A hipótese de que determinadas alterações no eletrocardiograma (ECG) standard possam revelar a existência de áreas de fibrose a nível do miocárdio poderá revestir‐se de interesse clínico, não só na identificação não invasiva da presença de doença coronária obstrutiva, mas também como marcador de risco de fácil acesso, sem necessidade de realização de exames mais complexos e dispendiosos.
Na prática clínica, tem sido desde há muito utilizada a presença no ECG de uma onda Q patológica para se identificar a existência de uma cicatriz de enfarte transmural prévio. No entanto, esse sinal apresenta como marcador uma baixa sensibilidade, pois pode não ocorrer desde o início (enfartes sem onda Q) ou desaparecer num prazo mais ou menos prolongado; portanto, a ausência de uma onda Q não exclui a possibilidade da existência de uma cicatriz fibrosa a nível do miocárdio.
Daí terem sido procuradas, desde há muitos anos, alterações da morfologia dos complexos QRS que possam traduzir de forma mais fidedigna a presença de uma região cicatricial no miocárdio. Foi o caso da dos chamados componentes de alta frequência do QRS, investigados por Flowers et al.1 ainda nos anos 60, cuja presença verificaram os autores ser maior em doentes com enfarte prévio. Estes estudos foram confirmados mais recentemente por Daset et al.2, através da realização de estudos da perfusão miocárdica pela técnica do SPECT, comprovando que a presença de QRS fragmentados (fQRS) no ECG de 12 derivações era um marcador de enfarte prévio, com uma sensibilidade significativamente superior e um valor preditor negativo comparável à ocorrência de ondas Q.
Diversos estudos clínicos vieram confirmar o potencial interesse da deteção de potenciais QRS fragmentados (fQRS), definidos por Das et al.2 como complexos em que se observa uma onda R adicional (R’), ou um entalhe no nadir da onda S, ou ainda mais do que uma onda R’, em derivações adjacentes, correspondendo ao território de uma artéria coronária principal.
Seguiu‐se a pesquisa da potencial capacidade destes sinais como marcadores de risco, procurando‐se em doentes coronários comprovar uma relação entre a presença de fragmentação do QRS e a ocorrência de eventos cardíacos. Essa relação foi investigada em síndromes coronárias agudas (enfarte do miocárdio STEMI/não STEMI e angina instável)3, em doentes submetidos a intervenção coronária percutânea primária4 e ainda após o enfarte do miocárdio, como preditor de morte súbita ou de insuficiência cardíaca5.
O risco de eventos arrítmicos nos doentes com fQRS foi ainda investigado em doentes com diversas outras patologias6, como miocardiopatia isquémica ou não isquémica, síndrome de Brugada, síndrome do QT longo adquirido, displasia arritmogénica do ventrículo direito e ainda como screening do envolvimento cardíaco em doenças como a artrite reumatoide, a fibromialgia reumática ou a sarcoidose.
Do conjunto destes estudos6 postulou‐se que a presença de QRS fracionados poderá estar relacionada com fibrose miocárdica e, por consequência, com o prognóstico, surgindo como um possível marcador de risco em diferentes populações. Estas ilações não estão ainda completamente comprovadas, mostrando os estudos disponíveis diferentes graus de sensibilidade para este índice. Assim, nos estudos com doença coronária estável ou com enfarte do miocárdio, os fQRS pareceram razoáveis preditores de eventos cardíacos, mas não de mortalidade; na miocardiopatia não isquémica este índice pareceu relacionar‐se com o grau de fibrose e de dessincronia; no entanto, nos doentes com disfunção ventricular esquerda não se comprovou relação entre os fQRS e a ocorrência de eventos arrítmicos.
O trabalho em apreciação7 pareceu‐nos ter algum interesse clínico, assumindo que a presença de fQRS é um marcador de risco em doentes com cardiopatia isquémica e procurando identificar subpopulações que apresentem patologia mais severa, através das derivações do ECG em que estes complexos são observados.
Assim, os autores propõem‐se comparar a gravidade da doença coronária em doentes que vão realizar a sua primeira angiografia coronária diagnóstica, conforme os fQRS se observem nas derivações anteriores ou nas inferiores. Estes dois grupos de doentes são comparados quanto à gravidade da sua cardiopatia isquémica essencialmente através de um score angiográfico usado internacionalmente, que quantifica a gravidade das lesões da árvore arterial coronária (Syntax score ou scoreX).
Tal como é a hipótese do estudo, encontraram‐se diferenças, concluindo‐se que a situação coronária é mais severa quando os fQRS são observados nas derivações anteriores relativamente à sua presença nas inferiores.
O objetivo do estudo, embora limitado, concordamos ter algum interesse científico, apontando nomeadamente para a possibilidade de contribuir para uma melhor estratificação dos doentes que vão realizar angiografia coronária.
Para além das limitações apontadas pelos autores7, como o facto de a população estudada ser pequena, ou a falta de dados hemodinâmicos coronários e relativos à disfunção microvascular, ressaltamos o facto de que relação dos fQRS com a gravidade da doença coronária é assumida como comprovada, o que não é ainda linear, com base nos estudos disponíveis. Com efeito, essa assunção baseia‐se largamente em estudos retrospetivos e há pelo menos dois ensaios citados na revisão de Pietrasik e Zaręba6 cujos resultados são discordantes, não tendo sido encontrada uma associação entre este índice e a mortalidade ou ocorrência de eventos arrítmicos, concluindo os autores que os fQRS não comprovaram ser úteis na estratificação de risco de doentes isquémicos. O presente estudo poderia ter contribuído para um melhor esclarecimento desta questão, caso compreendesse um terceiro braço com doentes da mesma coorte que não tivessem fQRS e que seriam comparados com os dois grupos incluídos.
Na revisão sistemática atrás citada sobre os QRS fragmentados6, os autores destacam alguns aspetos controversos sobre o valor dos fQRS, nomeadamente a variação da sua sensibilidade e capacidade preditiva conforme as populações em estudo, as dúvidas existentes sobre a sua real capacidade para identificar cicatrizes miocárdicas em doentes coronários, a constatação nestes doentes de que este índice não foi capaz de predizer a mortalidade nem os eventos arrítmicos e ainda o facto de não se ter revelado um preditor da resposta à ressincronização ventricular. Consideram estes autores que, no entanto, o principal fator limitante da utilização da fragmentação dos QRS é a subjetividade inerente à sua definição, havendo necessidade de uma avaliação mais objetiva da inomogeneidade da ativação ventricular.
Um aspeto que poderia ter sido aprofundado seria o da relação entre o local onde se identificam os fQRS e os territórios coronários afetados. Tendo tido acesso detalhado às lesões coronárias de cada doente, poder‐se‐ia ter procurado relacioná‐las com as derivações em que se identifica o padrão desfragmentado, o que ajudaria a identificar previamente ao cateterismo os territórios coronários com lesões mais significativas. Neste aspeto, Das et al.2 deduziram, a partir das derivações onde se observam fQRS, quais os segmentos do miocárdio onde se localizavam as cicatrizes (anterior, lateral, inferior) ou quais os territórios vasculares afetados (descendente anterior, circunflexa, coronária direita). No presente artigo, o grupo 2 (fQRS nas derivações anteriores) associa os territórios da descendente anterior e da circunflexa, o que poderá explicar a sua relação com índices de maior gravidade da doença coronária.
Por fim, constatamos que os endpoints do presente estudo7 são apenas surrogates de outros mais importantes do ponto de vista clínico, como a mortalidade ou os internamentos. Esperamos que a investigação tenha continuidade e que estas questões possam vir a ser esclarecidas, contribuindo para aprofundar o nosso conhecimento sobre a capacidade dos fQRS predizerem eventos cardiovasculares, melhorando a capacidade de estratificação de risco em doentes coronários.
Conflito de interessesO autor declara não haver conflito de interesses.