A estenose tricúspide (ET) é uma complicação rara da implantação transvenosa de pacemakeres ventriculares, com poucos casos relatados na literatura. Os mecanismos descritos são a obstrução do fluxo ao nível da válvula tricúspide (VT) por vegetações (endocardite), por múltiplos elétrodos ou por fibrose do tecido valvular ou subvalvular secundária a perfuração ou laceração dos folhetos VT ou como resultado da aderência de porções redundantes do eletrocateter aos folhetos e tecido subvalvular. Relatamos 2 casos de ET grave, com etiologia e abordagem terapêutica diferente. O primeiro causado pela perfuração do folheto valvular pelo eletrocateter, resolvido cirurgicamente e o outro, como consequência da adesão de uma ansa formada pelo eletrocateter e o aparelho subvalvular tratado medicamente.
Tricuspid stenosis (TS) is an uncommon complication of transvenous ventricular pacemaker implantation, with few cases reported in the literature. The mechanisms described are obstruction of right ventricular inflow by tricuspid vegetations (endocarditis), multiple pacemaker leads and tricuspid valve (TV) fibrosis secondary to perforation or laceration of the TV leaflets, or adherence between redundant portions of the lead and valvular and subvalvular tissue. We report two cases of severe TS, with different etiologies and management: one caused by leaflet perforation, resolved surgically, and the other secondary to fusion between a loop of the pacemaker lead and the subvalvular apparatus, which was treated medically.
Apresentamos o caso clínico de um homem de 62 anos de idade, portador de pacemaker definitivo modo VVIR desde 1993, após internamento por bloqueio aurículo ventricular completo sintomático. Em 1997 foi submetido a substituição do gerador por inflamação/necrose da bolsa de pacemaker, sem sinais de infeção ou endocardite. Em 2002 foi novamente readmitido pelo mesmo quadro clínico, a impor extrusão do gerador implantado à direita com manutenção do eletrocateter ventricular e implantação de novo sistema à esquerda atualizado para modo DDDR. Em outubro de 2007, recorreu ao serviço de urgência por clínica de dispneia de esforço classe iii/iv NYHA, angor classe ii CCS, edemas dos membros inferiores, astenia e anorexia com 3 meses de evolução. O exame físico revelou distensão venosa jugular, sopro sistólico grau 2/6 e diastólico de baixa frequência, hepatomegalia e edema de membros inferiores com extensão para a parte superior da coxa. O eletrocardiograma revelou fibrilação auricular intercalada com ritmo de pacemaker ventricular. A investigação laboratorial revelou aumento dos níveis de γ-GT, fosfatase alcalina e do BNP.
A radiografia de tórax mostrou cardiomegalia e um anel redundante de um dos eletrocateteres ventriculares (figura 1A). O ecocardiograma transtorácico mostrou derrame pericárdico circunferencial de médio volume, dilatação grave da aurícula direita e VT fribrosada com padrão estenótico (área funcional de 0,6cm2, gradiente máximo e médio de 16mmHg e 13mmHg) e regurgitação ligeira, sem outras alterações relevantes (figura 2A e B). Foi realizado ecocardiograma transesofágico para melhor caracterização morfológica da VT que revelou espessamento marcado e mobilidade reduzida, dos folhetos valvulares e do aparelho subvalvular a condicionar limitação severa da amplitude de abertura (gradiente médio de 12mmHg) e regurgitação ligeira. O cateterismo cardíaco mostrou diminuição da amplitude de abertura da VT, com gradiente medio de 8mmHg, regurgitação tricuspide grau II/IV com pressões na artéria pulmonar (34mmHg) e no ventrículo direito normais (figura 1B). A coronariografia evidenciou coronária direita com doença significativa no segmento proximal, sem outras alterações relevantes. Transferido para centro de Cirurgia Cardiotorácica, onde foi submetido a valvulotomia da VT (comissurectomia entre o folheto antero-septal e postero-septal) e bypass de safena para a coronária direita. Durante a cirurgia foi constatada dilatação grave da aurícula direita, VT severamente deformada, com amplitude de abertura muito reduzida e fibrose acentuada no local de passagem dos eletrocateteres, sendo que um dos eletrocateteres perfurava o folheto septal da válvula. O Sistema de pacemaker endocárdico foi substituído por pacemaker epicárdico. O restante internamento decorreu sem intercorrências e 15 meses após a cirurgia encontra-se assintomático e apresenta ecocardiograma com ET (gradiente médio de 3mmHg) e regurgitação moderada.
Apresentamos o caso de uma mulher de 80 anos, portadora de pacemaker definitivo modo VDD desde 2001 por doença do tecido de condução sintomática que foi submetida a substituição do gerador por exaustão do mesmo em fevereiro de 2009. Em agosto de 2010 recorreu ao serviço de urgência por quadro clínico com 2 meses de evolução e em agravamento progressivo de dispneia de esforço classe iii/iv NYHA, ortopneia, edemas, dor abdominal de predomínio nos quadrantes direitos, astenia e anorexia. Ao exame objetivo apresentava distensão venosa jugular, cianose facial, edemas generalizados, hepatomegalia, pulso periférico irregular e rápido, auscultação pulmonar sem sinais de estase, sons cardíacos hipofonéticos e sopro mesossistólico aórtico e diastólico de baixa frequência no bordo esternal esquerdo. O eletrocardiograma mostrou fibrilação auricular com resposta controlada alternando com ritmo de pacemaker ventricular. A radiografia de tórax revelou cardiomegalia, apagamento dos fundos de saco e um anel redundante do eletrocateter ventricular ao nível do aparelho valvular tricúspide, sem outras alterações relevantes (figura 3A). No estudo analítico foi detetada ligeira elevação do BNP e de γ-GT, sem outras alterações dignas de registo. O ecocardiograma revelou folhetos da VT espessados e eletrocateter ventricular aderente ao aparelho valvular e subvalvular a condicionar limitação grave da sua amplitude de abertura (gradientes máximo e médio de 15 e 10mmHg e área funcional estimada em 0,6 cm2) (figura 4), esclerose aórtica e derrame pericárdico de médio volume ao nível da parede livre do ventrículo esquerdo (1,6cm) e de grande volume na parede do ventrículo direito (2,4-2,1cm) com ligeiro colapso diastólico do ventrículo direito (figura 3B). O cateterismo cardíaco direito mostrou anormal posicionamento do eletrocateter de pacemaker no seu percurso valvular tricúspide e VT deformada, com abertura excêntrica de amplitude reduzida e gradiente médio 11mmHg) (figura 5). O cateterismo esquerdo revelou válvula aórtica deformada e calcificada com gradiente máximo ventrículo-aórtico de 13mmHg, função ventricular esquerda conservada – fração de ejeção de 62%) e coronárias com doença aterosclerótica parietal calcificada sem evidência de estenoses significativas. Transferida para centro de Cirurgia Cardiotorácica, onde após avaliação foi decidido efetuar pericardiocentese evacuadora associada a optimização da terapêutica médica. Dada a evolução sintomática favorável foi proposta terapêutica conservadora com posterior reavaliação da necessidade de intervenção cirúrgica. Seis meses após a alta a doente encontra-se em classe funcional ii/iv NYHA e apresenta ecocardiograma com ET severa e estenose aórtica ligeira, sem derrame pericárdico.
A) Radiografia de tórax a mostrar cardiomegalia, apagamento dos fundos de saco e um anel redundante do eletrocateter ventricular ao nível do aparelho valvular tricúspide. B) Ecocardiograma em modo B a evidenciar derrame pericárdico de médio volume ao nível da parede livre do ventrículo esquerdo (1,6cm) e de grande volume na parede do ventrículo direito (2,4-2,1cm).
A ET é uma complicação rara da implantação de pacemakeres transvenosos, com poucos casos relatados na literatura. Os mecanismos descritos são a obstrução do fluxo de entrada do ventrículo direito por vegetações na VT (endocardite) ou por múltiplos eletrocateteres e a fibrose secundária a traumatismo mecânico do eletrocateter1–4. O traumatismo da VT pelo sistema de estimulação endocárdico pode ser induzido por perfuração, dilaceração ou de adesão de ansas redundantes ao tecido valvular. Esta lesão endotelial promove uma sequência de eventos locais com inflamação crónica, fibrose, calcificação e eventualmente estenose valvular. Um processo semelhante tem sido sugerido num estudo anátomo-patológico de pacientes portadores de CDI5. Existem 3 relatos de casos anteriores em que a ET foi secundária a fibrose induzida pela perfuração do folheto, e 4 outros casos, como resultado da adesão de ansas redundantes do eletrocateter. Na maioria destes casos, a ET associou-se a passagem de mais do que um eletrocateter pela VT e o tempo decorrido entre a primeira implantação de sistema de pacemaker e o desenvolvimento dos sintomas variou entre 7 a 33 anos2. A abordagem terapêutica consistiu no tratamento médico em 3 casos, a substituição valvular em 2, a plastia cirúrgica em um e a angioplastia com balão em outro4. No primeiro caso por nós apresentado, a estenose tricúspide foi induzida por perfuração do folheto, o diagnóstico ocorreu 14 anos após a implantação do pacemaker e foi controlada com sucesso com valvuloplastia cirúrgica. No segundo caso, a estenose resultou da adesão de ansas redundantes do eletrocateter ao sistema valvular tricúspide, foi diagnosticada 9 anos após a implantação e foi tratada medicamente.
ConclusõesA ET associada a eletrocateter de pacemaker é uma complicação crónica da implantação de pacemaker que apesar de pouco descrita, pode ocorrer com mais frequência do que é suspeitado clinicamente e poderá até ser mais comum no futuro, devido ao aumento do número e da utilização a longo prazo de dispositivos cardíacos. O seu diagnóstico deve ser considerado em qualquer paciente com eletrocateteres endocárdicos e sinais ou sintomas de insuficiência cardíaca direita. A abordagem terapêutica deve ser analisada caso a caso como resultado de decisão multidisciplinar tendo em conta a opinião do cardiologista, do cirurgião bem como a vontade do doente.
Conflito de interessesOs autores declaram não haver conflito de interesses.