A anticoagulação oral é uma terapêutica eficaz na prevenção de eventos tromboembólicos, em doentes com fibrilhação auricular (FA). A presente revisão pretendeu estimar a prevalência da terapêutica anticoagulante oral em doentes com FA em Portugal.
MétodosFoi realizada uma pesquisa nas bases de dados MEDLINE, Índex de Revistas Médicas Portuguesas e Catálogo Bibliográfico do Sistema Integrado de Bibliotecas da antiga Universidade Clássica de Lisboa (SIBUL). Estudos observacionais nacionais que reportavam a proporção de doentes anticoagulados com fibrilhação auricular foram incluídos. A estimativa combinada de prevalência de doentes com FA anticoagulados e o respetivo intervalo de confiança 95% (IC95%) foi determinada com recurso a meta‐análise.
ResultadosDos sete estudos incluídos, três estudos foram realizados em ambiente hospitalar e quatro foram realizados na comunidade em geral. Do total de 891 doentes com FA, a estimativa de prevalência de doentes anticoagulados foi de 40% (IC95% 32‐48%).
ConclusõesA prevalência de doentes com FA anticoagulados na população estudada é baixa. É necessário promover a mudança dos hábitos de prescrição de anticoagulantes em doentes com FA em Portugal, em concordância com as recomendações internacionais.
Oral anticoagulation (OAC) is an effective treatment in the prevention of thromboembolic events in patients with atrial fibrillation (AF). The aim of this review was to estimate the prevalence of OAC therapy in patients with AF in Portugal.
MethodsMEDLINE, the Index of Portuguese Medical Journals and SIBUL (the Bibliographic Catalog of the Integrated Library System of the University of Lisbon) were searched for Portuguese observational studies reporting the proportion of anticoagulated patients with AF. The pooled estimated prevalence of anticoagulated patients and respective 95% confidence interval (CI) were determined by means of a meta‐analysis.
ResultsSeven studies were included for analysis, of which four were conducted in a hospital environment and three in the general community. These studies enrolled a total of 891 patients with AF. The pooled estimated prevalence of anticoagulated patients was 40% (95% CI: 32–48%).
ConclusionsThe prevalence of OAC in Portuguese AF patients is low. There is a need to promote change in OAC prescribing habits for AF patients in Portugal, in accordance with international guidelines.
A fibrilhação auricular (FA) é a arritmia mais prevalente na prática clínica, com uma prevalência estimada para a população portuguesa com mais de 40 anos de 2,5% (estudo FAMA), a qual aumenta com a idade, atingindo 6,6% na 8.a década de vida e 10,4% em indivíduos com 80 ou mais anos de idade1.
No estudo FAMA, cerca de um terço dos doentes com FA desconhecia o diagnóstico. Por se tratar de uma patologia que pode permanecer silenciosa até ao aparecimento de uma complicação2,3, o seu rastreio clínico está indicado em doentes a partir dos 65 anos4. As principais complicações da FA são os eventos tromboembólicos, nomeadamente o acidente vascular cerebral (AVC). Para a prevenção destes eventos, está recomendada a terapêutica com anticoagulantes orais em doentes com fatores de risco tromboembólico4.
No presente estudo pretendemos estimar a prevalência da terapêutica com anticoagulantes orais em doentes portugueses com FA, através de uma revisão sistemática e meta‐análise de estudos epidemiológicos.
MétodosCritérios de elegibilidadeForam considerados elegíveis estudos observacionais conduzidos em Portugal Continental e/ou arquipélagos que incluíssem doentes com FA ou flutter auricular (independentemente do tipo: paroxística, persistente ou permanente) e que reportassem a proporção dos doentes que estavam anticoagulados. Estudos que incidiram sob populações específicas ou doentes referenciados para intervenções específicas (p. ex. terapêutica ablativa da FA) foram excluídos, porque a inclusão destes estudos introduziria um viés ao não ser representativo da população geral de doentes com FA.
Bases de dados e pesquisaForam pesquisas as bases de dados eletrónicas MEDLINE, Índex de Revistas Médicas Portuguesas e Catálogo Bibliográfico do Sistema Integrado de Bibliotecas da antiga Universidade Clássica de Lisboa (SIBUL), entre 2005 e outubro de 2013. A pesquisa incluiu ainda a revisão da listagem de referências dos estudos incluídos e das revisões da literatura encontradas. Não foram incluídos resumos de posters ou comunicações orais apresentados em congressos.
Seleção dos estudos e extração dos dadosOs estudos potencialmente elegíveis foram selecionados de forma independente por dois autores, com base nos critérios de inclusão e exclusão referidos. Os dados foram extraídos de forma independente para uma folha sistemática de recolha de dados que incluía as características demográficas dos estudos, os determinantes tromboembólicos das populações e a proporção de doentes anticoagulados.
Os estudos incluídos foram avaliados de forma qualitativa, utilizando critérios relacionados com amostragem/representatividade, avaliação e análise de resultados5. Nenhum estudo foi excluído com base na avaliação do risco de viés dos estudos.
As discordâncias foram resolvidas por consenso entre os autores.
Síntese dos dadosFoi utilizado o software Stata®Statistical Software Package, Versão 11.0 (StataCorp LP, College Station, Texas, EUA) para agregar os resultados através de meta‐análise e determinar a estimativa global de prevalência de doentes com FA anticoagulados. Nos estudos que estratificavam o risco tromboembólico da população, o denominador da prevalência foi a proporção de doentes com indicação para anticoagulação. Os resultados dos estudos individuais e agregados foram expressos em proporções (prevalência) e intervalos de confiança de 95% (IC95%). Para a agregação dos dados dos estudos foi utilizado o método de ponderação pelo inverso da variância dos resultados de cada estudo. Dada a expectativa de existência de heterogeneidade significativa entre os estudos foi utilizado por defeito o modelo de efeitos aleatórios de DerSimonian e Laird6.
A heterogeneidade estatística foi avaliada e quantificada através de teste I2. O I2 é uma medida da percentagem da variação global entre os resultados dos estudos que é atribuível à heterogeneidade7. Um teste I2 superior ou igual a 50% determina heterogeneidade significativa8.
As estimativas da prevalência foram calculadas separadamente em função do local/contexto do estudo epidemiológico: comunidade e hospitalar.
ResultadosForam incluídos para análise sete estudos1,9–14. A Figura Online 1 mostra o fluxograma da seleção dos mesmos. Três estudos eram transversais1,9,13 e quatro apresentavam um desenho longitudinal (três coortes retrospetivos10–12 e um estudo coorte prospetivo15). Três estudos foram realizados na comunidade1,9,13 e quatro a nível hospitalar10–12,14. Os sete estudos incluíram um total de 891 doentes com FA considerados potencialmente elegíveis para serem medicados com anticoagulação oral. A amostra de indivíduos com FA dos estudos variou entre 21‐261 doentes, na sua grande maioria idosos, uma vez que a idade média variou entre 77‐85,5 anos (o que classifica de uma forma global como uma população com risco tromboembólico elevado). Três dos estudos incluíram doentes com doença valvular significativa ou prótese valvular mecânica: um deles incluiu 29% de doentes com patologia valvular pelo menos moderada ou prótese valvular12; Ascenção incluiu 20% de doentes com estenose mitral9; Dores incluiu 6% de doentes com FA de etiologia valvular11. As ferramentas utilizadas para a estratificação do risco tromboembólico foram o CHADS2, CHA2DS2‐VASc e modelo proposto pelas guidelines conjuntas do American College of Cardiology/America Heart Association/ European Society of Cardiology 2006 (Tabela 1). Dois estudos não reportaram o uso de qualquer ferramenta1,10.
Principais características dos estudos incluídos
Estudo | Desenho do estudo Local | Período do estudo | Amostra (n) | Idade média/mediana (anos) | Indicação para anticoagulação |
Ascenção9 | Estudo transversal Comunidade (Rede de Médicos Sentinela) | Junho 2003 ‐ novembro 2003 | 243 | 84%>65 anos | CHADS2 ≥2, estenose mitral ou trombo intracavitário |
Reis et al.10 | Estudo retrospetivo Hospital (HFF) | Janeiro 1996 ‐ dezembro 2004 (utilizados dados de 2004) | 108 | 78,6 | ‐ |
Bonhorst et al.1 | Estudo transversal Comunidade | ‐ | 119 (diagnóstico prévio de FA)/69% FA total | 77 | ‐ |
Dores et al.11 | Estudo retrospetivo hospitalar (HSFX) | Outubro 2006 ‐ outubro 2007 | 126 | 77 | Doente com risco moderado ou elevado de acordo com Guidelines ACC/AHA/ESC 2006 |
Jorge et al.12 | Estudo retrospetivo hospitalar (HUC) | Dezembro 2005 ‐ junho 2007 | 161 | 80,9 | CHADS2 ≥2 |
Sá et al.13 | Estudo transversal Comunidade (USFSaúde em Família – Maia) | 2011 | 31 | 85,5 | CHA2DS2‐VASc ≥2 |
Pereira‐Da‐Silva et al.14 | Estudo prospetivo Hospitalar (CHLC) | Abril 2011 ‐ outubro 2011 | 103 | 79,6 | CHA2DS2‐VASc ≥2 |
ACC/AHA/ESC: American College of Cardiology/America Heart Association/ European Society of Cardiology; CHLC: Centro Hospitalar Lisboa Central; FA: fibrilhação auricular; HFF: Hospital Prof. Dr. Fenando Fonseca; HSFX: Hospital São Francisco Xavier; HUC: Hospitais da Universidade de Coimbra; USF: Unidade de Saúde Familiar.
As principais características dos estudos incluídos estão mencionadas na Tabela 1. A qualidade metodológica dos estudos incluídos foi razoável. O principal fator de risco de viés metodológico foi a falta de representatividade da amostra de alguns estudos, pela sua avaliação exclusiva em ambiente hospitalar ou pela análise de subgrupos de doentes. A avaliação qualitativa está presente na Figura Online 2.
De acordo com os resultados da meta‐análise destes sete estudos, a prevalência da terapêutica anticoagulante oral em doentes portugueses com FA é de 40% (IC=95%: 32‐48%), sendo a prevalência superior nos estudos realizados a nível da comunidade (45%; IC95%: 37‐52%) do que a nível hospitalar (36%; IC95%: 24‐48%) Esta diferença não teve, no entanto, significado estatístico (p=0,20). Os resultados estão presentes na Figura 1.
Para avaliar o impacto da inclusão de estudos com diferentes ferramentas de estratificação do risco tromboembólico (por exemplo (CHADS2, CHA2DS2‐VASc) avaliámos os resultados dos diferentes subgrupos. As diferenças entre as estimativas obtidas pelos diferentes métodos não foram significativas (p=0,31). A prevalência de doentes anticoagulados foi superior (44% [37‐51%] versus 30% [15‐45%]) nos estudos que reportaram o uso destas ferramentas comparativamente com aqueles que não as utilizaram, sem contudo atingir significado estatístico (p=0,10).
DiscussãoA FA é tema relevante em termos de saúde pública, particularmente em Portugal, dado que constituiu um fator de risco para a ocorrência de AVC, uma importante causa de morbilidade e mortalidade15. O risco de AVC é cerca de cinco vezes superior em doentes com FA, aumentando com a idade16. Mais de 15% dos AVC devem‐se à manifestação da FA e são, em média, mais graves do que aqueles que não estão associados à FA17,18. Os AVC atribuíveis à FA estão associados a uma taxa de mortalidade de 25% a 30 dias e de 50% a um ano17. Nos doentes com AVC, pelo mau prognóstico que condiciona, a FA está associada a um aumento do tempo de internamento e consumo de recursos de saúde19,20.
Existe evidência sólida de que a anticoagulação oral reduz o risco dos eventos tromboembólicos. Os antagonistas da vitamina K estão associados a uma redução significativa de 64% do risco relativo de AVC21 e os novos anticoagulantes orais (inibidores diretos da trombina e Xa) mostraram ser pelo menos tão eficazes quanto os antagonistas da vitamina K.
A baixa prevalência de doentes anticoagulados encontrada nesta revisão enfatiza a necessidade de mudança dos hábitos de prescrição. Esta proporção aproxima‐se daquela encontrada no estudo italiano ISAF, em que a prevalência de anticoagulação oral foi de 46%22. Contudo, outros dados da mesma área geográfica, baseados em unidades cardiológicas, mostram um aumento significativo na proporção de doentes anticoagulados com indicação para esta terapêutica23. No entanto, outros estudos recentes mostram uma perspetiva mais otimista. O registo internacional prospetivo GARFIELD reporta uma prevalência de 67% de anticoagulação oral nos doentes com FA e CHADS‐VASc ≥224. O registo alemão ATRIUM, baseado em dados dos cuidados de saúde primários, encontrou uma prevalência de anticoagulação de 75% de doentes com FA e risco tromboembólico elevado25, e o registo PREFER in AF, baseado em dados de sete países europeus, mostrou uma elevada utilização de anticoagulantes nesta população: 85%26.
Tanto em contexto de ensaios clínicos como em mundo real, diversos são os motivos invocados pelos clínicos para não anticoagular doentes com FA24,27.
Num estudo hospitalar, Dores avaliou em 19% a proporção de doentes não‐anticoagulados com o diagnóstico de FA11. Os principais motivos invocados para esta atitude foram o risco/discrasia hemorrágica, história de alcoolismo, doença renal e impossibilidade do controlo do INR11.
Pereira‐da‐Silva avaliou os preditores de não prescrição de anticoagulantes orais em 103 doentes candidatos e os motivos subjacentes14. Após análise multivariável, o estado acamado/síndrome demencial e o elevado número de fatores de risco hemorrágicos foram preditores de não prescrição. Dos doentes não anticoagulados (68 doentes), os motivos mais prevalentes para a não prescrição da terapêutica anticoagulantes foram: risco hemorrágico elevado (56%), considerar ser pequeno o benefício (22%), incapacidade de seguir o esquema terapêutico (10%) e dificuldade na monitorização do INR (7%)14.
Em relação aos anticoagulantes orais da nova geração, os motivos da sua não‐prescrição baseiam‐se no custo elevado, no facto de alguns destes fármacos não serem comparticipados, no pequeno benefício esperado e no risco hemorrágico14.
Apesar do seu custo, os novos anticoagulantes, para além de se apresentarem como opções custo‐efectivas28,29, permitem ultrapassar algumas barreiras à prescrição, nomeadamente pela ausência de monitorização regular do INR, por terem potencialmente menos interações medicamentosas e alimentares.
As atuais normas de orientação da Sociedade Europeia de Cardiologia recomendam uma estratificação do risco tromboembólico utlizando o CHA2DS2‐VASc para determinar quem não beneficia de anticoagulação oral (CHA2DS2‐VASc=0)4,30. Alguns estudos desta revisão utilizaram a ferramenta previamente recomendada para estratificação do risco tromboembólico, o CHADS231, ou o algoritmo proposto pelas guidelines conjuntas do American College of Cardiology/America Heart Association/ European Society of Cardiology 200632. Dado que estas ferramentas subestimam/excluem uma fração de doentes que poderia beneficiar de anticoagulação, a prevalência de anticoagulação nos doentes com indicação poderia ser ainda menor de acordo com o CHA2DS2‐VASc.
Para além dos pontos já mencionados, dois estudos incluíram uma proporção considerável de doentes com patologia valvular significativa ou próteses valvulares9,12. A probabilidade de estes doentes não estarem anticoagulados é menor do que a de um doente com FA não‐valvular, no entanto, em ambos os estudos a prevalência da anticoagulação oral é baixa.
A elevada heterogeneidade encontrada não é rara em estudos de prevalência, para ela contribuindo múltiplos fatores inerentes aos doentes, instituições e prescritores, que diferem entre os vários estudos.
A diferença de heterogeneidade entre os estudos realizados na comunidade em comparação com os realizados em meio hospitalar pode ser devida a diversos fatores. O mais evidente é a inclusão do estudo de Reis10 (o mais antigo dos estudos hospitalares, 2006) na meta‐análise. Este estudo caracterizou a terapêutica anticoagulante nos internamentos do ano de 2004. No total, ocorreram 122 internamentos por FA em 2004. Destes 122 doentes, 108 tiveram indicação para fazer anticoagulação a longo prazo. Dos doentes com indicação apenas 22,2% tiveram alta anticoagulados10.
A reduzida taxa de anticoagulação observada nos estudos hospitalares, particularmente no estudo referido previamente, pode ter várias explicações. A idade e a presença de comorbilidades podem contribuir para uma perceção do risco hemorrágico aumentado. A coexistência de ambas razões tem sido referida como um entrave à prescrição de anticoagulantes por parte dos médicos, por receio de hemorragias graves ou por acreditarem num risco embólico menor comparativamente com o risco hemorrágico33. Adicionalmente, alguns estudos foram realizados numa época prévia à publicação do estudo Birmingham Atrial Fibrillation Treatment of the Aged Study (BAFTA), que mostrou superioridade da varfarina (INR alvo 2,0‐3,0) em relação ao ácido acetilsalicílico na prevenção de eventos cardiovasculares em doentes com 75 anos ou mais, sem diferenças significativas no risco hemorrágico34.
LimitaçõesAs conclusões desta revisão devem ser avaliadas de acordo com as limitações inerentes à metodologia usada (meta‐análise utilizando dados globais dos estudo e não dados dos doentes individuais). A inclusão de populações com diferentes amostras, idades, locais de avaliação (comunidade versus hospital) e metodologia utilizada para adequar a terapêutica ao risco tromboembólico (CHADS2, CHA2DS2‐VASc) deve ser considerada (heterogeneidade clínica), para além da heterogeneidade estatística já esperada.
ConclusõesA prevalência de anticoagulação oral em doentes portugueses com FA é de cerca de 40%. Apesar da evidência e recomendações existentes em relação ao benefício desta terapêutica na redução do risco tromboembólico nos doentes com FA, uma proporção muito significativa da população em risco não está medicada. A anticoagulação oral nestes doentes pode ser entendida como um índice de qualidade dos cuidados de saúde que urge alterar.
Os autores declaram não haver conflito de interesses.