Tradicionalmente, a insuficiência cardíaca (IC) era vista como uma «falência de bomba» que levava a sinais e sintomas, que se devia a depressão da contractilidade cardíaca e podia ser quantificada pela fração de ejeção. Como exceção, alguns doentes com cardiomiopatia hipertrófica ou doença coronária apresentavam fração de ejeção normal e quadro clínico compatível com IC; considerava-se que estes doentes teriam IC por disfunção diastólica.
No entanto, nas duas últimas décadas a compreensão da IC mudou radicalmente. Verificou-se que uma percentagem significativa destes doentes apresentam fração de ejeção preservada (FEP), mas não se enquadram nas categorias anteriormente conhecidas.
Apesar de representarem uma percentagem crescente dos doentes com IC (de 38-54% entre 1987-2001; a aumentar cerca de 1% ao ano)1,2, ainda muito pouco se sabe sobre esta entidade.
Sem grande margem de erro, poder-se-á dizer que o pouco que sabemos é que os doentes deste grupo são mais frequentemente do sexo feminino, têm escalão etário mais avançado, mais frequentemente hipertensão arterial e fibrilhação auricular, menor incidência de doença coronária e mais comorbilidades, quando comparados com os doentes com IC com fração de ejeção comprometida (ICFEC).
A partir daqui, poucas (se algumas) certezas existem.
Apesar do elevado número de doentes com insuficiência cardíaca com fração de ejeção preservada (ICFEP), ainda não há consenso quanto à mortalidade desta entidade. Durante anos considerou-se que esta era semelhante à dos doentes com ICFEC2. No entanto, em 2012 é publicada uma meta-análise de estudos clínicos aleatorizados, englobando cerca de 40 000 doentes, demonstrando uma menor mortalidade destes, mesmo após ajustamento para a idade e género, etiologia, história de HTA, diabetes ou fibrilhação auricular3. Já este ano, no Heart Failure 2013, uma apresentação da Canadian Heart Failure Network com aproximadamente 10 000 não registou qualquer diferença na sobrevida destes doentes, quando comparados com os com fração de ejeção reduzida.
Embora estes dados sejam contraditórios, há algumas considerações a ter em conta. Os doentes com ICFEP são um grupo com grande número de comorbilidades, o que poderá ter impacto na sua mortalidade. De facto, a mortalidade cardíaca é, neste grupo, percentualmente menor. A variabilidade dos resultados apresentados poderá eventualmente radicar em populações com diferente número ou gravidade das comorbilidades associadas.
O prognóstico dos doentes com ICFEP tem-se mantido inalterado nas últimas décadas, contrastando com a ICFEC na qual os avanços terapêuticos, médicos e de dispositivos tiveram como reflexo uma redução da morbilidade e mortalidade.
De facto, não existe até à data evidência de qualquer fármaco ou dispositivo a demonstrar benefício na mortalidade destes doentes4-6.
Os motivos pelos quais os estudos clínicos aleatorizados até aqui realizados não mostraram benefícios poderão ser variados, mas uma seleção menos adequada dos doentes terá seguramente tido o seu contributo.
Revisitando o PEP-CHF (Perindopril for Elderly People with Chronic HF), o diagnóstico de disfunção diastólica foi feito por Doppler pulsado, sendo a idade média da população de 78 anos, o que põe em causa a fidedignidade desta avaliação. No estudo CHARM-preserved (Effects of candesartan in patients with chronic heart failure and preserved left-ventricular ejection fraction), o subestudo com ecocardiografia evidenciou disfunção diastólica em apenas 67% dos doentes. No I-PRESERVE (Outcome of Heart Failure with Preserved Ejection Fraction in a Population-Based Study) foram incluídos doentes com dispneia compatível com IC cl-II a IV da NYHA; o facto de 41% dos doentes apresentarem IMC≥30kg/m2 e o percentil 25 do NT-proBNP ser de 139-131pg/ml (irbesartan versus placebo) levanta a hipótese da dispneia poder ter outras etiologias que não IC7.
Olhando para as características dos doentes incluídos nestes grandes estudos apercebemo-nos rapidamente que a possibilidade de se terem incluído os doentes «errados» é substancial.
Muito provavelmente o problema é ainda maior do que uma deficiente seleção de doentes – o que se passa é que o conhecimento existente sobre esta entidade é ainda muito escasso.
Alguma evidência se tem vindo a acumular de que não se trata apenas de um quadro meramente de disfunção diastólica. Tan et al.8, após avaliação ecocardiográfica exaustiva de doentes com ICFEP, em repouso e no esforço, verificaram que estes doentes apresentavam múltiplas alterações da função sistólica (no strain radial e longitudinal, na torção apical e na velocidade do anel valvular mitral) e da função diastólica (untwisting e sucção) em repouso, as quais se acentuavam com o exercício.
Não se limitam, no entanto, à função sistólica e diastólica as anomalias encontradas nesta síndrome. De facto, as alterações evidenciadas com o exercício são múltiplas, desde a incompetência cronotrópica9, as perturbações da vasodilatação e hipertensão pulmonar10. Habitualmente, o aumento do débito cardíaco no exercício é feito à custa de aumentos integrados de retorno venoso, contractilidade, frequência cardíaca, vasodilatação periférica e melhoria da função diastólica. Borlaug, num artigo marcante publicado na Circulation em 2006, descreve a ICFEP como uma síndrome de diminuição das reservas cardíacas, já que todos estes parâmetros estão alterados11.
Mais do que nunca, temos de pensar que a IC é uma síndrome, não um diagnóstico, e os doentes com ICFEP serão uma conglomeração de diferentes perfis clínicos e de risco, muito mais heterogéneos do que os doentes com ICFEC. Árvores de diagnóstico refletindo e incorporando as anomalias acima referidas poderão ter mais sucesso num correto diagnóstico, bem como sugerir estratégias de tratamento para elas direcionadas.
Os peptídeos natriuréticos são presentemente usados em larga escala e têm um valor indiscutível nos doentes com ICFEC. Trabalhos recentes apontam para que possam também ser de utilidade no diagnóstico e prognóstico de doentes com ICFEP.
Até à publicação das últimas guidelines europeias de IC, os valores para exclusão de IC para o BNP e NT pro-BNP eram de respetivamente 100 e 400pg/ml. Ora estes, segundo alguns trabalhos publicados, são demasiado altos e por isso pouco sensíveis no diagnóstico de IC, mas refira-se que a larga maioria dos estudos com doseamento de BNP se centrou nos doentes com sintomas agudos, que recorriam ao serviço de urgência. Os valores de BNP refletiam, portanto, uma situação diferente da dos doentes com queixas mais ligeiras que se encontram em ambulatório.
Nas guidelines mais recentes, de 2012, é tida em conta a manifestação clínica de dispneia e consoante esta é de aparecimento agudo ou não, são sugeridos valores de BNP e NT pro-BNP diferentes (respetivamente 100 e 300pg/ml para situação aguda e 35 e 125pg/ml para situação não aguda). Os dados sobre os quais assentam estas recomendações são, no entanto, escassos e não específicos para os doentes com fração de ejeção preservada. Krishnaswamy et al.12, após avaliação de 400 doentes com IC, mostraram que um valor de BNP de 57pg/ml era capaz de diagnosticar 100% dos doentes com disfunção diastólica.
Neste número da revista, Jorge et al. estudaram do ponto de vista clínico, electrocardiográfico, ecocardiográfico e com doseamento de BNP 161 doentes com suspeita de ICFEP, em ambulatório. Verificou-se que, destes, 49 doentes têm de facto ICFEP e que o valor de corte do doseamento de BNP para diagnosticar esta entidade clínica foi de 52pg/mL. Os resultados deste trabalho estão de acordo com os já publicados em doentes semelhantes. O interesse deste estudo reside na chamada de atenção para a utilização de valores de peptídeos natriuréticos mais baixos nos doentes com suspeita de IC em ambiente de consulta. Os valores de corte são, contudo, mais altos do que os utilizados para o diagnóstico de IC em presença fração de ejeção deteriorada do ventrículo esquerdo.
Em resumo, depois de duas décadas de investigação nesta área, os resultados com impacto clínico praticamente foram inexistentes. Talvez as descobertas recentes relativas à sua fisiopatologia e diagnóstico venham a produzir frutos proximamente. Entretanto, esta entidade continua a ser designada de ICFEP, dado esta última característica ser a única comum a todos estes doentes.
Conflito de interessesOs autores declaram não haver conflito de interesses.