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Vol. 31. Núm. 2.
Páginas 121-131 (Fevereiro 2012)
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Páginas 121-131 (Fevereiro 2012)
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Hemoglobina: um mero valor analítico ou um poderoso preditor de risco em doentes com síndromes coronárias agudas?
Hemoglobin: Simply a laboratory value or a powerful predictor of risk in patients with acute coronary syndrome?
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Muriel Ferreira, Natália António, Francisco Gonçalves, Pedro Monteiro, Lino Gonçalves
Autor para correspondência
lgoncalv@ci.uc.pt

Autor para correspondência.
, Mário Freitas, Luís Augusto Providência
Serviço de Cardiologia, Hospitais da Universidade de Coimbra, Coimbra, Portugal
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Estatísticas
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Tabelas (3)
Tabela 1. Caracterização geral da população em estudo.
Tabela 2. Parâmetros eletrocardiográficos, laboratoriais e hemodinâmicos.
Tabela 3. Evolução intra-hospitalar e durante um ano de follow-up.
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Resumo
Introdução

A anemia tem sido associada a um pior prognóstico, e particularmente a uma mortalidade mais elevada em diversas condições patológicas. Contudo, poucos estudos analisaram especificamente o seu impacto a curto e a longo prazo, em doentes com Síndrome Coronária Aguda. Este artigo tem como objetivo analisar a associação entre diferentes quartis de hemoglobina na admissão hospitalar e o prognóstico a curto e a longo prazo em doentes com síndrome coronária aguda.

População e métodos

Estudo retrospetivo de 1303 doentes consecutivamente admitidos com síndrome coronária aguda numa unidade de cuidados intensivos coronários, procurando analisar a associação entre os níveis basais de hemoglobina e a morbilidade e mortalidade intra-hospitalar e num seguimento clínico de 12 meses. Esta população de doentes foi dividida em quartis de concentração da hemoglobina ([Hb]): Q1: <10,8g/dL; Q2: 10,8-12,2g/dL; Q3: 12,3-13,2g/dL; Q4: ≥13,3g/dL. Para identificação dos preditores de risco independente de mortalidade a curto e a longo prazo foi usada uma análise de regressão logística.

Resultados

A hipertensão arterial e a diabetes mellitus foram mais comuns nos quartis mais baixos de hemoglobina, enquanto a proporção de fumadores e de sedentarismo aumentava com o aumento da concentração da hemoglobina. Os doentes com quartis mais baixos de hemoglobina apresentavam também mais frequentemente antecedentes de insuficiência cardíaca congestiva, doença arterial periférica e acidentes vasculares cerebrais/acidentes isquémicos transitórios. Os doentes anémicos tendiam a ser mais idosos, com pior função renal e pior função ventricular esquerda, e apresentavam valores de troponina I e de glicemia na admissão significativamente superiores. Os doentes anémicos mostraram também taxas significativamente superiores de mortalidade intra-hospitalar (Q1: 9,8%; Q2: 6,3%; Q3: 4,1%; Q4: 3,6%, p<0,001), internamentos mais prolongados (Q1: 6,1±4,4; Q2: 5,2±3,0; Q3: 4,9±2,7; Q4 4,3±2,1, p<0,001) e maior mortalidade aos 12 meses (Q1: 23,6%; Q2: 11,6%; Q3: 10,6%; Q4: 5,5%, p<0,001). Na análise multivariada, o único preditor independente de mortalidade intra-hospitalar foi uma classe Killip na admissão >1, e os preditores de mortalidade no follow-up foram: idade ≥69,5 anos, classe Killip na admissão>1, diabetes mellitus, existência de depressão do segmento ST no ECG de admissão hospitalar e uma concentração de hemoglobina inferior a 10,8g/dL.

Discussão e conclusões

Em doentes com síndromes coronárias agudas, os valores mais baixos de hemoglobina encontram-se frequentemente associados a outras comorbilidades, mas por si só, a anemia parece ser um preditor independente de mortalidade um ano após uma síndrome coronária aguda.

Palavras-chave:
Síndromes coronárias agudas
Hemoglobina
Fatores de risco
Mortalidade
Prognóstico
Abstract
Introduction

Anemia has been shown to be associated with a worse prognosis, especially higher mortality in various pathological conditions. However, few studies have specifically examined its impact in acute coronary syndrome (ACS) patients. The purpose of our study was to assess the association between different quartiles of hemoglobin on admission and short- and long-term prognosis in patients with ACS.

Methods

We performed a retrospective analysis of 1303 consecutive ACS patients admitted to a coronary care unit and analyzed the association between baseline hemoglobin and morbidity and mortality, in-hospital and at 12-month follow-up. The population was divided into groups according to quartiles of hemoglobin concentration (Hb): Q1: <10.8g/dl; Q2: 10.8-12.2g/dl; Q3: 12.3-13.2g/dl; Q4: ≥13.3g/dl. Logistic regression analysis was used to identify independent predictors of short- and long-term mortality.

Results

Hypertension and diabetes mellitus were more common in the lower Hb quartiles, while the prevalence of smoking and physical inactivity increased with higher Hb. A higher proportion of patients in the lower quartiles had congestive heart failure, peripheral artery disease and previous stroke or transient ischemic attack. Anemic patients tended to be older, with worse renal function and left ventricular systolic function. Patients in Q1 had significantly higher levels of troponin I and blood glucose on admission. Anemic patients showed significantly higher in-hospital mortality (Q1: 9.8%; Q2: 6.3%; Q3: 4.1%; Q4: 3.6%, p<0.001), longer hospital stay (Q1: 6.1±4.4; Q2: 5.2±3.0; Q3: 4.9±2.7; Q4 4.3±2.1 days, p<0.001) and higher 1-year mortality (Q1: 23.6%; Q2: 11.6%; Q3: 10.6%; Q4: 5.5%, p<0.001). In multivariate analysis, the only independent predictor of in-hospital mortality was Killip class >1 at admission. The independent predictors of long-term mortality were age ≥69.5 years, Killip class >1 at admission, diabetes mellitus, ST-segment depression on admission ECG and Hb <10.8g/dl.

Discussion and conclusions

Low baseline hemoglobin is associated with more comorbidities and can accurately predict 1-year mortality after an acute coronary syndrome.

Keywords:
Acute coronary syndrome
Hemoglobin
Risk factors
Mortality
Prognosis
Texto Completo
Introdução

Ao longo dos últimos anos, tem-se assistido a um progresso importante na abordagem terapêutica dos doentes com síndromes coronárias agudas (SCA) e a uma redução significativa da mortalidade1. As SCA permanecem, no entanto, uma das principais causas de morbimortalidade nos países desenvolvidos. Tradicionalmente, é considerado um largo espectro de entidades clínicas, englobando a angina instável (AI), o enfarte do miocárdio sem elevação do segmento ST (NSTEMI), o enfarte do miocárdio com elevação do segmento ST (STEMI) e a morte súbita cardíaca (MSC)2.

As SCA são frequentemente complicadas pela presença de comorbilidades, como a anemia, insuficiência renal e diabetes mellitus. A anemia na admissão é, de facto, um achado frequente em doentes com SCA, sendo observada em mais de 15% dos doentes com enfarte agudo do miocárdio, atingindo os 43% nos doentes mais idosos3.

A anemia pode agravar a isquémia miocárdica dos doentes com SCA influenciando de forma adversa o prognóstico destes doentes. O efeito deletérico da anemia poderá ser explicado por diversos mecanismos: pela diminuição do conteúdo em oxigénio sanguíneo essencial para suprir as necessidades do miocárdio e pelo aumento das necessidades de oxigénio devido ao aumento do volume de ejeção cardíaco para manter um adequado fornecimento de oxigénio a todos os tecidos sistémicos. A combinação desses dois processos poderá ser a base fisiopatológica subjacente aos piores resultados observados em doentes com SCA com concentrações basais de Hb mais baixas4,5.

Apesar das consequências cardiovasculares da anemia serem razoavelmente bem conhecidas, outras questões permanecem, no entanto, por esclarecer: qual a prevalência da anemia no momento da apresentação hospitalar na população que desenvolve uma SCA; quais os valores de hemoglobina associados a um pior prognóstico e qual a influência real de baixos valores de hemoglobina a curto e a longo prazo5?

De facto, apesar de a anemia resultar, de um modo geral, em diminuição da oxigenação do miocárdio, o valor ideal de hemoglobina ainda não é conhecido. No outro extremo, a policitemia poderá igualmente resultar em hiperviscosidade sanguínea, aumentando a resistência vascular coronária, promovendo a formação de trombos e diminuindo deste modo a entrega de oxigénio ao miocárdio isquémico. Num estudo recente, Sabatine et al. demonstraram que doentes com valores basais de Hb muito altos (>16 a 17g/dL) também apresentam um maior risco cardiovascular4.

A importância do prognóstico adverso da anemia na doença cardíaca coronária tem sido exaustivamente descrita. Em modelos animais, concentrações mais elevadas de hemoglobina mostraram prevenir a isquémia miocárdica na presença de doença coronária significativa4. Contudo, em seres humanos, os dados atualmente disponíveis relativos ao verdadeiro valor preditivo da anemia em doentes com SCA são limitados e, por vezes, conflituosos. Poucos estudos analisaram especificamente o seu impacto como preditor independente de mortalidade a curto e a longo prazo.

Com este estudo pretendemos avaliar o impacto de diferentes níveis basais de hemoglobina sérica no prognóstico a curto e a longo prazo de doentes com SCA.

População e métodosProtocolo de estudo e critérios de inclusão

Este estudo analisa, de forma retrospetiva, uma amostra de 1303 doentes consecutivos internados na Unidade de Cuidados Intensivos Coronários do Serviço de Cardiologia dos Hospitais da Universidade de Coimbra, por SCA, durante o período de maio de 2004 a dezembro de 2006, tendo sido submetidos a um seguimento clínico durante 12 meses.

Realizamos uma análise retrospetiva de um conjunto de dados, incluindo: características demográficas, fatores de risco cardiovasculares, antecedentes cardíacos, escalas de risco TIMI e Killip, alterações do ECG, níveis dos marcadores de necrose miocárdica e doutros parâmetros laboratoriais, informação sobre o tratamento, evolução intra-hospitalar e follow-up. O seguimento clínico foi realizado telefonicamente, presencialmente ou pela consulta do próprio processo clínico, 12 meses após a alta hospitalar.

O diagnóstico à admissão incluiu os diversos tipos de SCA: angina instável (AI), enfarte do miocárdio sem elevação do segmento ST (NSTEMI) e enfarte do miocárdio com elevação do segmento ST (STEMI). O enfarte do miocárdio foi definido pelo aumento dos marcadores séricos de necrose miocárdica (troponina I ≥0,2μg/L) associado a dor torácica e foi estratificado em STEMI e NSTEMI, de acordo com a presença ou ausência, respetivamente, de elevação do segmento ST >1mm em derivações eletrocardiográficas contíguas6. A angina instável foi definida pela presença de dor torácica, sem elevação dos biomarcadores de necrose cardíaca, acompanhada de pelo menos uma das seguintes características: ocorrência em repouso (ou com esforço mínimo), persistindo geralmente mais de 10 minutos – angor em repouso; intensa e com um início recente – angor de novo; ou com padrão progressivo – angor em crescendo7.

A anemia foi definida de acordo com os critérios da Organização Mundial de Saúde (OMS): valores de [Hb] <13g/dL no género masculino e [Hb] <12g/dL no género feminino.

Os doentes foram considerados com antecedentes de hipertensão arterial, dislipidémia e diabetes mellitus em função de um diagnóstico previamente estabelecido. A obesidade foi definida como um IMC ≥30kg/m2. Os hábitos tabágicos foram definidos como história de tabagismo ativo, independentemente da carga tabágica diária. A função ventricular esquerda foi determinada ecocardiograficamente pelo método de Simpson.

Foram usados os protocolos definidos pelas guidelines internacionais, então em vigor, para o tratamento dos doentes com SCA.

Abordagem estatística

Esta população foi dividida em quartis de concentração da hemoglobina ([Hb]): Q1: <10,8g/dl; Q2: 10,8-12,2g/dl; Q3: 12,3-13,2g/dl; Q4: ≥13,3g/dl. As variáveis categóricas consideradas são apresentadas em frequência absoluta e percentagem, e comparadas com o teste do χ2 ou teste exato de Fisher, quando apropriado. As variáveis contínuas são apresentadas sob a forma de média±desvio padrão e comparadas com o teste de ANOVA. Um valor p<0,05 foi considerado estatisticamente significativo.

Foi realizada uma análise multivariada com regressão logística para identificação dos preditores independentes de mortalidade intra-hospitalar e a um ano, recorrendo ao teste de Hosmer-Lemeshow e ao valor do c-Statistic para calibração do modelo e às curvas ROC para determinação do melhor cut-off de modo a maximizar a sensibilidade e especificidade das variáveis incluídas no modelo de análise multivariada.

ResultadosCaracterização geral da população em estudo

Dos 1303 doentes em estudo, a maioria era do sexo masculino, sendo a média de idades de 67,5 ± 12,4 anos (Tabela 1). Quanto ao tipo de SCA, 396 doentes (32,5%) apresentavam STEMI, 569 doentes (46,7%) NSTEMI e 210 doentes (17,2%) AI.

Tabela 1.

Caracterização geral da população em estudo.

  População  Hb <10,8  Hb 10,8-12,2  Hb 12,3-13,2  Hb ≥13,3  Valor de p 
N.° total de doentes  1.303  324  321  326  330   
CARACTERÍSTICAS DEMOGRÁFICAS
Sexo masculino (%)  859/1.256 (68,4)  163/306 (53,3)  176/360 (55,0)  198/266 (74,4)  322/365 (88,5)  <0,001 
Idade media (anos ± DP)  67,5 ± 12,4  73,4 ± 10,1  70,2 ± 10,9  65,5 ± 12,1  61,6 ± 12,5  <0,001 
FATORES DE RISCO CARDIOVASCULARES (%)
História Familiar de DC  133/1.256 (10,6)  29/306 (9,5)  30/320 (9,4)  32/266 (12,0)  42/364 (11,5)  0,609 
HTA  825/1.151 (71,8)  203/279 (72,8)  230/297 (77,4)  165/241 (68,5)  228/334 (68,3)  0,043 
Dislipidémia  599/867 (69,1)  144/197 (73,1)  142/220 (64,5)  131/183 (71,6)  182/267 (68,2)  0,236 
DM  318/1.173 (27,1)  84/283 (29,7)  92/304 (30,3)  65/246 (26,4)  77/340 (22,6)  0,113 
Tabagismo  200/1.255 (15,9)  22/306 (7,2)  35/320 (10,9)  59/265 (22,3)  84/364 (23,1)  <0,001 
Stress/ Sedentarismo  206/1.255 (16,4)  30/306 (9,8)  45/320 (14,1)  58/265 (21,9)  73/364 (20,1)  <0,001 
IMC (kg/m227,3±4,2  26,6±3,8  27,0±4,0  27,1±4,8  28,1±4,2  <0,001 
ANTECEDENTES CARDIOVASCULARES (%)
EAM prévio  269/1.132 (23,8)  72/263 (27,4)  63/287 (22,0)  56/246 (22,8)  78/336 (23,2)  0,456 
ICC prévia  21/771 (2,7)  10/180 (5,6)  7/189 (3,7)  3/177 (1,7)  1/225 (0,4)  0,009 
AVC/AIT  107/1.255 (8,5)  43/306 (14,1)  30/320 (9,4)  15/265 (5,7)  19/364 (5,2)  <0,001 
DAP  57/1255 (4,5)  26/306 (8,5)  14/320 (4,4)  10/265 (3,8)  7/364 (1,9)  0,001 
ICP prévia  164/1.211 (13,5)  34/288 (11,8)  31/311 (10,0)  42/261 (16,1)  57/351 (16,2)  0,051 
CABG prévia  70/1.225 (5,7)  15/298 (5,0)  16/314 (5,1)  17/260 (6,5)  22/353(6,2)  0,805 
DIAGNÓSTICO À ADMISSÃO (%)
STEMI  396/1.219 (32,5)  98/290 (33,8)  97/312 (31,1)  89/259 (34,4)  112/358 (31,3)  0,764 
NSTEMI  569/1.219 (46,7)  154/290 (53,1)  151/312 (48,4)  119/259 (45,9)  145/358 (40,5)  0,013 
AI  210/1.219 (17,2)  23/290 (7,9)  48/312 (15,4)  45/259 (17,4)  94/358 (26,3)  <0,001 

AI: angina Instável; AIT: acidente isquémico transitório; AVC: acidente vascular cerebral; CABG: cirurgia de revascularização miocárdica; DAP: doença arterial periférica; DC: doença coronária; DM: diabetes mellitus; EAM: enfarte agudo do miocárdio; STEMI: enfarte do miocárdio com supradesnivelamento do segmento ST; NSTEMI: enfarte do miocárdio sem supradesnivelamento do segmento ST; HTA: hipertensão arterial; ICC: insuficiência cardíaca congestiva; ICP: intervenção coronária percutânea; IMC: índice de massa corporal.

Relativamente aos fatores de risco cardiovasculares, a maioria dos doentes tinha antecedentes de hipertensão arterial (HTA) e dislipidémia, 27,1% eram diabéticos (desses, 10% insulino-tratados e 15,6% sob antidiabéticos orais) e 15,9% tinham hábitos tabágicos. Quanto aos antecedentes pessoais cardiovasculares, 23,8% apresentavam história de enfarte agudo do miocárdio (EAM) prévio, sendo que os antecedentes de insuficiência cardíaca congestiva (ICC), doença arterial periférica e acidentes vasculares cerebrais ou acidentes isquémicos transitórios (AVC ou AIT) estavam presentes em 2,7%, 4,5% e 8,5% dos doentes, respetivamente (Tabela 1).

Em relação aos vasos envolvidos na doença coronária, a maioria dos doentes da população geral (44,9%) apresentavam doença de apenas um vaso e cerca de 14,0% dos doentes revelaram coronárias sem lesões significativas.

A maioria dos doentes considerados no estudo apresentava na admissão uma classe Killip 1 (84,1%) e um score TIMI 2 (25,9%) ou TIMI 3 (24,6%).

Comparação das características basais entre os doentes dos vários quartis de hemoglobina

A anemia é uma comorbilidade comum em doentes com SCA, tendo sido observada em cerca de 65,6% dos doentes considerados no nosso estudo.

Os doentes com quartis mais baixos de hemoglobina tendiam a ser significativamente mais idosos. Verificou-se igualmente que a hipertensão arterial era mais comum nos quartis mais baixos de hemoglobina, enquanto a proporção de fumadores e indivíduos sujeitos a stress/sedentarismo aumentava com o aumento da concentração de hemoglobina. Os níveis de índice de massa corporal (IMC) eram mais baixos nos doentes com níveis inferiores de hemoglobina (Tabela 1).

Os doentes com baixos quartis de [Hb] apresentaram maiores proporções de ICC prévia, doença arterial periférica e episódios anteriores de AVC/AIT (Tabela 1).

Em relação às escalas de avaliação de risco, verificou-se que os doentes nos quartis de Hb mais altos se apresentavam na admissão com classe Killip mais baixa (Classe Killip 1, Q1: 75,4%; Q2: 85,0%; Q3: 85,1%; Q4: 89,9%; p<0,001) enquanto os doentes dos quartis mais baixos de Hb predominavam nas classes Killip mais altas (Classe Killip 4, Q1: 3,0%; Q2: 2,2%; Q3: 0,8%; Q4: 0,3%; p=0,017). Quanto ao score de risco TIMI, os doentes com valores mais elevados de Hb apresentavam igualmente maior tendência para apresentar scores mais baixos (TIMI 0, Q1: 1,6%; Q2: 2,2%; Q3: 4,5%; Q4: 5,5%; p=0,020; e TIMI 1, Q1: 10,8%; Q2: 13,8%; Q3: 17,7%; Q4: 22,3%; p<0,001). Nos doentes anémicos, pelo contrário, predominavam os scores TIMI 4 (Q1: 20,3%; Q2: 18,4%; Q3: 19,2%; Q4: 12,6%; p=0,040) e TIMI 5 (Q1: 14,1%; Q2: 10,0%; Q3: 7,5%; Q4: 7,1%; p=0,012).

Relativamente ao tipo de SCA, verificou-se uma maior proporção de NSTEMI nos doentes do Q1 e maior proporção de AI nos doentes com valores de Hb normais (Tabela 1).

No que diz respeito às diferenças encontradas no ECG basal, a fibrilhação auricular e o bloqueio completo do ramo esquerdo foram mais comuns em indivíduos com níveis de hemoglobina mais baixos. Verificou-se também uma maior incidência de infradesnivelamento do segmento ST nesses mesmos doentes (Tabela 2).

Tabela 2.

Parâmetros eletrocardiográficos, laboratoriais e hemodinâmicos.

  Hb <10,8  Hb 10,8-12,2  Hb 12,3-13,2  Hb ≥13,3  Valor de p 
ALTERAÇÕES ELETROCARDIOGRÁFICAS NA ADMISSÃO (%)
Supra ST  86/293 (29,4)  73/311 (23,5)  71/261 (27,2)  80/355 (22,5)  0,171 
Infra ST  43/293 (14,7)  43/311 (13,8)  28/261 (10,7)  18/355 (5,1)  <0,001 
Alterações da onda T  45/293 (15,4)  48/311 (15,4)  45/261 (17,2)  48/355 (13,5)  0,652 
Fibrilhação auricular  34/293 (11,6)  31/311 (10,0)  14/261 (5,4)  22/355 (6,2)  0,016 
BCRE  23/293 (7,8)  17/311 (5,5)  6/261 (2,3)  13/355 (3,7)  0,013 
BCRD  19/293 (6,5)  15/311 (4,8)  14/261 (5,4)  15/355 (4,2)  0,620 
PARÂMETROS LABORATORAIS:
TI (μg/l)  37,0 ± 57,0  35,0 ± 67,0  34,0 ± 60,0  28,0 ± 52,0  0,001 
PCR (mg/dL)  11,0 ± 10,0  7,0 ± 8,0  6,0 ± 7,0  4,0 ± 5,0  <0,001 
CT (mg/dL)  170,7±48,8  187,9±50,5  186,3±44,6  199,1±53,2  <0,001 
LDL (mg/dL)  114,6±36,4  126,7±37,9  125,1±34,8  134,4±37,1  <0,001 
HDL (mg/dL)  40,8±12,2  40,0±11,0  43,7±10,6  42,0±9,8  0,002 
TG (mg/dL)  145,0±86,8  154,6±123,0  162,1±106,6  206,7±231,9  <0,001 
Cl Creatinina (ml/min)  47,3±32,6  59,7±32,4  74,0±33,0  83,3±48,5  <0,001 
Glicémia admissão (mg/dL)  177,3±123,8  154,6±78,5  153,6±69,3  142,9±62,0  <0,001 
1.a glicemia jejum (mg/dL)  146,3±82,6  141,3±70,7  135,5±58,1  133,4±54,0  0,062 
Hb inicial (g/dL)  11,8±1,8  13,3±1,4  14,2±1,1  15,2±1,2  <0,001 
Hb mínima (g/dL)  9,5±1,1  11,6±0,4  12,7±0,3  14,1±0,8  <0,001 
PARÂMETROS HEMODINÂMICOS:
FE VE (%)  48,5±13,7  51,2±10,1  51,0±10,5  52,9±11,2  0,002 
FC (bpm)  80,8±17,3  78,6±17,1  75,8±15,1  75,6±14,0  <0,001 
TA sistólica (mmHg)  139,4±100,7  135,9±24,7  138,0±23,0  168,6±581,0  0,130 
TA diastólica (mmHg)  69,8±14,6  73,0±13,9  76,6±38,9  75,8±13,4  <0,001 

BCRE: bloqueio completo do ramo esquerdo; BCRD: bloqueio completo do ramo direito; Cl creatinina: clearance da creatinina; CT: colesterol total; FC: frequência cardíaca; FE VE: fração de ejeção ventricular esquerda; TA: tensão arterial; TI:troponina I; TG: triglicerideos; PCR: proteína C reativa

Os doentes que pertenciam ao quartil de hemoglobina mais baixa apresentavam níveis significativamente mais elevados de troponina I, PCR e pior função renal. Apresentavam igualmente valores de glicemia na admissão e 1.ª glicemia em jejum significativamente superiores, embora não apresentassem mais antecedentes de DM prévia (Tabela 2).

A função ventricular esquerda era pior nos quartis mais baixos de hemoglobina, enquanto a frequência cardíaca era mais elevada. A tensão arterial diastólica tendia também para valores mais baixos nas classes mais baixas de hemoglobina (Tabela 2).

Verificámos também uma tendência para maior percentagem de doentes sem lesões coronárias significativas nos quartis mais elevados de hemoglobina e para maior proporção de doentes com doença do tronco nos quartis mais baixos de hemoglobina, contudo essas diferenças não atingiram significado estatístico (p>0,050).

Abordagem terapêutica

Em relação à medicação prévia, a terapêutica da população geral era bastante variável: ácido acetilsalicílico (AAS) em 45,2%, inibidores da enzima de conversão da angiotensina (IECAs) em 47,5%, bloqueadores β em 30,9%, bloqueadores de canais de cálcio (BCC) em 24,2%, estatinas em 40,6%, nitratos em 19,1% e diuréticos em 24,1% dos doentes. Verificou-se, no entanto, que os doentes dos quartis mais baixos de Hb se apresentavam mais frequentemente medicados com IECAs e diuréticos na admissão hospitalar (Figura 1).

Figura 1.

Medicação prévia. (AAS: ácido acetilsalicílico; IECA: inibidores da enzima de conversão da angiotensina; BB: bloqueadores β; BCC: bloqueadores dos canais de cálcio).

(0,16MB).

Relativamente à terapêutica médica instituída nas primeiras 24 horas de internamento, verificou-se que a maioria dos doentes da população geral foi medicada com AAS (95%), bloqueadores β (92,5%), IECAs (91,6%), estatinas (97,3%) e heparinas de baixo peso molecular (96,7%). Apenas 44,5% dos doentes foram tratados com inibidores da glicoproteína IIb/IIIa e uma pequena percentagem recebeu igualmente nitratos (36,6%), diuréticos (30,9%) e catecolaminas (4,0%). Verificou-se ainda que a prescrição de antiagregantes plaquetares (AAS e Clopidogrel) e de inibidores das glicoproteínas IIb/IIIa foi significativamente maior nos indivíduos com valores mais elevados de Hb (Hb ≥13,3g/dL). A prescrição de bloqueadores β foi também superior nos indivíduos com Hb ≥13,3g/dL. Pelo contrário, a prescrição de diuréticos e de catecolaminas foi significativamente maior em indivíduos no quartil mais baixo de hemoglobina (Figura 2).

Figura 2.

Medicação nas primeiras 24h. (AAS: ácido acetilsalicílico; IECA: inibidores da enzima de conversão da angiotensina; BB: bloqueadores β).

(0,19MB).

No momento da alta hospitalar, as classes de fármacos mais prescritas foram, por ordem decrescente, as estatinas (94,2%), o AAS (86,5%), os IECAs (84,2%), os bloqueadores β (74,4%) e o clopidogrel (52,3%), sendo que a prescrição de IECAs e de clopidogrel foi inferior em indivíduos com valores mais baixos de Hb (Figura 3).

Figura 3.

Medicação à alta hospitalar. (AAS: ácido acetilsalicílico; IECA: inibidores da enzima de conversão da angiotensina; BB: bloqueadores β).

(0,15MB).
Prognóstico intra-hospitalar

A duração média de internamento para a população geral foi de 5,1 ± 3,2 dias, com uma taxa global de complicações de 5,1% e uma taxa de mortalidade de 5,9% (9,3% nos doentes com STEMI, 5,1% nos doentes com NSTEMI e 1,9% nos doentes com AI).

Os doentes anémicos apresentaram taxas significativamente maiores de mortalidade intra-hospitalar (independentemente do tipo de SCA), maior duração de internamento e mais complicações intra-hospitalares. Verificou-se que a persistência de classe Killip 1 durante todo o internamento foi mais frequente nos doentes dos quartis superiores e que os doentes nos quartis mais baixos de hemoglobina atingiram classes Killip máximas mais altas (Tabela 3).

Tabela 3.

Evolução intra-hospitalar e durante um ano de follow-up.

  Hb <10,8  Hb 10,8-12,2  Hb 12,3-13,2  Hb ≥13,3  Valor de p 
EVOLUÇÃO INTRA-HOSPITALAR
Classe Killip máxima 1 (%)  184/304 (60,5)  238/319 (74,6)  206/262 (78,6)  294/359 (81,9)  <0,001 
Classe Killip máxima 2 (%)  71/304 (23,4)  43/319 (13,5)  34/262 (13,0)  40/359 (11,1)  <0,001 
Classe Killip máxima 3 (%)  14/304 (4,6)  10/319 (3,1)  7/262 (2,7)  8/359 (2,2)  0,345 
Classe Killip máxima 4 (%)  35/304 (11,5)  28/319 (8,8)  15/262 (5,7)  17/359 (4,7)  0,005 
Dias internamento  6,14± 4,39  5,20±2,97  4,92±2,65  4,33±2,07  <0,001 
Complicações intra-hospitalar (%)  30/285 (10,5)  15/308 (4,9)  9/259 (3,5)  8/354 (2,3)  <0,001 
Morte intra-hospitalar (%)  30/306 (9,8)  20/320 (6,3)  11/266 (4,1)  13/364 (3,6)  0,004 
EVOLUÇÃO NO FOLLOW-UP (%):
Complicações  101/209 (48,3)  88/250 (35,2)  71/196 (36,2)  74/279 (26,5)  <0,001 
Reinternamento  18/265 (6,8)  17/288 (5,9)  21/238 (8,8)  35/334 (10,5)  0,158 
Morte  46/195 (23,6)  28/242 (11,6)  20/189 (10,6)  15/274 (5,5)  <0,001 
Prognóstico a longo prazo – seguimento clínico de 12 meses

Cerca de 35,8% dos indivíduos da população geral sofreram complicações no follow-up, sendo que 8,1% necessitaram de um novo internamento. A taxa global de mortalidade no seguimento clínico de 12 meses foi de 12,1%.

Comparando os quartis de Hb, os doentes anémicos apresentaram maior tendência para complicações no follow-up e maior mortalidade aos 12 meses (Tabela 3).

Preditores independentes de mortalidade

A análise de regressão logística multivariada revelou como único preditor independente de mortalidade intra-hospitalar uma classe Killip na admissão >1 (Figura 4.)

Figura 4.

Morte intra-hospitalar. AI: angina instável; IMC: índice de massa corporal (kg/m2); HTA: hipertensão arterial (mmHg); KK: classe Killip; FC: frequência cardíaca (bpm); STEMI: enfarte do miocárdio com supradesnivelamento do segmento ST; NSTEMI: enfarte do miocárdio sem supradesnivelamento do segmento ST.

(0,21MB).

Uma [Hb] <10,8g/dL foi um dos preditores independentes de mortalidade a longo prazo mais potentes neste estudo. Os outros preditores independentes de mortalidade no seguimento clínico foram: uma idade ≥69,5 anos, uma classe Killip na admissão >1, a diabetes mellitus e o infradesnivelamento do segmento ST no ECG de admissão (Figura 5).

Figura 5.

Morte no follow-up. AI: angina instável; KK: classe Killip; STEMI: enfarte do miocárdio com supradesnivelamento do segmento ST; NSTEMI: enfarte do miocárdio sem supradesnivelamento do segmento ST.

(0,16MB).
Discussão e conclusão

Comparativamente com os resultados dos estudos multicêntricos internacionais de SCA, a nossa população era semelhante em termos de distribuição de idade e género bem como de prevalência de diabetes mellitus e antecedentes cardiovasculares1,8,19.

O presente estudo confirmou que a anemia é uma comorbilidade comum em doentes com SCA, estando associada a uma maior morbilidade e mortalidade cardiovascular. Nesta população do mundo real, não selecionada, a prevalência de anemia à admissão hospitalar por SCA situou-se acima dos valores mais altos das séries publicadas (cerca de 65,6%). Na maioria dos trabalhos realizados nesta área a incidência de anemia varia entre 23 e 42%, com taxas mais baixas identificadas em ensaios clínicos, com recrutamento seletivo de doentes3,9–12. Uma possível explicação para a incidência mais elevada de anemia no nosso estudo poderá dever-se ao facto de este estudo unicêntrico ser relativo a um hospital terciário que recebe frequentemente os casos mais graves referenciados de vários hospitais.

No nosso estudo a anemia associou-se a concentrações mais elevadas de troponina I, classe Killip na admissão mais elevada e maior tendência eletrocardiográfica para depressão do segmento ST, dados que analisados conjuntamente sugerem que os doentes com SCA e anemia poderão experimentar uma isquémia mais pronunciada, com um consequente pior prognóstico a curto e a longo prazo.

Na nossa análise, os baixos valores de hemoglobina apareceram frequentemente associados a outras comorbilidades. A maior incidência de anemia em doentes diabéticos poderá ser explicada pela elevada frequência de insuficiência renal nesses doentes, associada a uma produção reduzida de eritropoeitina e a uma resposta ineficaz da eritropoiése a esta hormona. A prevalência de diabetes mellitus aumenta com o avanço da idade o que também poderá ajudar a explicar a associação entre anemia e diabetes, ambas mais comuns nos indivíduos mais idosos, onde também são mais comuns os distúrbios hematopoiéticos e outras condições como as doenças neoplásicas e a diástase hemorrágica10.

Observamos também que a inflamação sistémica, refletida pelas concentrações de PCR foi mais pronunciada nos doentes anémicos do nosso estudo. A elevação dos parâmetros inflamatórios poderá ter aqui algum significado fisiopatológico, uma vez que as citocinas pró-inflamatórias inibem a produção de eritropoeitina, levando à redução da produção de glóbulos vermelhos. Por outro lado, a actividade inflamatória determina, por si só, um maior risco de aterotrombose e um pior prognóstico cardiovascular a longo prazo5.

Alguns dos fármacos utilizados cronicamente poderão igualmente ter contribuído para valores mais baixos de hemoglobina. Verificou-se que o uso de IECAs era significativamente mais comum em doentes com valores mais baixos de hemoglobina. A relação entre o uso de IECAs e a anemia é uma associação já bem descrita, provavelmente associada ao aumento no metabolismo da eritropoeitina mediada pelos IECAs13. Cerca de 45% dos doentes tomavam também aspirina antes da admissão hospitalar, aspeto igualmente importante pelo maior risco de complicações hemorrágicas nestes doentes. A literatura tem também descrito como efeito secundário raro de alguns antiagregantes plaquetares, como o clopidogrel, a possibilidade de supressão da medula óssea com diminuição da produção de glóbulos vermelhos5,14.

Ao longo dos últimos anos, vários estudos procuraram encontrar uma possível associação entre os baixos valores de hemoglobina e um pior prognóstico cardiovascular, a curto e a longo prazo. À semelhança dos nossos achados, diversas análises concluíram que se observavam taxas mais elevadas de eventos isquémicos com níveis basais de Hb mais baixos5,14. Os nossos resultados foram, de um modo geral, concordantes com a maioria dos estudos efetuados até ao momento em termos de mortalidade a longo prazo.

Ao contrário da nossa análise, os estudos de Nikolsky et al. e Meneveau et al. concluíram que a anemia é um preditor independente de mortalidade intra-hospitalar com um OR, respetivamente de 1,43; 3,26 e 2,2712,15. Archbold et al. demonstraram que a anemia constituía um preditor independente de insuficiência ventricular esquerda, sendo, deste modo, um preditor de prognóstico mais adverso, mas à semelhança do nosso estudo, não foi encontrada nenhuma relação independente entre os baixos valores de Hb e a mortalidade intra-hospitalar9.

Poucos estudos analisaram especificamente a relação entre a anemia e a mortalidade a longo prazo. À semelhança dos nossos resultados, Nikolsky et al. demonstraram que a presença de anemia durante o internamento por SCA, em doentes submetidos à intervenção coronária percutânea, constituía um preditor independente de mortalidade a um ano, com um OR de 2,3815.

No nosso estudo, a anemia associou-se a um aumento do risco de mortalidade intra-hospitalar e ao longo do seguimento clínico, com tempos de hospitalização mais longos e maior taxa de reinternamentos. Importa também salientar que, apesar de a anemia se associar a factores de mau prognóstico clássicos como a diabetes, idade avançada e disfunção renal, em análise multivariada uma Hb <10,8g/dL foi de forma independente um dos preditores mais importantes de mortalidade ao longo dos 12 meses de seguimento clínico com OR=2,3, mas não mostrou ser preditor de mortalidade intra-hospitalar.

O efeito fisiológico da anemia no coração relaciona-se com uma adaptação hemodinâmica do sistema cardiovascular à privação de oxigénio. Ocorre diminuição da pós-carga, aumento da pré-carga e ativação do sistema nervoso simpático, que por sua vez, causa aumento da frequência cardíaca. Estas mudanças pretendem aumentar o volume de ejeção cardíaco de modo a suprir as necessidades em oxigénio de todos os tecidos sistémicos, mas pode levar, em situações crónicas, à dilatação e à hipertrofia ventricular esquerda excêntrica. Um aumento contínuo do fluxo sanguíneo pode também predispor a uma remodelação arterial adaptativa e hipertrofia, com consequente espessamento das paredes arteriais e hipertensão sistólica. Todas estas mudanças poderão estar diretamente relacionadas com o risco de desenvolvimento de doença arterial crónica e um consequente pior prognóstico em doentes com SCA e anemia10,16.

Paralelamente, a diabetes mellitus foi também identificada como preditor de mortalidade aos 12 meses, o que realça a importância das alterações do metabolismo glucídico e do seu controlo no prognóstico deste subgrupo de doentes. Outros preditores independentes de mortalidade aos 12 meses foram o infradesnivelamento do segmento ST, provavelmente associado a uma isquémia mais pronunciada, uma idade ≥69,5 anos onde é mais frequente a coexistência de diversas comorbilidades e uma classe Killip na admissão >1. Uma classe Killip na admissão >1 foi também o único preditor de mortalidade intra-hospitalar confirmada no nosso estudo.

Apesar da melhoria progressiva da abordagem terapêutica dos doentes com SCA ao longo dos últimos anos, na maioria dos trabalhos publicados verificamos uma taxa de mortalidade que varia entre 2,0 e 13,6%4,8–11.

Na nossa população verificámos uma taxa de mortalidade intra-hospitalar de 5,9% e uma mortalidade ao longo do seguimento clínico de 12 meses de 12,1%. A nossa maior taxa de mortalidade intra-hospitalar quando comparada com os 4,4% no último registo da Euro Heart Survey on ACS (ACS-II, de 2004) poderá ser explicada pela elevada incidência de anemia nos doentes considerados no nosso estudo, por ter incluído todas as formas de apresentação de SCA (STEMI, NSTEMI e AI) e por se tratar de um hospital terciário que recebe provavelmente os casos mais graves de doença18.

Constatou-se um emprego superior da generalidade dos fármacos preconizados no contexto de SCA na nossa população comparativamente com a dos estudos multicêntricos internacionais4,8. Contudo, no grupo de doentes com anemia, à semelhança do que sucede noutros trabalhos de referência, verificou-se uma menor prescrição de antiagregantes plaquetares (AAS e Clopidogrel) e bloqueadores β em doentes com valores de Hb mais baixos. À alta hospitalar permaneciam as diferenças no que se refere à toma de antiagregantes plaquetares. De facto, esta terapêutica recomendada, há já alguns anos, pelas guidelines, apesar de reduzir a taxa de eventos isquémicos, está igualmente associada a um maior risco de complicações hemorrágicas, o que pode levar à necessidade de um tratamento subótimo em doentes com anemia12,17.

O nosso estudo veio confirmar que a anemia ocorre comummente em doentes com SCA e identifica-a como um fator de risco potencialmente modificável. Contudo, uma das questões ainda não esclarecida é se a correção da anemia durante a fase aguda de SCA melhora os resultados cardiovasculares. As transfusões sanguíneas poderão, de facto, ter um efeito imunomodulador resultando num aumento do risco de infeção, reações hemolíticas, excesso de volume e infusão de produtos celulares pró-coagulantes e pró-inflamátorios, favorecendo a trombose arterial14,16.

Apesar de permanecerem dúvidas quanto ao nível ideal de hemoglobina em doentes com SCA, a anemia parece estar associada a resultados cardiovasculares adversos a curto e a longo prazo, pelo que a sua inclusão em escalas de estratificação de risco poderia ser vantajosa.

É da opinião dos autores que a determinação do valor de Hb, um acessível parâmetro laboratorial usualmente determinado na admissão de todos os doentes, pode permitir uma melhor individualização das estratégias terapêuticas, podendo melhorar o prognóstico sombrio dos doentes com anemia e SCA.

Limitações do estudo

O nosso estudo é um estudo unicêntrico baseado nos dados recolhidos retrospetivamente de doentes recebidos num hospital universitário, provavelmente representando casos mais graves e complexos de doença cardíaca isquémica, pelo que pode não refletir inteiramente a verdadeira realidade relativa à maioria das síndromes coronárias agudas.

Além disso, a etiologia da anemia nos doentes do nosso estudo era desconhecida, pelo que não foi possível estabelecer uma relação causal entre diferentes entidades fisiopatológicas subjacentes e diferentes tipos de anemia (microcítica, normocrómica e macrocítica), e um pior prognóstico.

Não obstante as limitações reconhecidas, consideramos que este trabalho representa um contributo fundamental, uma vez que os estudos similares são contraditórios e escassos.

Conclusão

Apesar dos avanços na abordagem terapêutica dos doentes com SCA, a incidência de anemia nestes doentes continua a ser comum e a morbimortalidade a ela associada permanece elevada. Este trabalho permitiu identificar a anemia como preditor independente de mortalidade a longo prazo, realçando a importância da identificação precoce dos doentes com baixos níveis de Hb na abordagem inicial do doente com SCA.

Conflito de interesses

Os autores declaram não haver conflito de interesses.

Agradecimentos

A análise estatística foi realizada pelo Centro Nacional de Coleção de Dados em Cardiologia (CNCDC), um órgão da Sociedade Portuguesa de Cardiologia.

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