O apêndice auricular esquerdo (AAE) é o espaço responsável pela formação da vasta maioria dos trombos associados à fibrilhação auricular não valvular1. Este fenómeno trombogénico não depende exclusivamente da ausência da contractilidade auricular, sendo modulado por múltiplos outros fatores locais e sistémicos, mas raramente ocorre no contexto de ritmo sinusal. Podemos discordar ou considerar limitadas as actuais estratégias de encerramento, mas é fácil aceitar do ponto de vista teórico que o encerramento deste espaço tem o potencial de reduzir de forma significativa o risco embólico associado à fibrilhação auricular. Por esta razão, o encerramento do AAE será seguramente uma estratégia para o futuro. Iremos assistir a uma evolução dos métodos/vias de abordagem para otimizar a segurança e a eficácia, mas esta estratégia irá perdurar.
A técnica percutânea atual tem o mérito de ter sido escrutinada precocemente por ensaios clínicos aleatorizados. O PROTECT AF2,3 foi o primeiro ensaio a demonstrar não-inferioridade comparativamente à hipocoagulação com varfarina em doentes com fibrilhação auricular não valvular. A redução de eventos embólicos foi comparável a outros estudos de não-inferioridade com novos hipocoagulantes orais (RE-LY4, ARISTOTLE5 e ROCKET AF6). Contudo, as complicações associadas ao momento de execução do procedimento invasivo levantaram dúvidas de segurança, num gesto que se pretende profilático, e levaram a que a Food and Drug Administration solicitasse um ensaio clínico adicional (PREVAIL7) e que a Sociedade Europeia de Cardiologia elaborasse uma recomendação de aplicação da técnica para doentes com contraindicação para hipocoagulação/elevado risco hemorrágico8. Os resultados preliminares do estudo PREVAIL7 foram recentemente divulgados. A taxa de sucesso da implantação do dispositivo Watchman foi de 95%, superior à taxa de 91% verificada no PROTECT AF2, apesar de terem sido incluídos centros sem experiência prévia neste procedimento. O objetivo composto de segurança aguda – ocorrência nos primeiros 7 d de morte, acidente vascular cerebral isquémico, embolização sistémica ou complicação relacionada com o procedimento/dispositivo com necessidade de intervenção cirúrgica ou endovascular – ocorreu em 6 de 269 doentes (2,2%). O limite superior do intervalo de confiança de 95% foi de 2,618%, inferior ao critério pré-especificado de 2,67%. Um segundo objetivo de segurança mais abrangente – incluindo perfuração cardíaca, derrame pericárdico com tamponamento, acidente vascular isquémico, embolização do dispositivo e outras complicações vasculares – ocorreu em 4,4% dos doentes, com importante decréscimo relativamente à taxa de 8,7% do PROTECT AF2,3. Derrame pericárdico com necessidade de pericardiocentese ocorreu em 1,5% dos doentes que receberam o dispositivo no estudo PREVAIL7versus 2,4% no PROTECT AF2,3. Não se verificaram mortes relacionadas com a intervenção em qualquer dos ensaios. A avaliação do objetivo composto primário de eficácia – acidente vascular cerebral, embolização sistémica, morte cardiovascular ou morte não explicada até aos 18 meses – foi limitada pelo seguimento ainda incompleto da maioria dos doentes incluídos. Num universo de 407 doentes, apenas 58 doentes do ramo da intervenção e 30 do grupo controlo completaram o seguimento de 18 meses. A taxa de ocorrência foi de 0,064 (6,4 eventos por cada 100 anos de seguimento) em ambos os ramos. Em análise conjunta pré-especificada, incluindo a população do estudo PROTECT AF2, o limite máximo do intervalo de confiança de 95% do risco relativo foi de 1,88, ultrapassando o limite máximo definido (< 1,75). Um segundo objetivo de eficácia mais restrito que incluiu acidente vascular isquémico ou embolização sistémica contabilizados após 7 d da aleatorização – eliminando o efeito agudo da intervenção – cumpriu o critério de não-inferioridade apesar de, tal como no objetivo de eficácia previamente mencionado, o seguimento de 18 meses não estar completo na maioria dos doentes. Trata-se, portanto, de um ensaio clínico que corresponde às exigências de segurança pré-especificadas pela Food and Drug Administration e, quanto aos critérios de eficácia, será adequado aguardar pela conclusão do período de seguimento previamente definido. O seu resultado será determinante para a aprovação do dispositivo e poderá ajudar a definir a população candidata com melhor perfil de risco/benefício. Independentemente dos resultados deste ensaio e da história deste dispositivo, parece-me evidente que o encerramento do AAE continuará a beneficiar de melhorias técnicas e será uma alternativa válida nos algoritmos de redução de risco embólico na fibrilhação auricular.
Muitos são os argumentos contrários à ideia que defendo. É frequentemente argumentado que o acidente vascular cerebral é uma doença sistémica e que não se resume a um fenómeno mecânico no apêndice auricular, o que é inteiramente verdade. Contudo, no grupo de doentes com fibrilhação auricular não valvular esta estrutura é o local de eleição para a trombogénese. A sua exclusão não será uma solução completa ou definitiva, mas terá o seu papel numa estratégia de redução de risco. Por outro lado, é dito que atualmente estão disponíveis excelentes hipocoagulantes que dispensam alternativas terapêuticas. Contudo, todos os hipocoagulantes disponíveis apresentam alguma taxa de abandono por intolerância e não poderão ser utilizados em doentes com elevado risco hemorrágico4–6. Sumariamente, não são a solução para todos os doentes. Os estudos PROTECT AF2 e PREVAIL7 incluíram apenas doentes que não apresentavam contraindicação para anticoagulação. Este é mais um ponto de criticismo pelo facto de esta técnica estar a ser implementada em muitos países apenas para doentes com elevado risco hemorrágico. Não poderia ser de outro modo, tratando-se de ensaios aleatorizados em que o grupo controlo teria de cumprir hipocoagulação com varfarina. Seria a única forma de comparar a estratégia invasiva com a terapia padrão e comprovar o conceito. O encerramento do AAE em doentes com contraindicação para a hipocoagulação foi analisado pelo estudo ASAP9, demonstrando um perfil de segurança sobreponível ao verificado nos ensaios prévios e um excelente perfil de eficácia com redução de 77% de ocorrência de acidente vascular cerebral isquémico relativamente ao esperado pelo score de risco CHADS2. Outros aspectos interessantes têm sido destacados da análise das populações do estudo PROTECT AF2,10 e do registo CAP10. Foi possível documentar uma melhoria da qualidade de vida11, do benefício económico12 e do perfil de risco/benefício clínico13 – net clinical benefit – precocemente vantajoso após sujeição ao procedimento invasivo. As populações dos ensaios mencionados serão seguidos até um período de cinco anos, permitindo colecionar um importante número de eventos e perceber o impacto desta estratégia a longo prazo.
A casuística apresentada neste número da revista é um bom exemplo de introdução responsável de uma técnica invasiva profiláctica14. Foram selecionados doentes com risco embólico significativo mas que não poderiam beneficiar de hipocoagulação oral por apresentarem elevado risco hemorrágico. O benefício ultrapassaria o potencial risco da técnica, mesmo tendo em consideração o efeito da curva de aprendizagem. Embora o universo de doentes seja significativamente menor relativamente aos estudos e registos de referência, é justo afirmar que o perfil de segurança verificado neste centro foi excelente face ao previamente conhecido. Em Portugal existem quatro centros com experiência consolidada no encerramento do AAE, tendo iniciado os seus programas antes da inclusão da técnica nas recomendações da Sociedade Europeia de Cardiologia. Todos anteciparam a tendência e dirigiram de forma conscienciosa os seus programas para doentes com elevado risco hemorrágico/contra-indicação para hipocoagulação oral. A atitude responsável, criteriosa e segura dos centros nacionais tem contribuído para um crescimento consistente da técnica, transmitindo confiança à restante comunidade médica e criando excelentes perspectivas para o futuro14.
Conflito de interessesO autor recebeu honorários das companhias Atritech / Boston Scientific (prelector e proctor) e St. Jude Medical (prelector).