O nosso arquivo de afetos e de boas memórias ficou mais virtual e inconsequente com o desaparecimento no dia 2 de outubro de 2011 do nosso Colega e Amigo, Dr. José Alberto Rato.
Interrompe-se assim um longo e profícuo período de companheirismo e de cumplicidades estudantis, profissionais, sociais e culturais.
Sem querer invadir abertamente a sua privacidade, a sua ara solene, respigo apenas da introdução ao seu Curriculum Vitae as seguintes palavras, evocativas do seu percurso vivencial, escritas com a bonomia que o caracterizava: «Nasci em 1924, a 25 de outubro, dia correspondente à conquista de Lisboa e ao nascimento de Pablo Picasso. Tive uma vida boa e diversificada. Tirei o meu curso, fui militar e fiz desporto. Andei sempre com boas companhias… Depois a Medicina absorveu-me».
E… na verdade absorveu-o de forma total, sem raiar a obsessão, o que lhe permitiu cumprir de forma exemplar as obrigações familiares, sociais e culturais.
Após ter obtido a licenciatura na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa em 1951, ingressou nessa prestigiada Escola de Ensino Pós-graduado e Continuado Médico dos Hospitais Civis de Lisboa. Aí percorreu e cumpriu com êxito uma carreira médica exemplar, ultrapassando os múltiplos concursos públicos, cujo grau de dificuldade explicava a elevada qualidade profissional dos candidatos vencedores.
As suas excelentes classificações permitiram-lhe ter oportunidade de trabalhar com algumas das figuras mais notáveis da Cardiologia portuguesa: Prof. J. Moniz de Bettencourt, Dr. Alfredo Franco, Doutor Mário Marques, Dr. Barreto Fragoso, Doutora Fernanda Sampayo, Prof. M. Machado Macedo…
Em 1987 assumiu o lugar de Diretor do Serviço de Cardiologia do Hospital de Santa Marta de Lisboa, onde desenvolveu e ampliou os esforços organizativos dos seus antecessores. Protagonizou uma gestão consensual em rede, articulando todos os recursos humanos existentes no Serviço, para que de forma solidária se dedicassem à assistência, ao ensino pós-graduado e continuado e, ainda, à investigação clínica.
Esse notável labor deu azo a que o seu Grupo de Trabalho tivesse oportunidade de apresentar inúmeras Comunicações científicas em Congressos e em Reuniões em Portugal e no estrangeiro, e publicasse artigos em Revistas nacionais e internacionais que se tornaram referências bibliográficas obrigatórias.
Aberto ao mundo, desde sempre se disponibilizou para integrar Congressos, Simposia, Cursos ou Reuniões, particularmente de Cardiologia, em Portugal e no estrangeiro.
Interessado na gestão e organização hospitalar visitou todos os Serviços de Cardiologia portugueses e os de referência na Europa e nos Estados Unidos da América.
Com os conhecimentos obtidos com esses contactos gizou no Hospital de Santa Marta um dos Centros Cardiológicos melhor programado e apetrechado do país, tanto em recursos humanos como em equipamentos. Aceitou ainda disponibilizar os seus conhecimentos de Gestão, de Administração e de Planificação Hospitalar através de publicações e de contribuições pessoais em resposta à solicitação do Ministério da Saúde, o que muito contribuiu para o desenvolvimento menos caótico da rede cardiológica nacional.
Sabia, como poucos, que a riqueza de uma Escola residia na qualidade da sua estrutura humana.
Considerava o seu Serviço como um espaço onde o tempo era para ser preenchido com a apresentação das tecnologias de ponta e com a discussão dos avanços científicos surgidos no plano internacional. Mas não esquecia o aperfeiçoamento da ética profissional e a melhoria da formação humanística do seu grupo.
O ensino pós-graduado não se confinava aos internos em formação, projetava-se particularmente na Enfermagem do Serviço, permitindo aos seus elementos a aquisição de novos saberes, dedicando particular interesse ao setor dos Cuidados Intensivos Cardiológicos.
A aprendizagem dos Técnicos de Cardiologia mereceu desde sempre a sua preocupação. Responsabilizou-se por cursos pioneiros nesse domínio realizados nos Hospitais Civis de Lisboa em 1956, 1967 e1975.
Em 1981 na escola Técnica de Saúde de Lisboa foi nomeado Gestor, Organizador e Professor do 1.° Curso de Cardiopneumografia criado na capital. Continuou nas mesmas funções nos Cursos seguintes, responsabilizando-se ainda pelo 4.° Curso que lecionou no ano letivo de 1990/92.
Soube unir populações de profissionais de saúde – médicos, enfermeiros e técnicos, portadores de heranças culturais semelhantes, diversificados nas responsabilidades e na praxis, mas solidários nos objetivos finais.
Ao sublimar o componente informativo e formativo de cada elemento do seu grupo de trabalho sabia estar a introduzir uma dinâmica, que potenciava a aderência de todo o pessoal aos indispensáveis desempenhos rotineiros, mas simultaneamente abria caminho à implantação da criatividade e da inovação, que sempre foram apanágio da Cardiologia portuguesa.
É consensual que um dos pilares da implantação e do desenvolvimento da Sociedade Portuguesa de Cardiologia assenta no Hospital de Santa Marta de Lisboa.
Não admira, deste modo, que o Dr. José Alberto Rato desde sempre se sentisse atraído pela Sociedade Portuguesa de Cardiologia e a ela dedicasse o melhor do seu esforço e do seu engenho.
Além de ser um colaborador científico sempre presente, também assumiu responsabilidades diretivas, em parte do período crucial da Instituição (1977-85), em que foi possível assistir-se à modernização e profissionalização estrutural da Sociedade Portuguesa de Cardiologia.
Com o Dr. José Alberto Rato e o Dr. Luís Serra Pinto projetámos mudar o paradigma da Sociedade Portuguesa de Cardiologia e transformá-la na sociedade médica portuguesa mais respeitada em Portugal e no estrangeiro.
Se os alicerces foram colocados pelos responsáveis diretivos desse período, outros Colegas posteriormente se encarregaram de transformar o nosso sonho em realidade.
Aposentou-se em 1993, após uma carreira com louvores, prémios e distinções, reiniciando de forma regular e sistemática a sua incursão nas artes plásticas, na azulejaria, na museologia, nas ciências históricas.
Esculpiu várias peças de grande interesse, particularmente um Presépio em ligaduras gessadas, que expôs com agrado geral. Mas foi na pintura que mais investiu. Frequentou aulas de desenho e de pintura no ARCO e na Sociedade Nacional de Belas Artes. Teve oportunidade de realizar seis exposições das suas obras entre 1964 e 1998. A galeria da Ordem dos Médicos em Lisboa acolheu um junho de 1998 os seus trabalhos, referidos num excelente catálogo que então foi publicado. Nessa exposição foram apresentadas ao público 29 telas retratando Colegas que preenchiam espaços da sua convivência habitual. São de sua autoria os retratos do Dr. Santana Maia e o nosso que fazem hoje parte da galeria evocativa dos antigos bastonários da Ordem dos Médicos.
A pintura do Ratto faz sobressair as suas origens: médico que retrata médicos. Com o seu olho clínico consegue «despir» alguns dos colegas que o rodearam, expondo pela pintura os enigmas que os definem. A pintura como veículo escolhido permitiu-lhe realizar um esboço projetivo, denunciador da visão pessoal que consagrava aos retratados, fazendo emergir os atributos que os definem. Há em cada retrato algo que está para lá da forma, que convida a uma pausa reflexiva, atraindo-nos para eventuais contradições, que agilizam e definem cada uma dessas personalidades.
Assim o retrato de cada um desses Colegas ficará exposto à leitura interpretativa dos observadores, denunciando a cumplicidade de um passado comum, plasmado num presente, pincelado com afetos, por Alguém que tinha futuro. E que o deu a todos nós na tranquilidade dos rostos que pintou e na dedicação que consagrou a familiares, colegas e amigos.