Num artigo publicado nesta edição da Revista Portuguesa de Cardiologia1, sob o título «Serão preço e custo coincidentes na Cirurgia Cardíaca do idoso?», o grupo cirúrgico de Santa Marta analisa os custos relacionados com a cirurgia de revascularização coronária, valvular e coronária associada a valvular em doentes com idade igual ou superior a 65 anos, com o objetivo os pôr em perspetiva com o pagamento efetuado pela tutela por cada um desses procedimentos cirúrgicos (preço), possivelmente com a pretensão, não assumida, de os generalizar a outros tipos de intervenções.
A primeira questão que se coloca aqui é: de que servem tais estudos? Em boa verdade, para nada na grande maioria dos serviços hospitalares, excetuando os pouquíssimos centros de responsabilidade (CRI), onde o orçamento e respetivos contratos‐programa anuais deveriam, legalmente, ter uma consequência. Deveriam, mas não têm, porque a quase totalidade das administrações hospitalares faz deles tábua‐rasa, tornando‐os uma inutilidade. Nos CRI, tal como em todos os outros serviços, tanto quanto é do meu conhecimento, a maior parte dos hospitais (o meu também) faz o exercício de elaborar, com cada um dos serviços, um orçamento que depois não sai do papel. Uma futilidade absoluta. Mas aqui voltarei mais adiante.
Penso que a maior parte dos nossos colegas, provavelmente mesmo alguns diretores de serviço, ignora os mecanismos de cálculo orçamental, pelo que me deterei nalguns dos seus detalhes. No caso vertente, os colegas de Santa Marta, contando com a colaboração de um reputado economista da saúde, deram‐se ao trabalho de contabilizar, uma a uma, cada parcela de despesa do ato cirúrgico específico, servindo‐se de várias ferramentas contabilísticas, umas diretas (microcusteio), quando disponíveis, e outras indiretas (valor médio), chegando à conclusão de que o somatório, isto é, o custo final, ficava muito aquém do que lhes era «pago» (pagar é, aqui, evidentemente, um eufemismo, tendo em conta o caráter virtual do contrato a que acima me referi). De facto, nas contas dos autores, menos de metade na maior parte dos doentes.
Infelizmente, os dados fornecidos pelo artigo em análise foram colhidos há quatro a cinco anos e estão significativamente desatualizados. O que não retira o mérito ao trabalho efetuado e não belisca, minimamente, o seu interesse intrínseco. Independentemente de eu discordar de alguns aspetos da metodologia seguida nos cálculos efetuados, este meu comentário não incidirá na qualidade do documento, que reputo de boa. E, naturalmente, os valores encontrados não são, por razões de grandes diferenças organizativas e administrativas, extensíveis a outros serviços congéneres.
Esta questão do preço (valor pago) tem muito que se lhe diga. Até há meia dúzia de anos, este pagamento, contabilisticamente denominado receita, era então efetuado multiplicando o número de atos específicos pelo valor respetivo da tabela de grupo de diagnóstico homogéneo (GDH). Este cálculo tanto servia para o orçamento dos serviços, como para o dos hospitais, anualmente negociado com a tutela. Os GDH entraram em cena há algumas décadas e representavam, então, o valor médio do custo de um determinado ato, calculado entre as instituições de referência para o efeito escolhidas.
Naturalmente, isso pressupunha uma atualização constante, na medida em que a complexidade dos atos se fosse alterando, para mais ou para menos, e não foi. No nosso país, os valores dos GDH foram sendo incrementados com uma periodicidade mais ou menos anual, de acordo com um fator relacionado com a inflação geral, como se esta tivesse algo que ver com atos médicos. Só para que se entenda, foi assim que uma revascularização percutânea tripla, num doente que é tratado numa hora, num laboratório de hemodinâmica, por três ou quatro profissionais, e na maior parte das vezes entra e sai no mesmo dia, viesse a ter quase o mesmo valor que o do doente que é tratado cirurgicamente, durante quatro horas, por uma dezena de profissionais, internado 24 ou 48 horas numa UCI, e com alta hospitalar oito dias depois!
Mas isso é outro assunto e é passado. Porque, há alguns anos, os valores atribuídos aos atos foram drasticamente diminuídos (praticamente a metade) e os cálculos são agora mais complexos, porque passaram a incluir o índice de case‐mix (ICM). Este fator de multiplicação entra em conta com a complexidade percetível do ato. Isto é, partindo do índice médio padrão de 1 (um), uma instituição que faz predominantemente atos mais complexos terá um ICM superior a 1,0, enquanto outra que tem uma média de casos mais simples terá um ICM inferior a 1,0. E os valores respetivos, multiplicados pelos valores de tabela, servem para incrementar ou diminuir o preço de cada um desses atos.
Evidentemente, do mesmo modo que o ICM varia de instituição para instituição, também deverá variar entre os serviços de uma mesma instituição. Isto é, serviços com atos mais complexos terão índices superiores e vice‐versa. Ora, no caso de Santa Marta, a administração aparentemente utilizava (desconheço se utiliza ainda) para a elaboração do orçamento da cirurgia cardíaca o ICM da instituição (2,06 em 2011 e 2,17 em 2012), como se os atos ali praticados, neste caso a cirurgia coronária, tivessem a mesma complexidade de todos os outros atos efetuados naquele hospital, por exemplo uma apendicectomia ou o tratamento de uma pneumonia simples. Os autores deste artigo calcularam que o ICM da sua atividade deveria ser cerca de três vezes superior (6,48 em 2011 e 6,26 em 2012) e, nesse caso, as receitas já cobririam confortavelmente as despesas.
Sei muito bem a que se referem, também já passei por essa experiência com uma administração do meu hospital; felizmente, consegui que algum senso, ainda que não completo, tivesse prevalecido.
A determinação do índice é complexa e está muito dependente da codificação dos atos feita em cada instituição a partir dos dados fornecidos por cada serviço na «folha de alta», o que torna este trabalho, frequentemente atribuído aos médicos mais novos, numa tarefa de grande responsabilidade a que cada diretor deveria dar a sua maior atenção. Mas este importante instrumento não é desprovido de insuficiências: um doente, à partida «simples», que se complique, naturalmente ou por descuido/erro, passa a ter um peso maior no índice. Isto é, o índice tem uma relação muito periclitante com a qualidade.
Dito isto, volto à minha interrogação inicial: para quê tal esforço? Os «bons de coração» acenarão imediatamente com o bem da instituição. Não rejeito esta assunção, mas o mundo real, atual, não se gere por estes sentimentos. Os CRI pressupunham uma redistribuição de parte dos seus desvios positivos, a existirem, pelos seus profissionais, como prémios de desempenho, e isso foi feito durante algum tempo nos poucos que existiam (e nalgumas USF) até há cerca de cinco anos, tendo sido então interrompida, pelas razões conhecidas de retração dos OGE, e nunca restabelecida apesar de promessas em contrário. Na nossa experiência, este mecanismo de incentivação da produtividade mostrou‐se alta e reconhecidamente eficaz, e deveria ser generalizado e não restringido.
Finalmente, o artigo de Coelho et al. tem ainda a virtude de salientar a importância do papel do diretor de serviço na regulação da atividade, de modo a controlar, simultaneamente, a qualidade e os respetivos fatores de custo, uma equação dificílima de gerir. E, para tal, dar‐se ao trabalho de adquirir conhecimentos de administração que as nossas faculdades de medicina geralmente não dão. Infelizmente, nem todos os diretores de serviço se assumem neste aspeto.
Tal como disse Abel Salazar: «quem só sabe de medicina, nem de medicina sabe»!
Conflito de interessesO autor declara não haver conflito de interesses.