O oncocitoma renal representa 5-7% das neoplasias primárias do rim, é diagnosticado em doentes assintomáticos e caracteriza-se por um comportamento benigno, sem invasão dos tecidos adjacentes ou metastização. O seu diagnóstico no decurso da gravidez é raro, havendo poucos casos descritos na literatura.
Caso clínicoOs autores apresentam o caso de uma nulípara de 32 anos com hipertensão arterial de difícil controlo diagnosticada às sete semanas gestacionais com internamento às 24 semanas por quadro de hipertensão crónica agravada com pré-eclâmpsia sobreposta, edema agudo do pulmão e instabilidade hemodinâmica com necessidade de suporte ventilatório mecânico, restrição do crescimento fetal e morte fetal. O estudo etiológico do quadro hipertensivo efectuado no período pós-parto permitiu demonstrar a existencia de um tumor renal-oncocitoma.
ConclusãoO comportamento clínico do oncocitoma renal permanece mal caracterizado durante a gravidez, podendo associar-se, apesar do seu comportamento teoricamente benigno, a um desfecho materno e fetal adverso. É fundamental excluir uma possível causa secundária nos quadros hipertensivos de difícil controlo.
Renal oncocytoma accounts for 5-7% of primary renal neoplasms. It is usually diagnosed in asymptomatic patients and is characterized by a benign behavior without invasion of adjacent tissues or metastasis. Diagnosis during pregnancy is uncommon and to date there have been only a few cases reported in the literature.
Case reportThe authors present the case of a 32-year-old nulliparous woman with uncontrolled hypertension diagnosed at seven weeks gestation. She was referred to our institution at 24 weeks with superimposed pre-eclampsia complicated by acute pulmonary edema and hemodynamic instability requiring mechanical ventilatory support, fetal growth restriction and stillbirth. Etiological study of the hypertensive disorder performed in the postpartum period was consistent with renal oncocytoma.
ConclusionThe clinical behavior of renal oncocytoma remains poorly characterized during pregnancy and may lead to an adverse maternal and fetal outcome despite its theoretically benign behavior. It is essential to exclude a possible secondary cause of hypertension in cases that are difficult to control.
Os autores reportam o caso clínico de uma mulher de trinta e dois anos, leucodérmica, sem antecedentes médicos, cirúrgicos ou obstétricos relevantes. A gravidez actual decorreu de técnicas de procriação medicamente assistida por infertilidade primária.
No decurso da primeira metade da gravidez evidenciou-se uma hipertensão arterial de difícil controlo apesar da associação de alfa-metildopa 500mg 8/8h, propranolol 20mg 8/8h e nifedipina CR 30mg 24/24h.
Às vinte e quatro semanas gestacionais, após agravamento dos valores tensionais (TA-194/131mmHg), alterações visuais, proteinúria e deterioração da função renal, foi transferida para um hospital de apoio perinatal diferenciado e internada numa unidade de cuidados intensivos materno-fetais. O quadro clínico e laboratorial corroborava uma hipertensão crónica agravada com pré-eclâmpsia sobreposta, pelo que se iniciou perfusão endovenosa de labetalol e de sulfato de magnésio e instituição do esquema de maturação pulmonar fetal com betametasona, segundo o protocolo do serviço. Ao terceiro dia de internamento, apesar da terapêutica instituída, mantinha-se o agravamento clínico materno com aparecimento de ascite, edema dos membros, edema periorbitário e outros sinais de sobrecarga de volume. Analiticamente evidenciava-se hipoalbuminemia e agravamento da função renal (Tabela 1). Em termos fetais, a ecografia mostrava um feto com boa vitalidade e líquido amniótico dentro dos limites da normalidade, no entanto, tornava evidente uma desaceleração do crescimento fetal com fluxo diastólico ausente na artéria umbilical mas ductus venoso normal, pelo que se decidiu manter vigilância fetal regular.
Evolução materna e fetal durante o internamento na Unidade de Cuidados Intensivos Materno-fetais
Idade gestacional | Síndroma Materna | Síndroma Fetal | Tratamento |
Dia 124s+5d | TA=174/115mmHg, proteinuria e edemas dos membros inferioresLab: Hb-11,9mg/dl, Leuc-13000/μL, Plaq-287000/μL, urato-5,6mg/dL, creatinina-0,8mg/dL, AST-13, ALT-15, proteinuria 0,8g/dL | Betametasona, Sulfato de Magnésio, Labetalol, Nifedipina, Metildopa | |
Dia 325s | Edema periorbitário e asciteLab: Hb-10mg/dL, Leuc-17100/μL, Plaq-246000/μL, urato-7,2mg/dL, creatinina-0,9mg/dL, AST-14, ALT-16, Mg2+-5,6, proteinuria-0,4g/dL | Ecografia:Apresentação pélvica, EP=587gFluxometria:AU fluxo diastólico ausenteDV normal | Furosemido, Labetalol, Nifedipina, Metildopa, Sulfato de Magnésio |
Dia 425s+1d | Dispneia, fervores subcrepitantes bibasaisLab: Hb-9,0g/dL, Leuc-14900/μL, Plaq-228000/μL, urato-8,1mg/dL, albumina-2,6g/dL, AST-20, ALT-19, proteinuria-1g/dL | Furosemido, Labetalol, Nifedipina, Metildopa, DNI, albumina humana dessalgada | |
Dia 525s+2d | Dispneia, fervores subcrepitantes bibasaisLab: Hb-10,2g/dL, Leuc-16000/uL, Plaq-246000/μL, urato-9,0mg/dL, creatinina-0,9mg/dL, albumina-2,9g/dL, proteinuria-1,5g/dL | Fluxometria:AU fluxo diastólico invertido ACM normal | Furosemido, Labetalol, Nifedipina, Metildopa, DNI, albumina humana dessalgada |
Dia 625s+3d | Edema Pulmonar Agudo com instabilidade hemodinâmica (TA-160/110mmHg) | Morte fetal | Ventilação mecânica invasiva |
Abreviaturas: ACM- Artéria cerebral média; ALT- Alanina transaminase; AST- Aspartato transaminase; AU- Artéria umbilical; DNI- Dinitrato isosorbido; DV- Ductus venoso; EP- Estimativa ponderal; Hb- Hemoglobina; Lab- Análises laboratoriais; Leuc- Leucócitos; Mg2+- Magnésio; Plaq- Plaquetas; TA- Tensão arterial.
No quarto dia de internamento, na presença de dispneia, fervores subcrepitantes bibasais e hipoxémia, estabeleceu-se o diagnóstico de edema agudo do pulmão no contexto de crise hipertensiva e instituíram-se medidas terapêuticas adequadas. No sexto dia constatou-se novo agravamento do quadro pulmonar materno com necessidade de ventilação mecânica invasiva e morte fetal, pelo que a grávida foi transferida para uma unidade de cuidados intensivos polivalente. A expulsão fetal ocorreu dois dias depois, verificando-se uma melhoria paulatina do estado materno.
No período pós-parto efectuou-se um estudo etiológico completo que incluía, entre outros, o estudo renal, endócrino e de trombofilias hereditárias e adquiridas.
A ecografia renal demonstrou a presença de uma massa bem delimitada no pólo inferior do rim direito. Para esclarecimento da natureza e relação da massa procedeu-se à realização de uma ressonância magnética nuclear renal, que mostrou tratar-se de uma massa bem delimitada, macronodular, com 85mm de maior diâmetro, expressão radiária e cicatriz necrótica central com captação intensa de contraste, sugestiva de oncocitoma renal (Figuras 1 e 2).
Posteriormente foi realizada nefrectomia total direita e a peça operatória foi enviada para estudo anatomo-patológico e imuno-histoquímico. Verificou-se assim a presença de um tumor sólido de 85×70×65mm, constituído por células de citoplasma granuloso e eosinofílico, positivo para Cam 5.2 e negativo para CD10, com CK 7 e vimentina focalmente positivos. Estes aspectos eram compatíveis com o diagnóstico de oncocitoma renal.
Após a cirurgia verificou-se a normalização dos valores tensionais.
Decorridos dois anos de vigilância clínica e após aconselhamento preconcepcional a doente voltou a engravidar.
Esta segunda gravidez foi acompanhada desde o primeiro trimestre na nossa instituição e cursou sem intercorrências, na presença de valores tensionais normais, até às trinta e seis semanas. Nesta altura decidiu-se a interrupção da gravidez pela realização de uma cesariana segmentar transversal, em virtude de apresentação fetal anómala e oligoâmnios com o nascimento de um recém-nascido do sexo masculino saudável, com 2165g e índice de apgar de 7/10.
DiscussãoO oncocitoma renal representa cinco a sete por cento das neoplasias renais primárias cujo diagnóstico, feito maioritariamente em doentes assintomáticos, decorre da realização de exames complementares de diagnóstico por causas não-urológicas1.
O oncocitoma renal é referido em termos anátomo-patológicos como uma massa sólida bem delimitada do parênquima renal com uma área de esclerose central; no entanto, é importante ressalvar que este aspecto classicamente descrito está presente apenas num terço dos casos1–3. Como tal, o estabelecimento do diagnóstico de oncocitoma renal requer uma avaliação histopatológica cuidada com documentação da presença de células oncocíticas organizadas em alvéolos, cordões ou túbulos, com citoplasma eosinofílico e sem mitoses, por um lado, e por outro a exclusão da coexistência de um tumor de células claras, documentado na literatura em 10-32% dos casos2,4,5.
O comportamento clínico deste tipo de tumor é habitualmente benigno e cursa com um prognóstico excelente. Mesmo massas de grandes dimensões são encapsuladas e, como tal, raramente invasivas ou associadas a metástases5–8.
Na gestação, o diagnóstico de oncocitoma renal constitui um evento raro. Em 1989, Fraser et al. efectuaram o primeiro relato de oncocitoma renal na gravidez ao reportar um caso onde o tumor renal foi diagnosticado às 23 semanas, como resultado do estudo de um quadro de lombalgia direita numa grávida saudável de 31 anos. Este caso clínico cursou com um bom desfecho perinatal3 não obstante o desenvolvimento de pré-eclâmpsia materna.
No nosso caso clínico, o diagnóstico do oncocitoma renal resultou do estudo etiológico de um quadro hipertensivo refractário à terapêutica combinada detectado na primeira metade da gravidez, que culminou numa pré-eclâmpsia grave de instalação precoce, edema pulmonar agudo e morte fetal.
A pré-eclâmpsia é definida pela associação de hipertensão arterial (valores tensionais superiores a 140/90mmHg em duas determinações separadas por um intervalo de pelo menos seis horas) com proteinúria superior a 300mg/24h. Trata-se de uma síndroma materno-fetal complexa de instalação precoce, em resultado de uma deficiente invasão do trofoblasto. Insuficiência renal aguda, eclâmpsia, edema agudo do pulmão, descolamento prematuro de placenta normalmente inserida, restrição do crescimento fetal e morte fetal são algumas das complicações subjacentes a esta síndroma. Estas manifestações ou o desenvolvimento de pré-eclampsia em idades gestacionais mais precoces têm sido entendidas por alguns autores como critério de gravidade que justificam uma pesquisa mais exaustiva de factores etiológicos.
Neste caso clínico em particular defrontamo-nos com um quadro de hipertensão arterial de instalação precoce na gravidez, difícil de controlar apesar da terapêutica anti-hipertensora a que se associou a morbimortalidade materna e fetal importante. A investigação conduzida para avaliação de uma causa secundária do quadro hipertensivo culminou no diagnóstico de oncocitoma renal.
ConclusãoO comportamento clínico do oncocitoma renal permanece mal caracterizado durante a gravidez, podendo associar-se, apesar do seu comportamento teoricamente benigno a um desfecho materno e fetal adverso.
Os autores pretendem alertar para a necessidade de exclusão de uma causa secundária perante um quadro de hipertensão arterial de difícil controlo.
Conflito de interessesOs autores declaram não haver conflito de interesses.