Relata‐se o interessante caso de uma rara forma de apresentação de rotura da aorta ascendente com formação de um pseudoaneurisma, diagnosticado por manifestar‐se como uma grande massa tumoral na superfície do tórax com evolução clínica de, aproximadamente, oito meses. Provas sorológicas foram positivas para sífilis. Ecocardiografia e angiotomografia foram fundamentais na confirmação diagnóstica e orientação terapêutica.
Sífilis cardiovascular é uma entidade rara após a descoberta da penicilina. Dilatação aneurismática rota da aorta com formação de um pseudoaneurisma é uma complicação potencialmente fatal.
O paciente evoluiu sem intercorrências no período pós‐operatório, recebendo alta hospitalar dias após o procedimento cirúrgico.
We report the interesting case of a rare form of presentation of rupture of the ascending aorta with formation of a pseudoaneurysm, diagnosed following the development of a large mass on the surface of the chest over a period of about eight months. Serological tests were positive for syphilis. Echocardiography and computed tomography angiography were essential to confirm the diagnosis and therapeutic management.
Cardiovascular syphilis is a rare entity since the discovery of penicillin. Rupture of an aortic aneurysm with formation of a pseudoaneurysm is a potentially fatal complication.
The postoperative period was uneventful and the patient was discharged from hospital within days of surgery.
O pseudoaneurisma aórtico é uma patologia grave e potencialmente fatal, caracterizado pela coleção de sangue e tecido conjuntivo por fora da parede do vaso. Decorre da rotura de, pelo menos, uma das camadas da parede aórtica, contida pelas restantes ou por estruturas mediastínicas adjacentes, determinando a formação de um saco aneurismático extraluminal que comunica a verdadeira luz através de um colo estreito.
Os autores descrevem o interessante caso de uma rara forma de apresentação de rotura da aorta ascendente com formação de um pseudoaneurisma, diagnosticado por manifestar‐se como uma grande massa tumoral na superfície do tórax com evolução clínica de, aproximadamente, oito meses. Ecocardiografia e angiotomografia foram fundamentais na confirmação diagnóstica e orientação terapêutica.
Relato do casoHomem de 54 anos, branco, resolve procurar auxílio médico por queixar‐se de tumoração em crescimento no seu peito, associada a dor torácica dorsal com cerca de oito meses de evolução. A dor possuía caráter latejante, associada à cefaleia, sem irradiação, inicialmente leve (com progressão para moderada intensidade) e melhora após uso de ibuprofeno. Referia ainda disfagia de condução e negava demais sintomas, inclusive trauma torácico, forte dor aguda ou infeção prévia. Cessou tabagismo e etilismo após início do quadro clínico (passado de grande ingestão diária de álcool). Desconhecia outras comorbidades. Ao exame físico, encontrava‐se em bom estado geral, eupneico, normocorado, chamando atenção a presença de grande massa em região anterior esquerda do tórax, com cerca de quinze centímetros de diâmetro e pulsátil à palpação (Figura 1). Frequência cardíaca e pressão arterial estavam normais. Ausência de alterações neurológicas. Não havia alterações dos pulsos. Ausculta cardíaca normal. Redução do murmúrio vesicular em base do hemitórax esquerdo.
Após internação hospitalar, o paciente foi medicado com betabloqueador por via oral (propranolol). Realizou radiografia de tórax em incidência póstero‐anterior, demonstrando alargamento mediastinal e elevação da base do hemitórax à esquerda (sugerindo eventração diafragmática). O eletrocardiograma era normal.
Realizou ecocardiografias transtorácica (Figura 1) e transesofágica que revelaram dilatação aneurismática envolvendo a porção distal da aorta ascendente e arco aórtico, com 93mm em seu maior diâmetro, além de imagem com aspeto de perda de continuidade da parede aórtica, compatível com rotura, havendo contensão local do fluxo sanguíneo determinada por extensa área extraluminal de ecogenicidade heterogênea junto à parede aórtica (possivelmente trombos murais) formando um pseudoaneurisma. Um dos trombos estava impactado no colo do pseudoaneurisma, sendo identificada a passagem de pequeno fluxo ao mapeamento de cores. A aorta ascendente tubular apresentava dilatação de sua porção distal (55mm de diâmetro) e os demais segmentos aórticos apresentavam fluxometria e diâmetros normais. Em arco aórtico, observava‐se imagem compatível com hematoma intramural em formato de crescente, medindo aproximadamente 26mm de profundidade.
O paciente foi submetido à angiotiomografia de tórax (Figura 2) que revelou significativa lesão aneurismática comprometendo o segmento ascendente da aorta torácica e arco (medindo aproximadamente 12×93mm e com importante alargamento do mediastino ântero‐superior) e sinais de rotura, evidenciada por extravasamento de conteúdo hipodenso extratorácico e abaulamento cístico do tórax. Evidenciava‐se ainda trombo parietal com espessura de 24mm. O aneurisma ocasionava compressão significativa sobre o tronco da artéria pulmonar, rechaçando‐o posteriormente.
No pré‐operatório, o cateterismo esquerdo e a aortografia revelavam irregularidades da artéria descendente anterior e artéria circunflexa, sem lesões obstrutivas, e com evidência de aneurisma em aorta ascendente comprimindo o tronco braquiocefálico e a artéria carótida comum esquerda.
Após a confirmação diagnóstica pelos exames de imagem, o paciente foi submetido à intervenção cirúrgica. Empregou‐se circulação extracorpórea e hipotermia profunda, esternotomia mediana, corrigindo‐se o aneurisma roto da aorta ascendente e do arco através da interposição de enxerto vascular sintético, havendo reimplante e redirecionamento de fluxo do tronco braquiocefálico e da artéria carótida esquerda.
No período pós‐operatório, foram solicitados testes laboratoriais para o rastreamento de sífilis: provas treponémica (VDRL) e não treponémica (ensaio quimioluminescente), ambas com resultados positivos (VDRL 1/64 e ensaio quimioluminescente de 55,74s/co).
O paciente evoluiu sem intercorrências, recebendo alta hospitalar dias após o procedimento cirúrgico. Após avaliação por infetologista e coleta de amostra de líquido cefalorraquidiano, com resultado negativo, foi submetido à antibioticoterapia indicada para sífilis terciária.
DiscussãoA sífilis é uma doença sexualmente transmissível causada pela bactéria Treponema pallidum. Se não tratada, pode determinar manifestações dermatológicas, neurológicas e cardiovasculares.
A lesão característica no sistema cardiovascular é a aortite, uma resposta inflamatória à invasão da parede aórtica pelas espiroquetas, que acarreta endarterite obliterante da vasa vasorum e resulta em necrose das fibras elásticas e do tecido conjuntivo na camada média. Como consequência do enfraquecimento da parede da aorta, poderá haver progressão para manifestações vasculares tardias da sífilis1,2.
A aortite, precursora de complicações cardiovasculares mais letais e sintomáticas, é encontrada em cerca de 70‐80% dos casos não tratados após uma infeção primária3,4.
Apesar de atualmente rara, antes da descoberta da penicilina, a sífilis cardiovascular foi demonstrável em 55‐86% dos casos em estudos de autópsia5. Foi a causa mais comum de aneurisma da aorta torácica, resultando em 5‐10% das mortes por doenças cardiovasculares.
A aorta torácica ascendente é a mais comumente envolvida (cerca de 50% dos casos), podendo causar dilatação e insuficiência valvar aórtica, seguido pelo arco (35%) e aorta descendente (15%)3.
Manifestações significativas ocorrerão em aproximadamente 10% dos pacientes4,6, como aneurisma da aorta, insuficiência aórtica e estenose de óstios coronários1,4. O rico arranjo linfático na aorta ascendente parece ser causa da maior predisposição para o envolvimento deste segmento1,7.
O pseudoaneurisma é uma coleção bem definida de sangue e tecido conjuntivo por fora da parede do vaso, resultado da rotura contida da parede aórtica. Assim como no pseudoaneurisma ventricular esquerdo, caracteriza‐se por saco aneurismático extraluminal se comunicando com a luz verdadeira por um colo relativamente estreito2.
As manifestações clínicas ocorrem tipicamente 10‐30 anos após infeção inicial (período de latência da espiroqueta) em pacientes não tratados4. Dor torácica é a manifestação clínica mais comum, geralmente secundária à rápida expansão do aneurisma aórtico, caracterizado por uma alta taxa de rotura espontânea, a principal responsável pela mortalidade de até 80% no primeiro ano de diagnóstico, sem a correção cirúrgica adequada8.
A rotura aórtica é associada com o início dramático de dor excruciante, frequentemente na região onde uma dor menos intensa previamente existia2. Surpreendentemente, nosso paciente negou episódio de forte dor aguda.
O tratamento definitivo do aneurisma e pseudoaneurisma de aorta é a reparação cirúrgica, que envolve a ressecção da porção dilatada da aorta e sua substituição por um enxerto vascular sintético6,7.
A sífilis cardiovascular pode ser tratada com penicilina benzatina (2,4 milhões de unidades, intramuscular, uma vez por semana durante três semanas); esta terapêutica foi instituída ao nosso paciente após a confirmação do diagnóstico etiológico. Pacientes que têm sífilis tardia sintomática devem receber um exame do líquido cefalorraquidiano antes da terapia ser iniciada8,9. A terapia bem sucedida com antibióticos poder deter a progressão da aortite5, apesar de geralmente não impedir a formação de aneurismas da aorta, pois não há reversão das lesões vasculares pós‐sifilíticas10.
Responsabilidades éticasProteção de pessoas e animaisOs autores declaram que para esta investigação não se realizaram experiências em seres humanos e/ou animais.
Confidencialidade dos dadosOs autores declaram que não aparecem dados de pacientes neste artigo.
Direito à privacidade e consentimento escritoOs autores declaram que não aparecem dados de pacientes neste artigo.
Conflito de interessesOs autores declaram não haver conflito de interesses.