O tratamento percutâneo da estenose aórtica severa demonstrou ser uma alternativa terapêutica para os doentes de alto risco cirúrgico. Descreve-se o caso do primeiro doente com bioprótese aórtica degenerada e regurgitação severa tratado por via percutânea no nosso centro.
Percutaneous valve replacement for severe aortic stenosis has been shown to be an alternative treatment option for high surgical risk patients. We describe our first valve-in-valve procedure in a patient with a degenerated aortic bioprosthesis and severe regurgitation.
A implantação percutânea de prótese valvular aórtica é uma técnica promissora que se tem revelado eficaz e segura no tratamento de doentes com estenose aórtica grave sintomática recusados para cirurgia de substituição valvular1–5. Contudo, os doentes previamente operados e portadores de biopróteses aórticas entretanto degeneradas, a quem é frequentemente recusada nova cirurgia de substituição valvular pelo quase invariavelmente elevado risco cirúrgico, permaneciam até há pouco tempo sem qualquer perspetiva de um tratamento eficaz. Em 2007, Wenaweser et al. descreveram a primeira implantação transcateter de prótese valvular aórtica num doente com bioprótese cirúrgica degenerada e regurgitação grave, utilizando o dispositivo Medtronic CoreValve (Medtronic Inc, Minneapolis, MN, U.S.)6. Desde então, múltiplos casos têm sido reportados por diferentes centros7–12. Descreve-se, em seguida, o caso do primeiro doente com bioprótese aórtica disfuncional tratado por via percutânea no nosso centro.
Caso clínicoMulher de 83 anos, com antecedentes de hipertensão arterial (controlada), dislipidemia, insuficiência renal crónica estadio 3 (clearance de creatinina 45mL/minuto), anemia crónica (hemoglobina basal 11g/dL), submetida a cirurgia de substituição valvular aórtica por bioprótese Mitroflow de 21mm (Sorin Group Canada Inc, Burnaby, BC, Canada) em 2004. Observada em consulta de Cardiologia por clínica de insuficiência cardíaca de agravamento progressivo, encontrando-se em classe funcional III da New York Heart Association (NYHA). O eletrocardiograma mostrou ritmo sinusal, sem alterações de relevo. O ecocardiograma transtorácico evidenciou sinais de degeneração da bioprótese aórtica, condicionando insuficiência transvalvular importante, embora de difícil quantificação, mas sem limitação significativa da sua amplitude de abertura. As restantes estruturas valvulares não mostravam alterações morfofuncionais significativas e não eram evidentes sinais de hipertensão pulmonar. O ventrículo esquerdo apresentava dimensões normais e a sua função sistólica global estava preservada. Para melhor caracterização da disfunção protésica, foi realizado um ecocardiograma transesofágico que mostrou cúspides aórticas moderadamente espessadas, embora mantendo razoável amplitude de abertura sistólica, mas com deficiente coaptação central, resultando em 2 jatos de insuficiência, um dos quais dirigido anteriormente junto do septo interventricular, quantificado de grau moderado a grave (grau III/IV) (Figura 1-A). Posteriormente, foi realizado um cateterismo cardíaco, que confirmou a existência de insuficiência aórtica importante (3+ em 4+) e excluiu doença coronária significativa (Figura 1-B).
Foi proposto tratamento cirúrgico com substituição de prótese valvular aórtica, tendo sido recusado, em reunião médico-cirúrgica, pelo elevado risco cirúrgico (EuroSCORE logístico 22,3%). Foi então considerada a possibilidade de tratamento percutâneo, tendo sido efetuada uma avaliação anatómica por ecocardiograma transesofágico e por tomografia computorizada multidetetores, que demonstrou exequibilidade técnica. De salientar, a ausência de doença arterial íleo-femoral significativa que obviasse este acesso (Figura 2).
Foi implantada uma prótese Medtronic CoreValve de 26mm por via femoral, sob anestesia geral. A libertação da prótese foi realizada sob pacing rápido, de modo a permitir um maior controlo e precisão do procedimento, ficando a prótese implantada em posição mais alta do que o habitual nas válvulas nativas, pelo menor diâmetro do anel protésico subjacente. O resultado angiográfico final foi excelente, registando-se insuficiência perivalvular mínima (Figura 3). No período pós-procedimento não se verificaram intercorrências, nomeadamente, complicações dos acessos vasculares, nefropatia induzida pelo contraste ou elevação dos marcadores de necrose miocárdica. De salientar, a ausência de complicações arrítmicas, nomeadamente, bloqueios auriculoventriculares avançados (presumivelmente, a maior rigidez do anel protésico e a implantação em posição mais alta terão protegido o tecido de condução subjacente). Clinicamente, a doente apresentou melhoria significativa da capacidade funcional, tendo tido alta ao 6.° dia. O ecocardiograma transtorácico à data da alta confirmou o posicionamento e funcionamento adequados da CoreValve e a ausência de regurgitação residual (Figura 4).
Após um seguimento de 14 meses, a doente permanece em classe I da NYHA e a prótese mantém-se normofuncionante e sem regurgitação (Figura 5).
ConclusõesApesar da ainda limitada experiência, os vários casos reportados por diferentes centros sugerem que a implantação transcateter de prótese aórtica é exequível e pode constituir uma alternativa para os doentes portadores de biopróteses degeneradas recusados para cirurgia. Contudo, trata-se de uma indicação off-label da técnica, pelo que, e apesar da exequibilidade demonstrada, deverá ser por enquanto encarada como solução de recurso. São necessários mais estudos, com maior número de doentes e maior tempo de follow-up, para determinar o papel que esta técnica poderá vir a desempenhar no tratamento dos doentes com disfunção prótesica de alto risco cirúrgico.
Conflito de interessesOs autores declaram não haver conflito de interesses.