As doenças cardiovasculares (DCV) são a principal causa de morbimortalidade em todo o mundo, sendo a hipertensão arterial (HTA) um dos principais fatores de risco para as DCV1,2. A medição da pressão arterial (PA) é a base para o diagnóstico, seguimento e tratamento da HTA, pelo que um método fidedigno e preciso de medição da PA é fundamental3.
O desenvolvimento dos primeiros esfigmomanómetros por Riva‐Rocci e a estandardização do método auscultatório, definida por Korotkoff no início do século XX, constituíram a base para a medição da PA no consultório, frequentemente designada por medição casual (MC), tendo os estudos de Framingham contribuído marcadamente para a ampla utilização deste precioso parâmetro na prática clínica diária, sendo que esta técnica centenária é ainda hoje, de longe, a mais frequentemente utilizada quer na prática clínica quer na investigação, particularmente nos estudos epidemiológicos4,5.
A constatação de que a PA é uma variável hemodinâmica influenciada por múltiplos fatores (que incluem, entre outros, o esforço, emoções, alimentos, tabagismo, condições climatéricas, etc.) foi confirmada por monitorização com medição da PA por métodos invasivos (intra‐arterial) e levou à procura de métodos que permitissem aferir e monitorizar esta variação de forma não invasiva. Os primeiros equipamentos de medição ambulatória da pressão arterial (MAPA) não invasiva surgiram na década de 60 do século XX, estando inicialmente reservados ao uso experimental4,5, considerando‐se o trabalho publicado no Circulation, em 1964, por Kain et al. o primeiro sobre MAPA6.
A progressiva miniaturização dos equipamentos, a sua total automatização e a fiabilidade das medições (para além da possibilidade de acoplar a medição de outros parâmetros clínicos, como, por exemplo, a frequência cardíaca), aliadas a uma redução dos custos, contribuíram para uma ampla disseminação do método, principalmente na última década do século XX e, especialmente, nos primeiros anos do século XXI, sendo atualmente a MAPA considerada como uma técnica fundamental na prática clínica standard, sendo amplamente utilizada quer para o diagnóstico quer para a avaliação da eficácia terapêutica7, sugerindo‐se um uso cada vez mais alargado na prática clínica8.
Múltiplos trabalhos demonstraram amplas vantagens da MAPA sobre a MC, principalmente pelo facto de permitir um grande número de medições e, assim, obter o perfil da PA do paciente no seu ambiente diário – incluindo durante o sono/repouso –, permitindo identificar a hipertensão da bata branca (HTA‐BB) e a hipertensão mascarada (HTA‐M) – duas entidades clínicas hoje em dia com significado prognóstico e implicações nas atitudes a tomar claramente definidas –, avaliar a eficácia de medidas terapêuticas (farmacológicas ou não) e a variabilidade da PA nas 24 horas, entre outros9–12.
Adicionalmente, foi extensamente demonstrada superioridade prognóstica do valor da PA média da MAPA versus a PA da MC, quer para o desenvolvimento de lesões subclínicas de órgãos‐alvo quer de eventos de morbimortalidade cardiovascular (CV), não só na população geral como em diferentes subgrupos (homens/mulheres, idosos/jovens, doentes tratados/não tratados)13–17.
Para além da PA média das 24 horas, vários componentes do perfil da MAPA têm sido estudados (incluindo a variabilidade da PA, a subida matinal da PA, a carga tensional, diversos índices derivados deste, etc.) sendo, no entanto, os mais extensamente avaliados e mais comummente utilizados a PA (quer sistólica quer diastólica) média diurna – ou da vigília – e a PA média noturna – ou do repouso – e a respetiva relação com a classificação da relação PA média noturna/PA média diurna, isto é, o perfil circadiário da PA. Uma vez mais, diferentes nomenclaturas/definições foram usadas ao longo do tempo, tendo sido recentemente proposto pelo Working Group on Blood Pressure Monitoring da Sociedade Europeia de Hipertensão uma uniformização/clarificação da classificação do padrão da variação circadiária da PA na MAPA em perfil non dipping or rising (rácio≥1,0), mild dipping (0,9 <rácio<1,0), dipping (0,8<rácio<0,9) e extreme dipping (0,8<rácio)8.
Dada esta heterogeneidade de definições, não é de estranhar que existam na literatura resultados conflituantes sobre o valor prognóstico dos diferentes padrões circadiários da PA na MAPA. Acresce ainda que a definição dos períodos diurno/vigília e noturno/repouso não é homogénea, sendo nalguns casos usada a informação do diário do paciente para essa definição e noutros intervalos fixos previamente definidos. Todas estas limitações condicionam a relevância que alguns pretendem atribuir ao tipo de padrão circadiário da PA na MAPA, nomeadamente como guia para a decisão terapêutica e, particularmente, como indicador para preferir determinados fármacos e/ou horários preferenciais para a toma da medicação18–20.
O presente artigo de Monte et al.21 confirma, com a elegância e rigor metodológico a que o grupo já nos habituou, numa grande amostra de doentes portugueses com risco CV global ligeiro a moderado em contexto de prática clínica usual, a elevada reprodutibilidade dos valores médios da MAPA de 24 horas, o que é consistente com a maioria dos resultados publicados de estudos similares, reforçando o elevado valor que este exame complementar tem. De igual modo confirma, nesta população, a baixa reprodutibilidade dos perfis circadiários, tornando evidente que estes não devem ter um peso significativo na tomada de decisões clínicas neste tipo de doentes.
Para além das limitações referidas pelos autores, deverá ser ainda tido em conta que não se tratam de doentes hipertensos, conforme se infere dos valores médios da PA casual e da PA da MAPA, mas sim de doentes com risco CV ligeiro a moderado, pelo que, apesar de ser plausível que o mesmo suceda nos doentes com HTA, tal carece de demonstração. De igual modo, uma importante limitação (e que é concomitantemente um marco revelador da enormíssima casuística deste grupo) é que esta população de doentes não é, salvo melhor opinião, representativa da que vemos na prática clínica diária, pois não é usual doentes com este perfil tensional na MC, mesmo com o risco CV descrito, efetuarem dois registos da MAPA com este intervalo temporal. Uma pequena nota também para a definição dos grupos de perfil circadiário escolhida pelos autores, mais conforme ao que estamos habituados a ver e a utilizar (e, como tal, provavelmente de mais fácil apreensão por todos nós), mas que não corresponde à definição proposta pela Sociedade Europeia de Hipertensão, acima citada8.
Assim, este trabalho reforça a importância da MAPA como método fundamental na prática clínica diária num espectro alargado de doentes13, visto fornecer dados fidedignos e de enorme relevância para a tomada de decisões terapêuticas, sublinhando a necessidade de uma utilização criteriosa dos dados que ele nos fornece, nomeadamente relativizando a importância que alguns pretendem atribuir ao perfil circadiário por ele definido.
Conflito de interessesO autor declara não haver conflito de interesses.