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Vol. 34. Núm. 11.
Páginas 683-689 (novembro 2015)
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Vol. 34. Núm. 11.
Páginas 683-689 (novembro 2015)
Posição de Consenso
Open Access
Recomendações da Sociedade Portuguesa de Cirurgia Cárdio‐Torácica e Vascular e da Sociedade Portuguesa de Cardiologia sobre tempos de espera para cirurgia cardíaca
Portuguese Society of Cardiothoracic and Vascular Surgery/Portuguese Society of Cardiology recommendations for waiting times for cardiac surgery
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José Neves
Autor para correspondência
jpneves@chlo.min_saude.pt

Autor para correspondência.
, Hélder Pereira, Miguel Sousa Uva, Cristina Gavina, Adelino Leite Moreira, Maria José Loureiro
Sociedade Portuguesa de Cirurgia Cardio‐Torácica e Vascular e Sociedade Portuguesa de Cardiologia, Lisboa, Portugal
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Tabela 1. Limite máximo de tempo de referenciação para consulta de especialidade
Tabela 2. Limite máximo de tempo de diagnóstico
Tabela 3. Limite máximo de tempo de espera para cirurgia cardíaca em casos de doença isquémica ou estenose aórtica grave
Tabela 4. Limite máximo de tempo de espera para cirurgia cardíaca para outras patologias com potencial indicação cirúrgica
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Resumo

Nomeado em conjunto pela Sociedade Portuguesa de Cirurgia Cardio‐Torácica e Vascular (SPCCTV) e pela Sociedade Portuguesa de Cardiologia (SPC), o Grupo de Trabalho sobre Tempos de Espera para Cirurgia Cardíaca constituiu‐se com a missão de elaborar recomendações práticas acerca dos tempos de espera clinicamente aceitáveis para o largo espetro de patologias cardíacas do adulto que necessitam de cirurgia, ou de intervenção nas três fases críticas do seu tratamento: consulta de especialidade, ato de diagnóstico e terapêutica invasiva.

A cirurgia cardíaca detém uma especificidade própria, não comparável às outras especialidades cirúrgicas e, como tal, assume‐se de especial importância a redução significativa dos seus tempos de espera máximos, assim como uma maior eficácia nos sistemas de monitorização e rastreabilidade do doente.

A informação presente neste manuscrito baseou‐se, predominantemente, na informação clínica existente. A metodologia usada para estabelecer os critérios baseou‐se em estudos de história natural da doença, em estudos clínicos que compararam o tratamento médico com a intervenção, em análises retrospetivas ou prospetivas de doentes em lista de espera e na opinião de peritos ou de grupos de trabalho.

Após esta primeira etapa, assinalada por esta publicação, a SPCCTV e a SPC devem ser consideradas como as interlocutoras naturais da tutela sobre esta matéria e comprometem‐se a colaborar de forma decisiva para a definição de estratégias de atuação, através da adequação da evidência clínica com a realidade e com os recursos disponíveis.

Palavras‐chave:
Cirurgia cardíaca
Cardiologia
Diagnóstico
Listas de espera
Sistemas de saúde beveridgianos
Recomendações
Grupo de trabalho
Peritos
Consenso
Abstract

Appointed jointly by the Portuguese Society of Cardiothoracic and Vascular Surgery (SPCCTV) and the Portuguese Society of Cardiology (SPC), the Working Group on Waiting Times for Cardiac Surgery was established with the aim of developing practical recommendations for clinically acceptable waiting times for the three critical phases of the care of adults with heart disease who require surgery or other cardiological intervention: cardiology appointments; the diagnostic process; and invasive treatment.

Cardiac surgery has specific characteristics that are not comparable to other surgical specialties. It is important to reduce maximum waiting times and to increase the efficacy of systems for patient monitoring and tracking.

The information in this document is mainly based on available clinical information. The methodology used to establish the criteria was based on studies on the natural history of heart disease, clinical studies comparing medical treatment with intervention, retrospective and prospective analyses of patients on waiting lists, and the opinions of experts and working groups.

Following the first step, represented by publication of this document, the SPCCTV and SPC, as the bodies best suited to oversee this process, are committed to working together to define operational strategies that will reconcile the clinical evidence with the actual situation and with available resources.

Keywords:
Cardiac surgery
Cardiology
Diagnosis
Waiting lists
Beveridge‐type health systems
Recommendations
Working group
Experts
Consensus
Abreviaturas
CCS

Canadian Cardiovascular Society

NYHA

New York Heart Association

OCDE

Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico

SIGLIC

Sistema Informático de Gestão da Lista de Inscritos para Cirurgia

SNS

Serviço Nacional de Saúde

SPC

Sociedade Portuguesa de Cardiologia

SPCCTV

Sociedade Portuguesa de Cirurgia Cardio‐Torácica e Vascular

TECC

Tempos de Espera para Cirurgia Cardíaca

TMRG

Tempos Máximos de Resposta Garantida

Texto Completo
Preâmbulo

A questão da definição dos critérios sobre os tempos de espera para cirurgia cardíaca (TECC) coloca‐se, maioritariamente, nos sistemas de saúde beveridgianos, onde cabe ao Estado a principal responsabilidade de financiamento e de prestação dos cuidados de saúde. Esta questão não é fulcral em países como França, Alemanha, Suíça, Bélgica ou Estados Unidos da América, cujos sistemas de prestação de cuidados de saúde são baseados no modelo bismarkiano, no qual as atividades em saúde, com particular destaque para as intervenções cirúrgicas, são assumidas diretamente entre hospitais/cirurgiões e doentes/seguradoras, com ou sem apoio estatal. Neste modelo, não existem problemas de oferta na resposta terapêutica e verifica‐se um controlo do acesso aos cuidados de saúde, ora por parte dos recursos do doente, ou pela cobertura e preços definidos pelas entidades pagadoras. No entanto, à semelhança dos países nórdicos e anglo‐saxónicos, o Serviço Nacional de Saúde (SNS) português é baseado no modelo de Beveridge. Em Portugal, devido à existência de recursos limitados, é fundamental maximizar o seu uso eficiente, tornando‐se essencial o ajustamento das estruturas de suporte da prestação dos cuidados de saúde às necessidades da população, nomeadamente através da gestão de listas de espera para acesso dos doentes aos cuidados de saúde.

Na atualidade portuguesa, o tempo de espera para cirurgia cardíaca é superior ao tempo de espera para intervenção cardiológica, o que pode indicar desajustamentos na oferta de cuidados ou na referenciação dos doentes. Os tempos de espera da realidade nacional, embora enquadrados na legislação do SNS, são considerados excessivos de acordo com os parâmetros internacionais. Não tem existido, até hoje, a perceção da necessidade de diferenciar os tempos de espera máximos aceitáveis para cirurgia cardíaca, como, por exemplo, para uma estenose aórtica ou para a doença coronária; dos tempos máximos aceitáveis para outros tipos de intervenção cirúrgica (ex.: cirurgia ortopédica ou oftalmológica), onde se observa uma menor gravidade das consequências. O tempo de espera para cirurgia cardíaca apresenta não só impactos severos na saúde e na qualidade de vida dos doentes, com agravamento de sintomas e eventos adversos, tais como deterioração da função ventricular, enfarte do miocárdio, insuficiência cardíaca ou morte, mas também consequências a nível económico, através dos custos diretos e indiretos relativos a morbilidades, internamentos repetidos ou prolongados, e reduções notórias da atividade laboral dos doentes e familiares.

Neste momento, existe uma vasta heterogeneidade sobre os critérios utilizados na seleção das prioridades cirúrgicas, persistindo uma lacuna ao nível de recomendações nacionais e internacionais relativamente aos TECC. A classificação do grau de prioridade é um ato complexo de responsabilidade médica e está baseado em critérios objetivos e subjetivos, tais como o estado do doente, a patologia, os resultados dos exames complementares e o juízo médico. Com o principal enfoque no doente, torna‐se então fundamental a definição do que constitui o verdadeiro tempo total de espera e o estabelecimento de linhas orientadoras que salvaguardem o tempo clinicamente adequado de resposta na área cardiovascular.

Perante este cenário, foi determinada a necessidade de constituir o Grupo de Trabalho sobre TECC. Nomeado em conjunto pela Sociedade Portuguesa de Cirurgia Cardio‐Torácica e Vascular (SPCCTV) e pela Sociedade Portuguesa de Cardiologia (SPC), este grupo apresentou‐se com a missão de elaborar recomendações sobre tempos de espera clinicamente aceitáveis para o largo espetro de patologias cardíacas do adulto que necessitam de cirurgia ou de intervenção cardiológica nas três fases críticas do seu tratamento: consulta de especialidade, ato de diagnóstico e terapêutica invasiva.

Foi através das conclusões deste Grupo de Trabalho que a SPCCTV e a SPC consideraram, como imperativo ético, a emissão de um parecer de caráter científico e independente do sistema económico ou político, que definisse os tempos máximos de espera clinicamente aceitáveis para a intervenção e para a cirurgia cardíaca, aproximando os tempos de espera das duas modalidades de tratamento e diferenciando a patologia cardiovascular de outras patologias com menor impacto no prognóstico de vida dos doentes. Analisaram‐se e definiram‐se várias etapas e respetivas responsabilidades, incluindo a referenciação para consulta, o estudo preparatório e a referenciação para cirurgia. Após esta primeira etapa, assinalada por esta publicação, as duas sociedades devem ser consideradas como os interlocutores naturais da tutela sobre esta matéria e comprometem‐se a colaborar de forma decisiva para a definição de estratégias de atuação, através da adequação da evidência clínica com a realidade e com os recursos disponíveis.

Evidência científica sobre tempos de espera para cirurgia cardíaca

O Grupo de Trabalho sobre TECC procurou informação e avaliou diferentes publicações, no sentido de estabelecer critérios clínicos para a marcação atempada de cirurgia cardíaca, de modo a evitar ou minorar a mortalidade, a morbilidade e o agravamento clínico do doente durante o tempo de espera. A informação disponível tem origem, predominantemente, em países com sistemas de saúde beveridgianos, semelhantes ao português, e constitui‐se de dois tipos: trabalhos que contribuíram para padrões de referência clínica e análises das autoridades de saúde que estabelecem padrões de referência institucional. A metodologia para estabelecer tempos máximos de espera clinicamente aceitáveis por tipo de patologia baseia‐se em estudos de história natural da doença, em estudos clínicos que compararam o tratamento médico com a intervenção, em análises retrospetivas ou prospetivas de doentes em lista de espera e na opinião de peritos ou de grupos de trabalho.

Nos anos 90 do século XX foram publicados os primeiros artigos que questionaram e divulgaram as consequências associadas à existência de listas de espera excessivamente longas2–5. Em 2000, a Sociedade Espanhola de Cardiologia e a Sociedade Espanhola de Cirurgia Cardiovascular elaboraram recomendações e definiram tempos máximos de espera para cirurgia cardíaca, de acordo com os principais tipos de patologia e graus de severidade6. Entre 2005‐2006, a Canadian Cardiovascular Society (CCS) publicou um conjunto de documentos em que foram definidos tempos de espera de referência (benchmark) para exames e procedimentos cardiovasculares7–9. Apesar das suas limitações, estes documentos, ao representarem vários consensos de peritos, vieram relançar o debate sobre as consequências nefastas dos tempos excessivos de espera, principalmente na doença coronária e na estenose aórtica, no Canadá e nos países anglo‐saxónicos. Alguns estudos reconhecem que a classificação em múltiplos graus de urgência e as eventuais alterações do grau de urgência durante o período de espera não são fiáveis2–4,7,8,10. Este processo de triagem através de scores de prioridade é de difícil execução e validação, devido ao elevado número de combinações possíveis das variáveis de risco4. Em consequência, grupos de trabalho que refletiram sobre este problema têm recomendado tempos máximos de espera mais curtos e divididos em apenas três categorias de doentes: emergente, urgente e eletivo7,10,11. Através de estudos longitudinais de coortes prospetivos, Sobolev e o grupo de epidemiologistas da University of British Columbia têm contribuído para a análise dos benchmarks institucionais em vigor no Canadá e Reino Unido, 26 e 16 semanas, respetivamente, manifestamente excessivos. Nos trabalhos mais recentes sobre doentes coronários, verificou‐se que os doentes classificados como eletivos apresentam uma menor taxa de risco, ou seja, menor risco de eventos por unidade de tempo (0,5% por semana nos doentes eletivos versus 0,9% por semana nos doentes urgentes) e, por conseguinte, são submetidos a intervenção cirúrgica após um maior tempo de espera. No entanto, se o tempo de espera for demasiado longo, o risco global pode aproximar‐se ou superar o risco dos doentes urgentes. Assim, o tempo máximo aceitável em lista de espera para doentes eletivos deverá ter em consideração a taxa de risco e o risco acumulado12–15. Além do risco em lista de espera, estes doentes, quando são submetidos a intervenção cirúrgica para além das seis ou 12 semanas recomendadas, representam um maior risco de mortalidade operatória13,14. Em 2014, a Sociedade Europeia de Cardiologia e a Associação Europeia de Cirurgia Cardio‐Torácica publicaram diretivas sobre a revascularização do miocárdio, surgindo, pela primeira vez, recomendações sobre a importância do timing e de tempos de espera mais reduzidos16.

Sabe‐se que a esperança média de vida de um doente com estenose aórtica com dispneia é inferior a dois anos, e que o elevado risco de morte súbita recomenda que a substituição valvular seja realizada num curto espaço de tempo1. Na doença valvular, a informação disponível é maioritariamente relativa à estenose aórtica grave. Um estudo prospetivo canadiano, que acompanhou 29 293 doentes, revelou que a patologia valvular, isolada ou combinada com cirurgia coronária, apresenta uma mortalidade em lista de espera de 0,65 e 0,98% respetivamente, valores superiores ao que foi observado para a cirurgia coronária isolada (0,40%)10. Outro grupo de trabalho canadiano estudou os mesmos grupos de patologia e, nas suas recomendações de acesso ao cateterismo e à cirurgia cardíaca, equiparou a prioridade da cirurgia da estenose valvular aórtica à da cirurgia coronária, propondo um tempo máximo de seis semanas11. Estudos recentes sobre estenose valvular aórtica grave sintomática demonstraram uma mortalidade em lista de espera de 3,7 e 8,0% ao fim de um e seis meses, respetivamente17. Verificaram também um aumento da mortalidade operatória em alguns subgrupos, nomeadamente doentes com estenose aórtica grave e sintomática que têm uma deterioração funcional importante no pré‐operatório (classe III/IV)18.

De um modo global, existe alguma informação relativa à doença isquémica e à estenose valvular aórtica, sendo mais escassa para outras patologias. É o caso, por exemplo, da insuficiência mitral ou da insuficiência aórtica, nas quais a apresentação clínica e a caracterização da gravidade da doença por ecocardiografia são os fatores mais importantes. Na patologia valvular, existe ampla evidência em como a intervenção em estadios precoces melhora o prognóstico a longo prazo e evita consequências como fibrilhação auricular, persistência de disfunção ventricular e hipertensão pulmonar19,20. Em Portugal, alguns dados recentes demonstraram a influência e debilidade do sistema de referenciação no aumento do tempo médio de espera para cirurgia, da taxa de reinternamentos e da mortalidade dos doentes aceites para cirurgia cardíaca21.

Esta revisão sumária da bibliografia permite entender que, num sistema considerado eficiente, o número de doentes colocados em lista de espera deve ser igual ao número de doentes submetidos a intervenção cirúrgica, o tempo de espera deve ser curto e ajustado ao risco dos doentes e deve permitir a alocação dos doentes e o uso dos recursos disponíveis da melhor forma. Os tempos de acesso para dois tipos de tratamento da mesma patologia (por exemplo, cirurgia e angioplastia coronárias) devem ser aproximados para não favorecer indevidamente o tratamento com menor lista de espera. Em Portugal, o limite atual de nove meses para doentes não prioritários é excessivo, uma vez considerados os riscos calculados pela literatura científica e tendo por base a prática corrente de outros países desenvolvidos. Assim, é passível de ser justificada uma descriminação positiva da patologia cardíaca para um limite de tempo de espera menor que o atual e a exemplo do consignado para outras patologias.

Âmbito das recomendações

O SNS tem um sistema integrado de gestão da lista de inscritos para cirurgia (SIGLIC), que regula a marcação das intervenções cirúrgicas com tempos máximos de resposta garantida (TMRG)22 e quatro graus de prioridade: emergente, urgente, prioritário ou eletivo. Este sistema contém soluções para quase todos os doentes propostos para cirurgia cardíaca. Porém, não diferencia a especificidade da área cardiovascular face a outras especialidades.

Na perspetiva do doente, o tempo total desde o início da doença com indicação cirúrgica é o mais importante. Contudo, apenas uma fração dos doentes tem indicação operatória atual, podendo existir terapêuticas alternativas e a necessidade prévia de estudos. Assim, a metodologia adotada contempla três etapas que podem estar sujeitas a espera, nomeadamente o acesso à consulta de especialidade, o diagnóstico e o tratamento.

É ainda necessário ter em consideração que as recomendações clínicas aqui representadas são transversais a todos os doentes, independentemente do sistema de saúde e do prestador de cuidados que o acolhe. Uma vez definidos os critérios de prioridade, os clínicos poderão aplicá‐los em qualquer situação, devendo, no entanto, ter em consideração a heterogeneidade dos doentes, por vezes com comorbilidades complexas ou com patologia necessitando de maior prioridade de tratamento. Deve também ser sempre considerada a vontade do doente, que poderá querer adiar o procedimento, depois de ter sido devidamente informado e sem constrangimentos excessivos.

Recomendações da Sociedade Portuguesa de Cirurgia Cardio‐Torácica e Vascular e da Sociedade Portuguesa de CardiologiaTempos de espera para doentes potencialmente candidatos a tratamento invasivo cirúrgico ou percutâneo

A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) recomenda que o tempo de espera contabilizado seja aquele que, visto numa perspectiva do doente, corresponda ao período total estabelecido desde o primeiro contacto médico até à implementação do tratamento indicado. Este tempo do «percurso total do doente» corresponde à soma do tempo de referenciação, tempo de diagnóstico e tempo de espera para cirurgia23.

Tempo de referenciação

Por definição, entende‐se o tempo de referenciação como o período decorrido desde a primeira consulta até à consulta de especialidade. A portaria n.° 95/2013, de quatro de março, define os tempos máximos para obtenção de consulta de especialidade com vários níveis de prioridade, variando de 30‐150 dias. De facto, estes tempos são considerados desajustados no que diz respeito à patologia cardíaca grave.

Na Tabela 1 encontram‐se as recomendações propostas para o limite máximo de tempo de referenciação em doentes potencialmente candidatos a tratamento invasivo.

Tabela 1.

Limite máximo de tempo de referenciação para consulta de especialidade

Nível de prioridade  Condições clínicas  Tempo máximo recomendado 
Doentes urgentes ou emergentes  Síndrome coronária aguda, insuficiência cardíaca descompensada  Imediato e até 24 horas, com referenciação direta por serviço de urgência 
Doentes prioritários  Cardiopatia isquémica, estenose aórtica, doentes com sintomatologia avançada oriunda de quaisquer patologias – classe CCS ou NYHA III‐IV ou equivalente  Duas semanas 
Doentes eletivos  Outras patologias com potencial indicação cirúrgica  Trinta dias 
Tempo de diagnóstico

O tempo de diagnóstico define‐se como o período decorrido desde a primeira consulta de especialidade até ao diagnóstico completo e aceitação para cirurgia. Neste está incluída a realização dos principais exames complementares necessários à decisão terapêutica e à cirurgia (ecocardiografia, TAC, RMN, cintigrafia, cateterismo e outros), bem como os necessários à caracterização das comorbilidades e dos riscos do doente. Embora só uma parte dos doentes avaliados na cardiologia tenham indicação cirúrgica, a decisão estratégica de cirurgia, de intervenção percutânea ou de terapêutica médica é tomada neste período. A primeira consulta de especialidade é considerada para o doente recém‐chegado. No entanto, doentes com patologia cardíaca conhecida podem encontrar‐se meses ou anos apenas em seguimento. Apenas perante uma determinada evolução, tais como um agravamento sintomático, um novo resultado em exame complementar ou outro evento, poderá sugerir a indicação para um eventual tratamento invasivo. Nesse caso, deverá ser o clínico ou o serviço de cardiologia a assinalar o início da indicação para tal. Após o diagnóstico completo, entra‐se na fase de aceitação pela cirurgia, que resultará de uma decisão tomada em conjunto pelo médico cardiologista e pelo cirurgião. Se para a aceitação pela cirurgia for necessária uma consulta de cirurgia ou a marcação de reunião médico‐cirúrgica, os procedimentos dentro deste tempo de diagnóstico devem ter isso em consideração e o serviço de cirurgia deverá responder atempadamente. No caso de aceitação para cirurgia define‐se o grau de prioridade do doente, ficando registada a decisão médico‐cirúrgica e a entrada do doente em lista de espera consoante a prioridade atribuída. Atualmente, sugere‐se que, para os doentes eletivos, a cirurgia dê resposta até duas semanas depois da apresentação do caso pela cardiologia e, em casos urgentes, dois a quatro dias.

Na Tabela 2 encontram‐se referidas as recomendações da SPCCTV e da SPC para o limite máximo de tempo de diagnóstico.

Tabela 2.

Limite máximo de tempo de diagnóstico

Nível de prioridade  Condições clínicas  Tempo máximo recomendado 
Doentes urgentes ou emergentes  Síndrome coronária aguda, insuficiência cardíaca descompensada  Imediato e até 24 horas 
Doentes prioritários  Cardiopatia isquémica, estenose aórtica, doentes com sintomatologia avançada oriunda de quaisquer patologias – classe CCS ou NYHA III‐IV ou equivalente  Duas semanas 
Doentes eletivos  Outras patologias com potencial indicação cirúrgica  Seis semanas 

Nota: inclui o tempo necessário para a consulta multidisciplinar e a decisão médico‐cirúrgica, que não deverá exceder as duas semanas nos doentes eletivos.

Tempo em lista de espera para cirurgia cardíaca de doentes aceites para cirurgia

O tempo em lista de espera para cirurgia é o período que decorre entre a data de aceitação para cirurgia e a intervenção cirúrgica propriamente dita. A aceitação implica uma inscrição imediata na lista de espera, que é comunicada ao médico referenciador e ao doente. Se o cirurgião sentir necessidade de realizar outros exames complementares após a aceitação do doente, estes decorrem e são contabilizados durante o tempo de espera para cirurgia.

A prioridade que se atribui por «classe funcional ou equivalente» é clínica e dependente de avaliação médica. Esta pode basear‐se nos sintomas do doente, em resultados de provas funcionais (ex: cintigrafia de perfusão miocárdica), em características de lesões observadas no ecocardiograma ou outros exames.

As recomendações para o limite máximo de TECC em doentes aceites para cirurgia encontram‐se descritas na Tabela 3 para a doença isquémica e estenose aórtica grave, e na Tabela 4 para as outras patologias.

Tabela 3.

Limite máximo de tempo de espera para cirurgia cardíaca em casos de doença isquémica ou estenose aórtica grave

Nível de prioridade  Condições clínicas  Tempo máximo recomendado 
Doentes muito prioritários  Sintomatologia grave (classe CCS ou NYHA III‐IV ou equivalente) ou com anatomia coronária de alto risco (estenose significativa do tronco comum ou equivalente), doença de três vasos com estenose significativa proximal da descendente anterior ou disfunção ventricular  Duas semanas 
Doentes prioritários  Sintomatologia ligeira a moderada (classe CCS ou NYHA I‐II ou equivalente) com doença isquémica ou estenose aórtica grave  Seis semanas 
Tabela 4.

Limite máximo de tempo de espera para cirurgia cardíaca para outras patologias com potencial indicação cirúrgica

Nível de prioridade  Condições clínicas  Tempo máximo recomendado 
Doentes muito prioritários  Sintomatologia grave (classe NYHA IV ou equivalente)  Duas semanas 
Doentes prioritários  Doença estrutural cardíaca sintomática (classe III NYHA ou equivalente), disfunção ventricular ou hipertensão pulmonar significativa  Seis semanas 
Doentes eletivos  Sintomatologia ligeira ou ausente (classe NYHA I‐II ou equivalente)  Doze semanas 

Relativamente à síndrome coronária aguda, os tempos de espera para cirurgia nesta patologia constituem um tema controverso, dada a ausência de evidência baseada em ensaios clínicos aleatorizados. Só uma parte (10%) dos doentes com esta patologia é submetida a intervenção cirúrgica no mesmo internamento23. A variabilidade da apresentação da anatomia coronária, da persistência ou recorrência de isquémia, do estado hemodinâmico e da função ventricular esquerda, do risco trombótico versus hemorrágico, da terapêutica antiagregante e do risco do doente, deixam normalmente a decisão do grau de prioridade ao critério médico‐cirúrgico24. A recomendação exposta neste documento de consenso vem no sentido de que estes doentes sejam considerados de forma igual aos graus de prioridade definidos para a doença isquémica e estenose aórtica grave.

Monitorização e rastreabilidade

O SIGLIC apresenta mecanismos suficientes de informação ao doente e aos médicos, assim como de compensação e de regulamentação. Todavia, a realidade tem demonstrado que, na prática, o seu funcionamento não é perfeito ao nível da cardiologia e da cirurgia cardíaca. Mesmo podendo considerar‐se, de forma concetual, como um sistema capaz, o SIGLIC tem apresentado falhas no seu funcionamento, carecendo de:

  • a)

    Mais transparência e visibilidade;

  • b)

    Uma melhor integração com as listas não cirúrgicas (consultas e exames de diagnóstico);

  • c)

    Audição das práticas dos seus utilizadores;

  • d)

    Sistemas de comunicação com os doentes e os seus médicos;

  • e)

    Avaliação das consequências da sua utilização (mortalidade em lista de espera, alteração do grau de prioridade, reinternamento e outros).

A verdade é que a informação disponibilizada é reduzida e tem contribuído negativamente para o reconhecimento da escassez de recursos disponíveis para satisfazer as necessidades dos doentes, em particular na cirurgia cardíaca. Em virtude das limitações acima expostas, propõe‐se implementar a monitorização do tempo de espera até à cirurgia ou intervenção e dos eventos adversos que ocorrem neste período. Esta rastreabilidade apresenta como objetivo reunir, prospetivamente, dados, cuja análise permitirá conhecer o tempo real de espera e as suas verdadeiras consequências. De forma ideal, a colheita retrospetiva dos tempos de acesso à consulta de especialidade e o tempo para obtenção de diagnóstico deveriam ser obtidos através desse registo, pois permitiria conhecer o percurso total do doente, tal como é aconselhado pela OCDE.

O registo dos resultados das decisões médico‐cirúrgicas e a sua monitorização pelo serviço de cardiologia referenciador, supervisionada por um organismo independente (governamental ou não), devem ser obrigatórios. Este mecanismo poderá ajudar a fornecer informação relevante sobre as recusas e opções dos centros envolvidos, bem como sobre a rapidez de resposta. A divulgação e comparação dos resultados de cada centro permitirá a realização de escolhas mais informadas, podendo determinar melhor as causas e corrigir os respetivos desvios.

Notas finais

Na execução deste trabalho, a unanimidade e o consenso foram frequentes, merecendo destacar alguns pontos. Em primeiro plano, o facto de a cirurgia cardíaca deter uma especificidade própria, não comparável às outras especialidades cirúrgicas. Com efeito, torna‐se importante a redução significativa dos seus tempos de espera máximos, em especial nos doentes eletivos, e a necessidade de se definirem as três etapas de cuidados. Não menos importante, ficou também claro o reconhecimento de que o sistema português de gestão de listas de espera é válido, mas que necessita de melhorias consideráveis no seu funcionamento, tendo sido, para tal, apresentada neste documento uma proposta de monitorização e rastreabilidade.

A falta de consenso respeitante a doentes isquémicos ou com estenose valvular aórtica grave, assintomáticos e com provas funcionais indicadoras de baixo risco, que pudessem ser considerados eletivos, não pode ser considerada como um revés, traduzindo apenas uma área de transição que necessita de mais evidência. Na verdade, é necessário ter também em consideração que não foram estudados exames funcionais ou outros que permitam, com segurança, inferir ou excluir o risco. Acresce ainda que uma parte destes doentes segue em acompanhamento médico durante largos períodos, sem indicação para cirurgia. Ainda assim, mantém‐se a sugestão de que estas recomendações possam ser revistas num futuro próximo, em função da evidência clínica e científica que for surgindo, nomeadamente através da análise dos dados de um registo nacional dos doentes inscritos para cirurgia/intervenção cardíaca a implementar.

Por fim, existem ainda dois conceitos importantes, que podem entrar em conflito num caso concreto de um doente, e, como tal, não podem deixar de ser referidos. O primeiro é o tempo total de percurso do doente, que corresponde à soma dos tempos nas várias etapas. O doente pode ter sido sujeito a uma etapa demasiado lenta e isso poderá repercutir‐se nas etapas seguintes. O outro conceito é o da responsabilidade dos agentes em cada etapa. Caso não sejam definidas as etapas e os seus tempos, existirá uma pressão considerável na etapa seguinte e um excesso de cirurgias urgentes. Na gestão de doentes, as barreiras não são intransponíveis e devem ser adaptadas.

Responsabilidades éticasProteção de pessoas e animais

Os autores declaram que para esta investigação não se realizaram experiências em seres humanos e/ou animais.

Confidencialidade dos dados

Os autores declaram que não aparecem dados de pacientes neste artigo.

Direito à privacidade e consentimento escrito

Os autores declaram que não aparecem dados de pacientes neste artigo.

Conflito de interesses

Os autores declaram não haver conflito de interesses.

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