A anemia mostrou ser fator de risco independente para eventos cardiovasculares na comunidade, em doentes com insuficiência cardíaca, e em doentes submetidos a intervenção coronária percutânea.
Na última década diversos autores debruçaram-se sobre o impacto prognóstico dos valores de hemoglobina no contexto das síndromes coronárias agudas, seja a curto prazo (durante a hospitalização) seja a mais longo prazo (sobretudo até aos 3 meses, sendo que poucos trabalhos avaliaram prognóstico ao ano).
Análises de estudos clínicos aleatorizados mostraram uma prevalência de anemia variável, entre 15 e 43% nos doentes com EAM1–2. Do ponto de vista teórico, a anemia pode agravar a lesão miocárdica em doentes com enfarte agudo, quer porque diminui o aporte de oxigénio ao miocárdio em risco, quer porque aumenta o consumo energético, dado o aumento do débito cardíaco que condiciona.
Numa análise de uma base de dados de altas hospitalares de doentes admitidos com enfarte agudo do miocárdio, englobando mais de 30.000, a anemia não mostrou associar-se a maior mortalidade ao ano3. No entanto, noutra análise de doentes idosos com enfarte, encontrou-se uma relação significativa entre hematócrito na admissão e a mortalidade aos 30 dias, já que valores mais baixos de hemoglobina se associaram a uma sobrevida progressivamente mais reduzida2.
Sabatine4, numa análise de doentes englobados em 16 estudos TIMI, verificou a existência de uma curva em J aos 30 dias relativamente aos eventos clínicos: em doentes com enfarte agudo do miocárdio com supradesnivelamento do ST a mortalidade aumentava à medida que os valores de hemoglobina baixavam de 14 gr/dL; também para valores acima de 17 gr/dL havia um acréscimo de mortalidade. Nos SCA sem supradesnivelamento de ST, a morte, o enfarte ou a isquemia aumentavam para valores de hemoglobina inferiores a 11 gr/dL, ou superiores a 16 gr/dL.
O trabalho de M. Ferreira5 é o primeiro publicado avaliando uma população portuguesa, e engloba um número muito significativo de doentes considerando que se trata de um único centro. Este estudo teve como objetivo avaliar o impacto prognóstico durante o internamento e, ao fim de 1 ano, dos valores de hemoglobina na admissão por síndrome coronária aguda. A população deste estudo difere um pouco da de outros trabalhos, pela sua idade mais avançada e maior percentagem de doentes com anemia, eventualmente por se tratar, como é referido pelos autores, de um Hospital terciário para onde são enviados casos de maior gravidade.
Neste trabalho, embora os doentes anémicos apresentassem taxas mais altas de mortalidade hospitalar, a análise de regressão logística multivariada revelou que o único predizente independente de mortalidade intra-hospitalar era uma classe Killip na admissão > 1.
Já relativamente à mortalidade ao ano, um valor de hemoglobina < 10,8g/dL foi um dos preditores independentes mais potentes neste estudo, o que está de acordo com outros trabalhos publicados.
Do mesmo modo que outros autores, M. Ferreira et al. sugerem a inclusão dos valores de hemoglobina nas escalas de estratificação de risco de doentes internados com síndromes coronárias agudas, atendendo a que é um parâmetro simples e sistematicamente avaliado.
Mas os mecanismos fisiopatológicos pelos quais a anemia se associa a maior mortalidade a longo prazo não estão esclarecidos.
É possível que uma resposta adaptativa à anemia possa levar a uma dilatação do ventrículo esquerdo, tendo como consequência o aumento do stress de parede provocando necrose miocitária e fibrose. Este mecanismo pode ser particularmente deletério no período pós enfarte6.
Numa tentativa de entendimento destes mecanismos, M. Rousseau7 avaliou 746 doentes incluídos no Integrililin and Enoxaparin Randomized Assessment of Acute Coronary Syndrome Treatment (INTERACT) com síndrome coronária aguda sem supradesnivelamento do ST, que haviam sido submetidos a monitorização eletrocardiográfica contínua. Verificou-se uma associação entre níveis mais baixos de hemoglobina e isquemia recorrente, idade avançada, comorbilidades, e uma pontuação mais elevada no score Grace. Na análise multivariada ajustada para estes fatores, os valores mais baixos de hemoglobina mantinham uma associação independente com isquemia recorrente. Assim, pelo menos no referente às síndromes coronárias agudas sem supradesnivelamento de ST, a isquemia recorrente poderá ser o fator pelo qual a anemia acarreta agravamento do prognóstico.
Já quanto à terapêutica da anemia, pelo menos no que às transfusões diz respeito, estamos longe de algum consenso. De facto, embora valores mais baixos de hemoglobina se associem a maior mortalidade, a correção destes mais frequentemente demonstrou um agravamento do prognóstico do que uma melhoria. Numa análise retrospetiva, Rao SV et al.8 avaliaram 2401 doentes submetidos a transfusão de glóbulos rubros durante hospitalização por síndrome coronária aguda. Estes eram mais idosos, tinham mais comorbilidades na apresentação, e também taxas de mortalidade e enfarte (não ajustadas) aos 30 dias, quando comparados com doentes que não tinham sido submetidos a transfusões. Mesmo depois de ajustada quanto às outras variáveis, a taxa de mortalidade permanecia mais elevada no grupo que tinha recebido transfusão.
Poder-se-á portanto ficar com a ideia de que a anemia detetada na admissão hospitalar por síndrome coronária aguda identifica doentes com pior prognóstico, quer durante o internamento, quer ao ano; trata-se habitualmente de doentes mais idosos, com mais comorbilidades, elas próprias frequentemente associadas a anemia. A abordagem agressiva da anemia nesta situação não mostrou resultados com impacto positivo no prognóstico.
Conflito de interessesOs autores declaram não haver conflito de interesses.