Em 1877 Connheim descreveu pela primeira vez o mecanismo de embolia paradoxal através do forâmen ovale patente (FOP), fenómeno múltiplas vezes documentado em autópsias e estudos ecocardiográficos. Além da migração de um trombo através do defeito septal, outros mecanismos têm sido propostos para implicar o FOP em fenómenos cardioembólicos, nomeadamente um aumento da vulnerabilidade auricular a arritmias com potencial embolígeno ou a formação local de trombos1.
Múltiplos estudos evidenciaram uma associação entre a presença de um FOP e a ocorrência de acidente vascular cerebral (AVC) criptogénico, enquanto outros questionam essa relação2–4. A questão assume a relevância que os números lhe conferem: cerca de 25% da população tem FOP e cerca de 40% dos AVC isquémicos têm etiologia indeterminada (criptogénicos), sendo o FOP um mecanismo apelativo para a sua explicação.
Num achado tão prevalente como o FOP, como estabelecer a sua culpabilidade ou inocência, em particular no contexto de um AVC isquémico? Distinguir associação de causalidade é sempre um desafio que se revela crítico nesta questão.
Os três estudos aleatorizados de oclusão percutânea do FOP versus terapêutica médica5–7 não evidenciaram benefício para nenhuma das estratégias terapêuticas, mas apresentam importantes limitações. As mais relevantes são o reduzido poder estatístico derivado do baixo número de doentes e de eventos, cross‐over entre os dois braços dos estudos, heterogeneidade de critérios de inclusão, diversidade da terapêutica médica utilizada, tipo de dispositivo de oclusão utilizado e metodologia na definição e avaliação de eventos. Um facto impressionante foi o tempo necessário para aleatorizar um número relativamente reduzido de doentes, que em dois dos estudos ultrapassou os dez anos.
No entanto, análises posteriores destes ensaios têm contribuído com algumas clarificações, como a existência de causas alternativas para explicar a recorrência de AVC no caso do CLOSURE I8 e o benefício incremental ao longo dos anos no braço da oclusão percutânea no RESPECT.
Os resultados de meta‐análises também têm revelado resultados contraditórios, embora de um modo geral favoráveis à oclusão percutânea9,10.
Face à evidência dipsonível não existe nenhuma recomendação das sociedades científicas internacionais para a oclusão percutânea do FOP, embora algumas sociedades ou grupos de sociedades nalguns países tenham diretivas de quando é aceitável proceder à intervenção percutânea. Nas recentes recomendações da American Heart Association/American Stroke Association para a prevenção do AVC11 é admitida a oclusão percutânea do FOP apenas no contexto de AVC e trombose venosa profunda concomitante.
No artigo de Paiva et al.12, publicado neste número da revista, é descrito o primeiro estudo observacional e prospetivo em Portugal em doentes submetidos a oclusão percutânea do FOP após AVC. Dos resultados apresentados alguns pontos merecem destaque: trata‐se de uma população com uma idade média baixa e reduzidas co‐morbilidades, traduzindo uma referenciação teoricamente adequada à técnica; a baixa taxa de efeitos adversos graves relacionados com o procedimento; e o período longo de seguimento dos doentes, fundamental para se coligir efeitos adversos neste tipo de patologia. Algumas das limitações do estudo são referidas pelos próprios autores, mas há pontos adicionais importantes: é dificil extrapolar redução de risco relativo com o procedimento no grupo estudado com um controlo histórico derivado de uma meta‐análise; na análise de eventos no grupo de terapêutica percutânea a execução de ecocardiograma transesofágico não foi contemplada, tendo o ecocardiograma transtorácico reconhecidas limitações na avaliação de shunt residual ou da presença de trombos intracavitários e/ou associados ao dispositivo; a terapêutica médica concomitante também pode ter tido uma influência importante nos resultados obtidos. As conclusões derivadas dos estudos observacionais obrigam necessariamente os investigadores a procurar se existem alternativas para explicar os resultados, o que neste caso se releva particularmente difícil.
Existem três estudos aleatorizados ainda em curso nesta área (Patent Foramen Ovale Closure or Anticoagulants versus Antiplatelet Therapy to Prevent Stroke Recurrence‐CLOSE, Device Closure versus Medical Therapy for Cryptogenic Stroke Patients with High‐Risk Patent Foramen Ovale‐DEFENSE‐PFO e Gore Helex Septal Occluder/Gore Septal Occluder for Patent Foramen Ovale Closure in Stroke Patients‐REDUCE), mas o relativo baixo número de doentes a aleatorizar, associado ao reduzido número de eventos previsível nesta população, são dois fatores que fazem prever que ainda não seja com estes dados que a questão do valor da oclusão percutânea de FOP na prevenção secundária de eventos isquémicos se vá resolver.
Enquanto aguardamos que exista mais evidência para nos guiar, algumas estratégias podem ajudar na definição da opção terapêutica.
Antes de mais devemos recordar que o diagnóstico de AVC criptogénico obriga a uma marcha diagnóstica extensa e exaustiva de estudo etiológico, implicando a existência de equipas multidisciplinares, em que a neurologia, medicina interna e imagiologia têm papeis centrais. A imagem neurorradiológica é uma componente essencial que os cardiologistas não estão treinados para avaliar, com padrões sugestivos de doença potencialmente cardioembólica13. As características anatómicas do FOP são outra potencial ajuda à decisão, com estudos a apontar para a existência de marcadores de risco acrescido, como a dimensão do FOP e do shunt, shunt espontâneo em repouso (sem manobra de Valsalva), a presença de aneurisma do septo14. Finalmente, os investigadores do estudo RoPE15 conceberam um score de risco para selecionar os doentes que mais poderão beneficiar da opção terapêutica percutânea. Este score é baseado em quatro variáveis clínicas pela negativa, cada uma pontuada com um ponto (ausência de historia prévia de HTA, diabetes, AVC/AIT, tabagismo), uma imagiológica (presença de enfarte cerebral cortical) também pontuada com um ponto e na idade (subdivisão em seis décadas de vida, dos 18 anos a superior a 70 anos, com atribuição pontual decrescente a cada década de 5 até 0). Quanto maior o score (máximo de dez), maior a probabilidade de um evento isquémico relacionado com o FOP e será muito importante a validação deste score em estudos e análises futuras.
Em resumo, a seleção de doentes que possam beneficiar da oclusão percutânea do FOP como opção de prevenção secundária deve ser individualizada, submetida a uma marcha diagnóstica exaustiva e multidisciplinar. Só assim poderemos garantir homogeneidade no tratamento, segurança nos resultados e otimização de recursos.