A insuficiência mitral é a segunda doença valvular mais frequente da Europa1. O seu diagnóstico, classificação e tratamento estão adequadamente normalizados pelas recomendações conjuntas da Sociedade Europeia de Cardiologia e Sociedade Europeia de Cirurgia Cardiotorácica2. A reparação cirúrgica constitui o tratamento de referência2. Contudo, cerca de metade3 dos doentes com insuficiência mitral grave não recebem tratamento cirúrgico pela idade avançada, compromisso da função ventricular e outras comorbilidades/contraindicações. Soluções terapêuticas alternativas, que envolvam um menor grau de invasividade, são indiscutivelmente necessárias. Nas últimas duas décadas inúmeros dispositivos de implantação percutânea foram desenvolvidos. Múltiplos conceitos e abordagens foram testados – anuloplastia direta e indireta, implantação de neocordas, remodelação ventricular direta, plicatura de folhetos, substituição valvular percutânea, etc. Contudo, até ao momento apenas um dispositivo ultrapassou o teste de um ensaio clínico aleatorizado4 e recebeu recomendação favorável de múltiplas sociedades reguladoras2,5,6. O sistema MitraClip (Abbott Vascular – Structural Heart, Menlo Park, Califórnia, Estados Unidos da América) reproduz percutaneamente a técnica cirúrgica de Alfieri que consiste na criação de uma válvula de duplo orifício por plicatura dos segmentos medianos dos folhetos anterior e posterior. O sistema é formado por um complexo mecanismo de entrega que por via transeptal permite implantar um ou mais clipes de crómio‐cobalto que unem os segmentos valvulares medianos (A2‐P2). Já foram realizados no mundo mais de 20000 casos com o sistema MitraClip. Nos Estados Unidos da América foram realizados os programas EVEREST I e II que incluíram uma fase piloto de avaliação de segurança e viabilidade, registo com inclusão de doentes com elevado risco cirúrgico e ensaio aleatorizado versus cirurgia convencional4,7–9. Posteriormente, iniciou‐se o registo contínuo REALISM. Em outubro de 2003 a Food and Drug Administration aprovou a utilização do MitraClip em doentes com regurgitação degenerativa sintomática com elevado risco cirúrgico5. Na Europa, o MitraClip recebeu aprovação de marca CE em março de 2008. A sua utilização cresceu exponencialmente e a experiência acumulada incidiu preferencialmente em doentes com insuficiência mitral funcional, idade avançada e elevado risco cirúrgico. Foi realizado o registo ACCESS‐EU Phase I e Phase II com cerca de 1000 intervenções. Em 2012, a Sociedade Europeia de Cardiologia e Sociedade Europeia de Cirurgia Cardiotorácica atribuíram uma recomendação classe IIb para a utilização do MitraClip na insuficiência mitral sintomática, funcional ou degenerativa, em doentes inoperáveis ou de elevado risco operatório2. Trata‐se, portanto, de uma solução terapêutica que, apesar das limitações que lhe são inerentes, ultrapassou múltiplas barreiras de avaliação científica e conquistou um espaço de aplicabilidade clínica.
Em Portugal foi realizado o primeiro implante de MitraClip a 9 de janeiro de 2013 no Hospital de Santa Maria (Figura 1). Seguiram‐se o Hospital de Santa Marta e Hospital de Vila Nova de Gaia. Foi uma introdução tardia, relativamente ao contexto europeu, tendo ocorrido cerca de cinco anos após a aprovação de marca CE e no mesmo ano da aprovação nos Estados Unidos da América pela Food and Drug Administration. O crescimento tem sido lento, mas sustentado. No primeiro semestre de 2015 foram realizadas aproximadamente 100 implantações na Península Ibérica e os centros portugueses contribuíram com cerca de 20%. Os resultados apresentados neste número da revista10 traduzem a experiência do mundo real e são comparáveis aos resultados publicados dos grandes registos europeus (registo internacional Transcatheter Valve Treatment Sentinel Pilot Registry11 e o registo alemão TRAMI12–14). Está prevista a participação dos três centros nacionais no importante estudo internacional RESHAPE‐HF2, confirmando a consistência e qualidade do trabalho desenvolvido. Este ensaio tem como objetivo primário avaliar o impacto da implantação do clipe mitral na mortalidade e reinternamento por insuficiência cardíaca em doentes com insuficiência mitral funcional grave sintomática. Será um estudo aleatorizado versus terapia convencional otimizada e terá o potencial para mudar profundamente o tratamento dos doentes com compromisso da função sistólica e regurgitação mitral secundária.
A plastia percutânea para tratamento da insuficiência mitral é hoje uma solução real para doentes adequadamente selecionados e considerados inoperáveis ou com elevado risco operatório. Requer uma importante alocação de recursos com criação de equipas multidisciplinares, mas é a única alternativa de reparação para um significativo grupo de doentes. A substituição valvular percutânea poderá parecer um conceito mais simples e de maior aplicabilidade. Contudo, interfere com o aparelho subvalvular e geometria ventricular, incrementa a agressividade do procedimento e terá as limitações inerentes à implantação de uma válvula biológica em posição mitral. Creio que no futuro assistiremos ao desenvolvimento e crescimento simultâneo das técnicas de reparação percutânea, de substituição valvular percutânea e cirurgia por via minimamente invasiva. A diversidade de soluções terapêuticas aumentará o leque de doentes candidatos a tratamento e todas terão o seu espaço e papel a desempenhar.