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Vol. 40. Núm. 5.
Páginas 367-369 (maio 2021)
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O meu doente não pode, não quer ou não cumpre a anticoagulação oral. Cruzo os dedos ou cruzo o septo?
My patient cannot, will not or does not comply with oral anticoagulation. Do I cross my fingers or cross the septum?
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Rui Campante Telesa,b,
Autor para correspondência
rcteles@outlook.com

Autor para correspondência.
a Hospital de Santa Cruz, Unidade de Intervenção Cardiovascular, Carnaxide, Portugal
b Nona Medical School, Centro de Estudos de Doenças Crónicas, Lisboa, Portugal
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A fibrilhação auricular (FA) é uma doença prevalente que atinge até 3% da população e despende 1 a 3% dos cuidados de saúde devido aos acidentes vasculares cerebrais (AVC), morte súbita, insuficiência cardíaca, hospitalizações não planeadas e outras complicações1–3.

Uma vez diagnosticada, requer um tratamento multidisciplinar e multifacetado: gestão aguda, tratamento das patologias subjacentes e concomitantes, controlo da frequência, controlo do ritmo e a prevenção da complicação mais temida, o AVC. A predisposição à estase na aurícula esquerda e no apêndice auricular esquerdo (AAE) pela FA «não valvular» foi reportada em 1996 e embora a anticoagulação oral – com antagonistas da vitamina K e anticoagulantes orais diretos (DOACs) – tenha reduzido significativamente o risco de acidente vascular cerebral (AVC), até 40% dos doentes não estão tratados devido à intolerância a episódios de hemorragia ou outras contraindicações1,4,5.

A OAAE visa a bloquear, completa e mecanicamente, a origem anatómica de, aproximadamente, 90% dos trombos que estão na origem dos AVC. Os dois estudos principais, PROTECT AF e PREVAIL, avaliaram a eficácia da técnica, em comparação com varfarina, e demonstraram que o OAAE não é inferior na prevenção de AVC isquémico e é superior na prevenção de mortalidade cardiovascular e por todas as causas2,5,6.Porém, os ensaios clínicos aleatorizados foram limitados a um único dispositivo e não incluíram doentes intolerantes à anticoagulação. Esta técnica percutânea, tal como a ablação da FA, não foi sufragada devidamente por estudos aleatorizados com o comparador padrão atual, os DOACS, em termos de eventos cardiovasculares major. Há, naturalmente, grandes estudos observacionais disponíveis que sugerem a redução no risco de AVC comparativamente com a estimativa de risco por pontuações como o CHA2DS2‐VASc, incluindo muitas vezes doentes que receberam apenas fármacos antiplaquetários ou nem sequer cumpriram antiagregação ou anticoagulação após o procedimento6. Por outro lado, a presença de leaks peridispositivo não evidencia associação com eventos tromboembólicos subsequentes, apesar de se tratar em estudos com seguimentos curtos e diversos regimens antitrombóticos (antiplaquetários, anticoagulantes ou uma combinação de ambos): quer o maior ensaio sistemático com 455 indivíduos, o PROTECT AF, quer o registo multicêntrico Amplatzer Cardiac Plug (ACP) com 339 doentes, evidenciaram números totais de episódios isquémicos reduzidos, respetivamente, de 16 e 7 eventos5,7.

O estudo de Luís Paiva et al. é muito pertinente e atual, pretendendo determinar se o risco‐benefício da prevenção cerebrovascular com a OAAE é favorável comparativamente com os DOAC, num seguimento médio de 17 meses8. Trata‐se de um estudo observacional, unicêntrico, prospetivo, que avalia 302 doentes com FA não valvular e elevado risco de AVC, refletindo a experiência de um centro de referência de 2015 a 2017. Após exclusão adequada de 62 indivíduos, conclui que a OAAE em 91 casos foi não inferior na prevenção do objetivo primário composto por morte, AVC e hemorragia major, comparativamente com 149 doentes em tratamento médico com DOAC, diferindo dos grandes estudos observacionais disponíveis porque há uma tendência de redução no risco de AVC, com um benefício semelhante em doentes que receberam apenas fármacos antiplaquetários ou até nenhuma antiagregação nem anticoagulação pós‐procedimento.

Este trabalho é meritório porque: a) ilustra a competência e diferenciação de um prestigiado grupo nacional com elevada experiência na área e taxas de sucesso do procedimento de 96,3%, recorrendo a uma experiência singular de orientação por ecocardiografia intracardíaca (ICE) ou transesofágica (ETE)9; b) tem a particularidade de reunir duas casuísticas distintas com risco elevado de AVC: a da prevenção primária e secundária da OAAE com a da prevenção secundária de um serviço de neurologia, o que se reflete naturalmente em perfis algo díspares dos doentes, mas não sistematicamente favoráveis ao grupo da intervenção; c) utiliza diversos dispositivos do mundo real, selecionados individualmente pelo operador, tais como o ACP/AmuletTM e WatchmanTM; d) retrata regimes contemporâneos e reais de anticoagulação e antiagregação pós‐OAEE, incluindo a suspensão total destes fármacos após os seis meses em um quinto dos doentes; e) observa que o risco de mortalidade com os DOACS é maior inicialmente, enquanto o associado aos procedimentos percutâneos se «distribui» ao longo da sobrevida; f) reporta um risco hemorrágico fatal real, com um total de dois óbitos por hemorragias graves, fora as restantes.

Há aspetos metodológicos que estão assinalados pelos autores. Além dos vieses intangíveis, a potência estatística – aproximada e nem sempre consensual – foi estimada em 51% (ie, indicando uma possibilidade de 49% de não encontrar uma diferença estatisticamente significativa, para uma probabilidade de um erro tipo I de 5% (ie, encontrar uma diferença que não existe), mas tal não colide com as conclusões.

É importante perspetivar que, apesar do progresso, a prevenção do AVC, com a OAAE e em geral no contexto a FA não valvular, apresenta diversos desafios:

As pontuações de risco CHA2DS2‐VASc e HAS‐BLED, preconizadas pelas recomendações, são úteis enquanto ferramentas, mas apresentam limitações e, na melhor das hipóteses, são apenas modestamente robustas na previsão do risco individual de AVC3.

Os indivíduos com maior benefício potencial – os verdadeiramente intolerantes à anticoagulação crónica – têm sido excluídos dos estudos, apesar do uso crescente do procedimento nestes casos. Por exemplo, numa meta‐análise recente de 12 estudos (sete observacionais retrospetivos e cinco estudos observacionais prospetivos) em indivíduos com a história de hemorragia intracraniana (HIC) concluiu‐se que a OAAE pode ser potencialmente eficaz e relativamente segura, após decisão partilhada com cada doente5,6.

A presença de trombos no AAE nos exames de rastreio, que não respondem à terapêutica, constituiu também critério de exclusão nos principais estudos e representa uma preocupação pelo maior risco de complicações. Desconhece‐se o impacto dos filtros de proteção embólica neste contexto, mas há casos reportados de implantação bem‐sucedida, com técnicas adaptadas e dispositivos selecionados10.

O AAE apresenta grande variabilidade anatómica no que diz respeito à forma, ao volume, ao comprimento e à largura, o que justifica alguma diversidade de dispositivos. Aliás, a própria fibrose desta estrutura pode ter impacto prognóstico5.

A maior acessibilidade da técnica com a emergência de ICE tridimensional será suscetível de promover o procedimento da OAEE5,11.

Em conclusão, o estudo de Luis Paiva et al. é original e significativo porque descreve o perfil real de uma população de doentes portugueses portadores de FA não valvular, com risco acrescido de AVC, sugerindo a segurança e eficácia comparativa da terapêutica percutânea de encerramento do AAE face aos DOACs, num prazo de seguimento médio. O uso da OAAE tem sido sustentado pela necessidade eminente de alternativas terapêuticas à anticoagulação oral crónica, mas é necessário ir mais além com estudos aleatorizados, possivelmente da iniciativa do investigador ou por sociedades científicas, para avaliar o impacto prognóstico desta terapêutica. É este o (nosso) desafio.

Conflitos de interesse

O autor declaranão haver conflitos de interesse.

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