elevado valor preditor de mortalidade a curto/médio prazo em doentes com EAM10. Mielniczuk et al. descreveram um aumento do risco de reenfarte, angina recorrente ou outros endpoints cardiovasculares em doentes com declínio agudo da função renal nas primeiras horas de admissão por EAM11, corroborando achados de Goldberg et al., que demonstraram um aumento do risco cardiovascular a longo prazo (mortalidade e IC) em doentes com lesão renal moderada-severa (creatinina>0,5mg/dL acima do valor basal) na admissão pelo EAM índex12.

A importância da avaliação da função renal foi também demonstrada em doentes submetidos a intervenção coronária percutânea (ICP). Xie D. et al. relataram aumento da incidência de eventos cardiovasculares major pós-angioplastia com stent em doentes com TFG<60mL/min/1,73m2 vs. doentes sem IR13. Um estudo de Celik T. et al. realizado para investigar o impacto da TFG no grau de perfusão miocárdica pós-ICP concluiu que TFG<60mL/min/1,73m2 se associou a menor taxa de sucesso na obtenção de fluxo TIMI>114. Cardarelli F. et al. concluiram que a IR grave se associa a maior risco de MIH pós-ICP, sobretudo em doentes jovens15.

O impacto prognóstico da TFG na amostra atual não diferiu significativamente dos resultados obtidos nos estudos citados. Independentemente da fórmula usada, doentes que faleceram durante o internamento apresentavam TFG na admissão significativamente inferiores, e doentes com TFG<60mL/min/1,73m2 apresentaram scores de GRACE consideravelmente superiores, o que não surpreende, dada a inclusão dos valores de creatinina na fórmula de cálculo deste score. O risco de MIH, IC aguda e reinternamento por IC descompensada no seguimento foi superior em doentes com IR (independentemente da fórmula usada), corroborando os dados de Tamoaki N. et al., que sublinharam a importância da disfunção renal na predição do risco de IC refratária em doentes com doença coronária16.

Apesar destes achados, múltiplos estudos têm sugerido que doentes com IR não recebem uma terapêutica suficientemente agressiva que o seu maior risco cardiovascular deveria exigir3. O elevado risco hemorrágico limita o uso de terapêutica antiagregante/hipocoagulante e reduz a taxa de revascularização percutânea. Na nossa amostra, pudemos constatar que doentes com IR foram menos vezes submetidos a estudo angiográfico, o que constitui um paradoxo, já que estes doentes apresentaram maior risco de reenfarte e angina recorrente (neste caso, sem atingir significância estatística).

A TFG assume papel de relevo na estratificação de risco de doentes com EAM e tal foi demonstrado na amostra atual. Têm sido desenvolvidos trabalhos comparando múltiplas formas de cálculo da TFG no que respeita à capacidade de predição de risco a curto, médio e longo prazo. Duas fórmulas têm merecido particular destaque: MDRD e Cockcroft-Gault.

Um estudo de Poggio E. et al. demonstrou superioridade da fórmula MDRD na estimativa da função renal em doentes com nefropatia diabética e/ou TFG<60mL/min/1,73m2 (avaliada pela excreção de 125 l-iotalamato). Pelo contrário, esta fórmula mostrou tendência a subestimar a TFG em indivíduos saudáveis e ambas as fórmulas sobrestimaram a força da associação da TFG com os níveis séricos de creatinina17. Chiara M. et al. relataram diferenças significativas nos valores de TFG calculados pelas fórmulas em estudo em cerca de 20% dos doentes, afetando os necessários ajustes terapêuticos nos doentes suscetíveis a complicações hemorrágicas e acrescentou que o doseamento baseado na fórmula de Cockcroft-Gault é preferível em doentes do sexo feminino, baixo peso e idade avançada18. O’Meara E. et al. compararam as duas fórmulas em doentes com IC avançada e concluíram que a fórmula MDRD apresenta maior sensibilidade e capacidade de estimativa da TFG quando esta atinge valores inferiores a 60mL/min/1,73m219. Por sua vez, Szummer K. et al. compararam as duas fórmulas quanto ao valor prognóstico em doentes com EAM e concluíram que a fórmula de Cockcroft-Gault classifica uma maior percentagem de doentes nos níveis moderado/grave de IR, sobretudo em grupos do sexo feminino, idade avançada e baixo peso, e prevê mais eficientemente o risco de mortalidade aos 12 meses20. Em doentes pós-EAM com indicação para revascularização cirúrgica, a fórmula de Cockcroft-Gault mostrou-se mais eficaz na predição de MIH e a longo prazo21.

Abaci A. et al. concluíram que a IR é um dos preditores mais importantes da extensão e gravidade da aterosclerose coronária, sobretudo em doentes diabéticos22. Na nossa amostra, doentes com TFG<60mL/min/1,73m2 calculada pela fórmula MDRD apresentaram maior extensão da coronariopatia, o mesmo não sucedendo quando a fórmula de Cockcroft-Gault foi usada. O aumento de risco cardiovascular proporcionado pela IR foi independente dos achados angiográficos, já que a extensão da doença coronária não se associou ao risco de mortalidade. Estes dados coincidem com os achados de Srinivasan B. et al., que relataram que a IR de grau moderado a grave aumenta o risco de EAM e mortalidade cardiovascular independentemente de quaisquer outras variáveis clínicas e qualquer evidência angiográfica prévia de doença coronária e respetiva extensão23.

Na nossa amostra, não se verificou correlação entre os níveis máximos de Troponina I e a TFG (apesar de tendência para níveis mais altos de troponina I máxima em doentes com TFG<60mL/min/1,73m2 calculada pela fórmula de Cockcroft-Gault). Estes achados confirmam as conclusões do VALIANT Echo Study24, que visava determinar se seriam alterações da estrutura ou função cardíaca a determinar o aumento de risco pós-EAM de doentes com IR. Neste estudo, a função sistólica global, fração de ejeção, a dimensão dos segmentos enfartados e a função ventricular direita pós-EAM não foram influenciados pela função renal, sugerindo que seria sobretudo a disfunção diastólica a mediar o aumento de risco. Na amostra atual, a ausência de correlação entre os níveis de troponina I máxima e a TFG sugere que a disfunção sistólica ventricular esquerda pós-EAM em doentes com maior extensão de necrose miocárdica não será o mecanismo pelo qual a redução da TFG exerce o seu impacto prognóstico adverso.

As duas fórmulas em análise demonstraram capacidade preditora de MIH e IC aguda no internamento pelo EAM, sugerindo uma similaridade de eficácia na predição do risco cardiovascular intra-hospitalar (curto prazo), apesar de a fórmula MDRD ter a potencial vantagem adicional de ajudar a prever a extensão da doença coronária (ainda que de forma insuficientemente fidedigna para poder ser usada de forma isolada). Porém, apenas a TFG calculada por esta última fórmula foi incluída em modelo preditor de MIH em análise multivariada, algo sucedido mesmo quando as duas fórmulas foram concomitantemente incluídas na análise. Os valores de TFG pela fórmula MDRD assumem valor prognóstico a curto prazo independente de qualquer outra variável e capaz de acrescentar valor a modelo bem estabelecido na comunidade científica, score de GRACE, e à ocorrência de IC aguda na admissão, reconhecidamente associada a pior prognóstico.

A ausência de associação, na nossa amostra, entre a TFG (Cockcroft-Gault) e o score de TIMI nos doentes com NSTEMI justifica um esclarecimento adicional. A documentação prévia de doença coronária é um dos itens do score de TIMI que poderia limitar a força de eventual associação com a TFG calculada pela fórmula Cockcroft-Gault. Na verdade, esta não se revelou preditora da extensão da doença coronária na nossa amostra e provavelmente não seria preditora de lesões estenóticas prévias (um dos itens do TIMI), já que doentes com doença coronária prévia conhecida não apresentavam TFG significativamente mais baixas na admissão, na nossa população. A exclusão de doentes com disfunção renal moderada a grave do estudo que originou o score de TIMI (ainda que não fosse explicitamente um critério major de exclusão)25 pode ter estado também na origem destes achados.

O maior impacto prognóstico do cálculo da TFG pela fórmula MDRD (vs. Cockcroft-Gault) foi bem visível a médio prazo. De facto, esta fórmula ajudou a prever o risco de mortalidade no seguimento, a taxa de reinternamento por IC descompensada e o reenfarte. Doentes com TFG<60mL/min/1,73m2 (vs. TFG60mL/min/1,73m2) calculada por esta fórmula (MDRD) apresentaram risco de um qualquer evento cardiovascular num follow-up de 2 anos quase 2,5 vezes superior. A TFG calculada pela fórmula MDRD (mas não a calculada pela fórmula Cockcroft-Gault) assumiu-se como preditora independente de mortalidade no follow-up, acrescentando valor ao próprio score de GRACE. Porém, a maior taxa de reenfarte e angina recorrente (neste caso, sem atingir significância estatística) nestes doentes não se traduziu numa maior taxa de recateterização, paradoxo já referido e documentado em estudos anteriores26.

O impacto prognóstico da TFG calculada pela fórmula de Cockcroft-Gault não foi tão pronunciado. De facto, apesar da eficácia enquanto preditora univariada de risco intra-hospitalar e de IC (aguda e aos 2 anos), esta fórmula não foi incluída em qualquer modelo de predição de MIH e mortalidade no seguimento em análise multivariada e não ajudou a prever o risco de reenfarte. Doentes com TFG<60mL/min/1,73m2 por esta fórmula mostraram apenas uma tendência para maior risco cardiovascular global aos 2 anos (ocorrência de qualquer endpoint; p=0,09). As curvas ROC desenvolvidas estabelecem ligeira superioridade da fórmula MDRD na predição do risco de mortalidade no follow-up e uma equiparidade na predição do risco de readmissão por IC descompensada.

A aparente ausência de associação entre a TFG e o risco de AVC requer clarificação, dado que os estudos feitos até ao momento nesta área têm sido contraditórios. Alan G. et al. relataram aumento do risco de tromboembolia cerebral em doentes renais com fibrilhação auricular proporcional à gravidade da IR, independente de quaisquer outros potenciais preditores e aditivo à capacidade preditora da proteinúria27. Pelo contrário, um estudo de Bouchi R. et al. demonstrou que o aumento do risco de AVC em indivíduos com IR é mediado pela albuminúria e não pela TFG per se28, e Bos M. et al. descreveram uma forte associação entre baixos níveis de TFG e o risco de AVC hemorrágico, negando, no entanto, qualquer associação com o risco global de AVC (independentemente do tipo) e o risco de AVC isquémico29. Na nossa amostra, a TFG não ajudou a prever o risco de AVC isquémico, embora se tenham verificado mais casos de AVC no grupo de doentes com TFG<60mL/min/1,73m2 independentemente da fórmula usada. O baixo número de eventos cerebrovasculares documentados limitou esta análise.

Os nossos resultados sugerem menor validação da fórmula de Cockcroft-Gault na estratificação do risco a médio prazo em doentes admitidos por EAM, ainda que a desvantagem para a fórmula MDRD seja pouco significativa, como comprovam as curvas ROC. Apesar da utilidade na avaliação prognóstica no internamento e na predição do risco de IC, a capacidade preditora do risco a médio prazo parece ser ligeiramente inferior à proporcionada pela fórmula MDRD, contrariamente ao que outros autores demonstraram20,21.

Fórmulas de estimativa da TFG são menos fidedignas em populações com características diferentes daquelas que as originaram. Quando uma fórmula é usada numa amostra com um intervalo de TFG diferente do da população que lhe deu origem, verifica-se tendência para desvio das TFG calculadas em direção à média na população de origem (regressão para a média). Uma equação desenvolvida numa população com baixa TFG tenderá a subestimar a TFG se usada numa amostra de indivíduos saudáveis. As fórmulas atuais foram desenvolvidas em doentes com IR crónica, pelo que tenderão globalmente a subestimar a TFG na amostra atual de doentes admitidos por EAM (a maioria dos quais com função renal relativamente conservada). Por outro lado, estas fórmulas não têm em conta todos os determinantes dos níveis de creatinina sérica, como alterações do peso/massa muscular não dependentes da idade, sexo ou raça, a dieta e maior/menor secreção tubular. De referir ainda que estas fórmulas não foram inicialmente criadas para aplicação em doentes hemodinamicamente instáveis (uma parcela pequena, porém não negligenciável, da amostra)30. Estes vieses condicionam o impacto prognóstico da TFG em doentes admitidos por EAM e acredita-se que a sua influência seja ligeiramente superior na fórmula de Cockcroft-Gault por ser uma fórmula menos recente/atualizada.

As últimas guidelines da Sociedade Europeia de Cardiologia relativas a doentes com síndrome coronária aguda sem supradesnivelamento do segmento ST referem que a avaliação da função renal pela fórmula MDRD é mais adequada, ressalvando que, na prática clínica diária, o cálculo do clearance da creatinina pela fórmula de Cockcroft-Gault é também uma opção viável31.

Apesar de todas estas considerações, é de particular importância para o clínico a noção de que a disfunção renal, mesmo que subclínica, identifica um maior risco cardiovascular e se associae a pior prognóstico. A sua associação a doença coronária mais extensa, maior exposição aos efeitos secundários dos fármacos, maior taxa de complicações de procedimentos invasivos, maior incidência de comorbilidades, entre outros, impossibilitam que este tema seja reduzido a uma questão quase matemática, dada a sua enorme complexidade.

Algumas das limitações deste estudo deverão ser mencionadas:

  • -

    tamanho da amostra. Estudos com amostras de maiores dimensões serão necessários para conclusões mais fidedignas;

  • -

    Não foi calculado o score de TIMI para os doentes com STEMI, apenas naqueles com NSTEMI;

  • -

    reinternamento por IC descompensada é um evento difícil de definir e uniformizar. Os autores incluíram apenas doentes cuja estadia no Hospital tenha sido superior a 48 horas; porém, esta medida não impede que tenham sido incluídos na mesma análise doentes com apresentações clínicas de gravidade muito variável;

  • -

    A classificação de Killip foi usada para avaliar a eventual presença de IC aguda. No entanto, os autores reconhecem a imprecisão do termo. De facto, a IC é um quadro clínico bem definido e que implica a presença de sintomas (de gravidade variável). Um doente em classe II de Killip não apresenta necessariamente sintomas de IC, pelo que não será totalmente correto classificá-lo como tendo IC aguda;

  • -

    Seria importante dispor de outros parâmetros de avaliação da função renal, nomeadamente os níveis de ureia e cistatina C na admissão, já que, segundo estudos recentes, estas variáveis poderão equiparar-se à TFG ou mesmo ultrapassá-la na capacidade de predição de risco. Seria interessante avaliar se a TFG calculada pela fórmula MDRD se manteria como preditora independente de mortalidade se os níveis de ureia e/ou cistatina C fossem incluídos na análise.

Conclusões

A estimativa da TFG é indispensável em doentes admitidos por EAM. Além de permitir a administração de doses eficazes e seguras de amplo espetro de fármacos necessários nestes doentes, permite estratificação global do risco cardiovascular intra-hospitalar e a médio prazo.

O estudo atual sugere ligeira superioridade da fórmula MDRD na avaliação prognóstica destes doentes quando comparada com a fórmula de Cockcroft-Gault. De facto, a TFG calculada pela primeira fórmula assumiu-se como preditora independente de mortalidade intra-hospitalar e nos dois primeiros anos pós-alta, algo não verificado quando a segunda fórmula foi utilizada. Os modelos estabelecidos em análise multivariada e as curvas ROC desenvolvidas comprovaram a maior adequabilidade da aplicação da fórmula MDRD, em detrimento da fórmula de Cockcroft-Gault, na avaliação clínica destes doentes e na estratificação de risco cardiovascular, sugerindo que seja dada preferência à fórmula MDRD em doentes admitidos numa UCIC com o diagnóstico de EAM. Importa reter, no entanto, que a diferença entre o valor prognóstico das duas fórmulas não é particularmente significativa, pelo que a avaliação da função renal per se, independentemente da fórmula usada, deverá assumir papel primordial sem constrangimentos associados à escolha da fórmula mais adequada.

Conflito de interesses

Os autores declaram não haver conflito de interesses.

Bibliografia
[1]
N. Anavekar, M. Pfeffer.
Cardiovascular risk in chronic kidney disease.
Kidney International, 66 (2004), pp. S11-S15
[2]
E. Angelantonio, J. Danesh, G. Eiriksdottir, et al.
Renal Function and Risk of Coronary Heart Disease in General Populations.
[3]
R. Wright, G. Reeder, C. Herzog, et al.
Acute Myocardial Infarction and Renal Dysfunction: A High-Risk Combination.
Ann Intern Med, 137 (2002), pp. 563-570
[4]
F. Afshinnia, P. Avazi, H.L. Chadow.
Glomerular filtration rate on admission independently predicts short-term in-hospital mortality after acute myocardial infarction.
Am J Nephrol, 26 (2006), pp. 408-414
[5]
N. Avanekar, J. McMurray, E. Velazquez, et al.
Relation between Renal Dysfunction and Cardiovascular Outcomes after Myocardial Infarction.
N Engl J Med, 351 (2004), pp. 1285-1295
[6]
J. Holzmann, T. Ivert, I. Jungner, et al.
Renal function assessed by two different formulas and incidence of myocardial infarction and death in middle-aged men and women.
J Inter Med, 267 (2010), pp. 357-369
[7]
E. Pimenta, R. Ramos, C. Gun, et al.
Evolução da função renal na fase aguda do enfarto do miocárdio como fator prognóstico de eventos na fase intra-hospitalar e em um ano de seguimento.
Arquivos Brasileiros de Cardiologia, 86 (2006), pp. 170-174
[8]
S. Mendis, K. Thygesen, K. Kuulasmaa, et al.
World Health Organization definition of myocardial infarction: 2008-09 revision.
Int J Epidemiol, 40 (2011), pp. 139-146
[9]
A. Lekston, A. Kurek, B. Tynior.
Impaired renal function in acute myocardial infarction.
Cardiol J, 16 (2009), pp. 400-406
[10]
E. Rutherford, S. Leslie, R. Soiza.
Creatinine and eGFR are similarly predictive of outcome of acute coronary syndrome.
Int J Cardiol, 141 (2010), pp. 118-120
[11]
L.M. Mielniczuk, M.A. Pfeffer, E.F. Lewis, et al.
Acute decline in renal function, inflammation, and cardiovascular risk after an acute coronary syndrome.
Clin J Am Soc Nephrol, 4 (2009), pp. 1811-1817
[12]
A. Goldberg, E. Kogan, H. Hammerman, et al.
The impact of transient and persistent acute kidney injury on long-term outcomes after acute myocardial infarction.
Kidney Int, 76 (2009), pp. 900-906
[13]
D. Xie, Y.Q. Hou, F.F. Hou, et al.
Coronary stenting does not improve the long-term cardiovascular outcome of patients with mild to moderate renal insufficiency.
Chin Med J, 122 (2009), pp. 158-164
[14]
T. Celik, A. Iyisoy, C.U. Yuksel, et al.
Impact of admission glomerular filtration rate on the development of poor myocardial perfusion after primary percutaneous intervention in patients with acute myocardial infarction.
Coron Artery Dis, 19 (2008), pp. 543-549
[15]
F. Cardarelli, A. Bellasi, F.S. Ou, et al.
Combined impact of age and estimated glomerular filtration rate on in-hospital mortality after percutaneous coronary intervention for acute myocardial infarction.
Am J Cardiol, 103 (2009), pp. 766-771
[16]
T. Nakata, A. Hashimoto, T. Wakabayashi, et al.
Prediction of New-Onset Refractory Congestive Heart Failure Using Gated Myocardial Perfusion SPECT Imaging in Patients With Known or Suspected Coronary Artery Disease.
J Am Coll Cardiol Img, 2 (2009), pp. 1393-1400
[17]
E. Poggio, X. Wang, T. Greene, et al.
Performance of the Modification of Diet in Renal Disease and Cockcroft-Gault Equations in the Estimation of GFR in Health and in Chronic Kidney Disease.
J Am Soc Nephrol, 16 (2005), pp. 459-466
[18]
C. Melloni, E. Peterson, A. Chen, et al.
Cockcroft-Gault Versus Modification of Diet in Renal Disease: Importance of Glomerular Filtration Rate Formula for Classification of Chronic Kidney Disease in Patients With Non–ST-Segment Elevation Acute Coronary Syndromes.
J Am Coll Cardiol, 51 (2008), pp. 991-996
[19]
E. Meara, K. Chong, R. Gardner, et al.
The Modification of Diet in Renal Disease (MDRD) equations provide valid estimations of glomerular filtration rates in patients with advanced heart failure.
Eur J Heart Fail, 8 (2006), pp. 63-67
[20]
K. Szummer, P. Lundman, S. Jacobson, et al.
Cockcroft-Gault is better than the Modification of Diet in Renal Disease study formula at predicting outcome after a myocardial infarction: data from the Swedish Web-system for Enhancement and Development of Evidence-based care in Heart disease Evaluated According to Recommended Therapies (SWEDEHEART).
Am Heart J, 159 (2010), pp. 979-986
[21]
Y. Lin, Z. Zheng, Y. Li, et al.
Impact of Renal Dysfunction on Long-Term Survival After Isolated Coronary Artery Bypass Surgery.
Ann Thorac Surg, 87 (2009), pp. 1079-1084
[22]
A. Abaci, N. Sen, H. Yazici, et al.
Renal dysfunction is the most important predictor of the extent and severity of coronary artery disease in patients with diabetes mellitus.
Coron Artery Dis, 18 (2007), pp. 463-469
[23]
S. Beddhu, K. Allen-Brady, A. Cheung, et al.
Impact of renal failure on the risk of myocardial infarction and death.
Kidney International, 62 (2002), pp. 1776-1783
[24]
A. Verma, N. Anavekar, A. Meris, et al.
The Relationship Between Renal Function and Cardiac Structure, Function, and Prognosis After Myocardial Infarction: The VALIANT Echo Study.
J Am Coll Cardiol, 50 (2007), pp. 1238-1245
[25]
E. Antman, M. Cohen, P. Bernink, et al.
The TIMI Risk Score for Unstable Angina/Non–ST Elevation MI.
JAMA, 284 (2000), pp. 835-842
[26]
H. Radia.
STEMI and NSTEMI patients with CKD receive fewer evidence-based treatments and show higher mortality rates.
Circulation, 121 (2010), pp. 345-347
[27]
A. Go, M. Fang, N. Udaltsova, et al.
Impact of Proteinuria and Glomerular Filtration Rate on Risk of Thromboembolism in Atrial Fibrillation.
Circulation, 119 (2009), pp. 1363-1369
[28]
R. Bouchi, T. Babazono, I. Nyumura, et al.
Is a reduced estimated glomerular filtration rate a risk factor for stroke in patients with type 2 diabetes?.
Hypertension Res, 32 (2009), pp. 381-386
[29]
M. Bos, P. Koudstaal, A. Hofman, et al.
Decreased Glomerular Filtration Rate Is a Risk Factor for Hemorrhagic But Not for Ischemic Stroke.
[30]
L. Stevens, A. Levey.
Clinical Implications of Estimating Equations for Glomerular Filtration Rate.
Ann Intern Med, 141 (2004), pp. 959-961
[31]
C. Hamm, J.P. Bassand, S. Agewall, et al.
ESC Guidelines for the management of acute coronary syndromes in patients presenting without persistent ST-segment elevation.
Eur Heart J, 32 (2011), pp. 2999-3054
Copyright © 2011. Sociedade Portuguesa de Cardiologia
Baixar PDF
Idiomas
Revista Portuguesa de Cardiologia
Opções de artigo
Ferramentas
en pt

Are you a health professional able to prescribe or dispense drugs?

Você é um profissional de saúde habilitado a prescrever ou dispensar medicamentos

Ao assinalar que é «Profissional de Saúde», declara conhecer e aceitar que a responsável pelo tratamento dos dados pessoais dos utilizadores da página de internet da Revista Portuguesa de Cardiologia (RPC), é esta entidade, com sede no Campo Grande, n.º 28, 13.º, 1700-093 Lisboa, com os telefones 217 970 685 e 217 817 630, fax 217 931 095 e com o endereço de correio eletrónico revista@spc.pt. Declaro para todos os fins, que assumo inteira responsabilidade pela veracidade e exatidão da afirmação aqui fornecida.