A definição de estratégias terapêuticas orientadas por critérios de natureza multiparamétrica que contemplam mais do que apenas os de natureza clínica é muito complexa e por vezes pode não cumprir o seu objetivo principal, que é o de ter a capacidade para identificar grupos. Essa condição é particularmente mais importante se se destinar a definir grupos de risco.
As tabelas ou scores de risco são muito usadas em cardiologia, procuram identificar os doentes que terão melhor ou pior prognóstico à data da observação no contexto de determinada síndroma clínica e, a partir desses pressupostos, definir estratégias terapêuticas. A scores de risco mais elevados correspondem frequentemente estratégias terapêuticas mais agressivas, com o objetivo de tentar contornar o prognóstico inicial.
A cirurgia cardíaca usa também scores de risco, mas com objetivo diferente do que anteriormente analisamos. Esse scores visam essencialmente a prever a mortalidade associada a uma determinada intervenção cirúrgica enquadrada na complexidade clínica e anatómica de cada doente. Por esse facto, surgem múltiplas condições clínicas em que são facilmente identificadas a necessidade e a indicação para a feitura de uma determinada intervenção cirúrgica, mas em que não existem as condições necessárias para a sua feitura com a segurança exigida. Existe a indicação, mas não existe a condição.
Relativamente à estenose aórtica esse assunto tornou‐se progressivamente mais pertinente quando surgiu a hipótese de tratamento menos agressivo mas igualmente eficaz com o uso de válvulas aórticas implantadas por via percutânea (TAVI), para uma população de risco cirúrgico muito elevado ou proibitivo.
A estratégia inicial de tratamento dos doentes com estenose aórtica severa e risco cirúrgico baixo ou moderado (além de condições anatómicas peculiares como a bicuspidia) é a cirúrgica, reservam‐se apenas as TAVI para os doentes de risco cirúrgico muito elevado ou proibitivo.
A definição de qual o melhor score para decidir essa orientação terapêutica de acordo com o risco de mortalidade e, consequentemente, mais perfeito na identificação dos doentes que devem ser referenciados para TAVI tem‐se dividido atualmente entre o European System for Cardiac Operative Risk Evaluation (EuroSCORE II)1,2 e o Society of Thoracic Surgeons Risk Score (STS‐PROM)3,4.
O EuroSCORE II é baseado num banco de dados de 22 000 doentes submetidos a cirurgia cardíaca em 154 hospitais de 43 países, entre maio e julho de 2010; o STS‐PROM, que só pode ser usado para a substituição valvular aórtica isolada, para a doença valvular mitral isolada (plastia e substituição), para a cirurgia de revascularização miocárdica isolada (CABG) e para a CABG com substituição valvular aórtica ou substituição valvular mitral (não a dupla substituição valvular), foi constituído a partir de 1999, pela Society of Thoracic Surgeons (STS), que publicou scores de risco a partir de dados de doentes submetidos a cirurgia, com o uso da mortalidade operatória como end‐point. A população final foi constituída por 101 661 procedimentos, entre 1 de janeiro de 2002 e 31 de dezembro de 2006.
Múltiplos artigos científicos que têm sido escritos compararam o poder descriminativo de cada um desses scores para a definição do risco e consequente orientação terapêutica em doentes com estenose valvular aórtica5,6. O EuroSCORE II veio substituir o EuroScore inicialmente usado na avaliação do risco de mortalidade, ao demonstrar ser mais discriminativo, por reduzir a sobreavaliação do risco relativamente ao seu predecessor7.
No entanto, mesmo os EuroSCORE II como o STS Score demonstraram ter correlações e concordâncias muito modestas e, ao se definirem os valores desses scores que identificam o risco elevado (EuroSCORE II ≥ 7% e STS Score ≥ 10%), verificou‐se que apenas metade dos doentes atingia esse limiar5.
Esses resultados mostraram as limitações desses sistemas e chamaram a atenção para a necessidade de fazer um julgamento clínico criterioso para além da avaliação dos scores de risco na definição da estratégia terapêutica.
No artigo de Arangalage et al5, um EuroSCORE II de ≥ 7% foi observado em 51% dos doentes e proporcionou o valor diagnóstico mais elevado (definido como a soma da sensibilidade e especificidade para prever um risco cirúrgico elevado) em comparação com o LogisticEuroSCORE ≥ 20% (70% sensibilidade e 75% especificidade) e com o STS Score ≥ 10% (69% sensibilidade e 60% especificidade). Com o uso do valor de ≥ 7% para o EuroSCORE II, a concordância com o Logistic EuroSCORE foi baixa, mas ainda foi mais baixa com o STS Score. Relativamente aos outros, o EuroSCORE II incorpora novos parâmetros no algoritmo que podem condicionar o seu melhor desempenho. Desses, destacamos as classes da NYHA e da Associação Cardiovascular Canadiana, o grau de insuficiência renal, a fração de ejeção ventricular esquerda e a pressão sistólica na artéria pulmonar, a capacidade de locomoção reduzida e a diabetes dependente de insulina, além do grau de urgência. Provavelmente pela inclusão dessas variáveis, o EuroSCORE II apresenta uma melhor calibração (capacidade de, com rigor, definir a mortalidade operatória) e uma melhor capacidade discriminativa (de diferenciar os doentes de baixo e alto risco) do que o Logistic EuroSCORE e do que STS Score. No entanto, como referido, apenas metade dos doentes atinge o valor de corte que define o alto risco, o que obriga a um julgamento clínico criterioso, baseado na evidência e vertido nas recomendações clínicas.
Esses scores, idealizados para avaliar a mortalidade associada a cirurgia cardíaca, serviram, ainda que de uma maneira incompleta, para identificar os doentes que deveriam ser submetidos a TAVI, tendo em consideração o risco de mortalidade. No entanto, esses mesmos scores têm também sido usados para prever o risco operatório dos doentes submetidos a TAVI. Num artigo de 2013 de Watanabe et al8 os autores avaliam a performance do EuroSCORE II (ESII) em doentes submetidos a TAVI, compararam‐no também com STS Score e o Logistic EuroScore (LES). Os autores concluem que o ESII prediz melhor a mortalidade aos 30 dias do que o LES ou STS Score, ainda que de uma maneira modesta, mas sensivelmente melhor no grupo de doentes que foram submetidos a acesso transfemoral.
Torna‐se por isso evidente que são necessárias outras ferramentas para prever a mortalidade após TAVI, embora tenham sido propostas alterações ao ESII para melhorar a sua performance, inclusive a «fragilidade», identificada como perda de peso, exaustão, baixa energia, lentidão e fraqueza, para a caracterizar9.
O 2011‐12 Pilot European Sentinel Registry of Transcateter Aortic Valve Implantation: in‐hospital results in 4,571 patients, publicado em 2013 no EuroIntervention10, identificou uma taxa de mortalidade hospitalar de 7,4%, uma taxa de AVC de 1,8%, uma taxa de EAM de 0,9% e uma taxa de complicações vasculares de 3,1%. A baixa taxa de complicações foi associada a uma crescente competência dos operadores e à melhoria progressiva dos cateteres e das válvulas; por outro lado, a idade avançada, um LES elevado antes do procedimento, regurgitação mitral > 2 antes do procedimento e a falha na implantação da válvula foram identificados como fatores preditivos de aumento da mortalidade por análise multivariada. Apesar de ajudar a compreender os fatores associados a mau prognóstico após TAVI, este estudo não identifica o que se tem tornado numa exigência na época de enorme crescimento no uso das válvulas aórticas implantadas por via percutânea: identificar a probabilidade de morte após TAVI antes da sua implantação. Criar um score de risco específico para a implantação de TAVI.
Os autores do FRANCE 2 Register11, liderados por Bernard Iung, com o uso da informação do registo French Aortic National CoreValvand Edwards (FRANCE 2), procuraram constituir um score multiparamétrico, de uso simples, destinado a prever o risco dos doentes submetidos a TAVI. Com esse objetivo, dividiram 3833 doentes consecutivos submetidos à implantação de TAVI em dois cohorts; os primeiros 2552 doentes foram usados para desenvolver os score de prognóstico a 30 dias ou de mortalidade hospitalar pós‐TAVI e os restantes 1281 doentes foram usados com intenção de validação do modelo.
A mortalidade hospitalar e aos 30 dias foi de 10% e o modelo multivariável identificou os seus fatores preditivos: idade ≥ 90 anos, um IMC < 30 Kg/m2, ICC com classe IV da NYHA, hipertensão pulmonar, dois ou mais EAP no ano prévio, estado hemodinâmico crítico, insuficiência respiratória, diálise e acesso transapical (ou outro não transfemoral), esses últimos quatro foram os mais relevantes. Cada um dos fatores foi ponderado e integrado num score de risco de 21 pontos, com uma taxa de mortalidade de < 5% e > 40% entre os doentes com o mais baixo e o mais alto score de risco, respetivamente.
O score atingiu o que os autores denominaram «descriminação moderada» (c‐index de 0,67 do cohort de desenvolvimento e 0,59 no cohort de validação), o que pode indicar que o score pode não funcionar nos doentes de risco muito elevado. Segundo Ribeiro et al.12 as causas para esse resultado devem‐se essencialmente a três condições: a primeira é o baixo número de doentes incluídos, muito menor do que nos scores de risco cirúrgicos; a segunda prende‐se com as características da população: muito idosa e com uma enorme taxa de comorbilidades; por outro lado, a ausência de parâmetros associados a fragilidade e compromisso funcional pode ter contribuído negativamente para o poder preditivo do modelo; a terceira condição tem a ver com a taxa elevada de morte ao fim do primeiro mês após a implantação da TAVI, foi de 14%, ao contrário do que acontece com a implantação cirúrgica, que apresenta nesse enquadramento temporal uma taxa muito baixa.
Outro ponto que esses autores apontam a exigir reflexão tem a ver com a falta de melhoria da qualidade de vida ou de recuperação funcional após a implantação de TAVI em alguns doentes, o que deveria ser ponderado e explorado no futuro próximo, relativamente à definição de scores de risco destinado a esse complexo grupo de doentes. Por outro lado, as complicações durante o procedimento têm vindo a diminuir progressivamente com o aumento da experiência das equipas de intervenção, que pode ter um papel não negligenciável na baixa taxa de mortalidade aos 30 dias e deve ser tomado em consideração na definição de estratégias e incorporado no racional dos scores de risco.
O artigo da autoria de Carmo et al.13, publicado neste número da Revista Portuguesa de Cardiologia, que surge na sequência da apresentação do FRANCE 2, tem como objetivo comparar os scores de risco multiparamétricos, para prever a mortalidade precoce depois da implantação de TAVI. Ao estudar retrospetivamente 240 doentes (de um estudo prospetivo), submetidos a TAVI entre janeiro de 2008 e dezembro de 2015, avaliaram os scores para descriminação e calibração e concluíram que todos os três scores avaliados (ES II, STS e FRANCE 2) apresentam um desempenho modesto em prever a mortalidade precoce pós‐TAVI e, apesar de ser derivado de uma população de doentes submetidos a TAVI, o FRANCE 2 não mostrou ser melhor do que os scores cirúrgicos na população estudada. O poder discriminativo foi melhor para o ES II (c‐index 0,67) e para o STS (c‐index 0,67) quando comparados com o FRANCE 2 (c‐index 0,53), embora a diferença não tenha atingido significado estatístico.
Esta reflexão serve para percebermos que não dispomos ainda de ferramentas perfeitas na previsão da mortalidade operatória de doentes com doença valvular aórtica, nem da associada à implantação de válvulas aórticas por via percutânea.
Dificultada fica assim a tarefa de identificar quais os doentes que mais poderiam beneficiar com uma estratégia menos agressiva num enquadramento de risco padronizado, bem como identificar a priori os doentes que mais poderiam beneficiar dessa decisão e, dessa maneira, completar um modelo de estratégia que conseguisse identificar dentro do grupo os melhores candidatos.
A nossa expetativa é que à medida que o número de doentes submetidos a TAVI aumenta, aumente também o tamanho da amostra do grupo hipoteticamente escrutinado para avaliação, o que pode vir a resolver algumas das principais limitações com que nos temos deparado até agora e que têm sido responsáveis pela fragilidade dos modelos.
Conflitos de interesseO autor declara não haver conflito de interesses.