A ecocardiografia permanece a modalidade de primeira linha para o diagnóstico da miocardiopatia hipertrófica (MCH). Contudo, a ressonância magnética cardiovascular (RMC) tem vindo a assumir progressivamente papel relevante na caracterização das suas manifestações fenotípicas, consequência da elevada resolução espacial, ausência de limitação de janela e capacidade de informação tecidular, expressando o que tem sido designado como caracterização histológica in vivo1. Em particular na MCH, permite obter informação fiável sobre aspetos em que a ecocardiografia se pode apresentar insuficiente, como a espessura dos segmentos ventriculares ou a deteção de aneurismas apicais, que têm importância prognóstica, assim como avaliar o grau de regurgitação e anomalias do seu aparelho subvalvular mitral. A sequência de realce tardio (RT) após contraste paramagnético é uma das áreas de maior interesse, encontrando‐se validada para a deteção e quantificação da necrose miocárdica2, mas oferecendo também importante informação na caraterização das doenças do miocárdio, nomeadamente através dos seus padrões e de distribuição segmentar3.
Na MCH, o seu valor tem sido objeto de intenso debate. Na realidade, a fibrose miocárdica que ocorre na MCH e constitui uma sua alteração paradigmática, é histopatologicamente difusa, quer na sua forma intersticial quer na de substituição, sendo considerada um substrato subjacente à génese de taquiarritmias e de morte súbita, complicação que, embora pouco frequente entre a população global de doentes com MCH, atinge subgrupos ainda incompletamente identificados4. De facto, os marcadores de risco atualmente propostos têm uma acuidade ainda imprecisa no que respeita à identificação dos doentes em risco de morte súbita4,5.
O RT identificado pela RMC na MCH, expressando fundamentalmente uma distribuição focal da fibrose, e que apresenta variados e múltiplos padrões, encontra elevada prevalência na população de doentes, descrita com valores de 56‐67%, de acordo com grandes séries publicadas6–8, estando também presente em alguns portadores da mutação. Não constituindo a presença de RT um dos critérios de risco propostos na atualidade como marcadores de risco de morte súbita, é, contudo, aceite como modificador potencial de risco, sobretudo se observado em extensas áreas do miocárdio4. Qual a evidência disponível no que respeita ao significado e ao impacto clínico do RT na MCH?
Em primeiro lugar, a sua validade como expressão da fibrose. O RT foi inicialmente validado em estudo histopatológico post‐mortem, de um doente com MCH em fase de end‐stage, que revelava extensas áreas de fibrose por estudo histológico, observando‐se que o contraste se distribuía nas áreas de fibrose e aumento do colagénio, com uma aproximação evidente entre a imagem de RMC e a histológica. Contudo, este caso com grave disfunção ventricular não era representativo da maioria dos doentes presentes na clínica9. A caracterização dos mecanismos histológicos precisos subjacentes ao RT observado em doentes com função preservada foi posteriormente dificultada pela ausência de MCH em modelo animal. Recentemente, Moravsky et al., utilizando material miocárdico proveniente de miectomia em doentes com MCH obstrutiva, revelou que o RT reflete com fiabilidade a fibrose miocárdica total10, quando usados métodos apropriados de análise, sendo, contudo, ainda a avaliação insuficiente para separar a fibrose de substituição da intersticial (com expansão da matriz extracelular), que alguns estudos sugerem terem diferentes implicações na génese das arritmias. É de salientar as dificuldades potenciais que se colocam à utilização do RT na caracterização da fibrose miocárdica da MCH, nomeadamente não só o facto de esta situação evidenciar os dois tipos de fibrose, como já mencionado, mas também o facto de apresentar áreas de deposição focal do contraste, junto de outras em que a distribuição se faz difusamente, ultrapassando os limites da resolução da RMC.
Já no que respeita ao significado clínico, estudos iniciais revelaram que o RT se encontra ligado ao substrato eletrofisiológico, associando‐se a sua presença à ocorrência de arritmias ventriculares na eletrocardiografia de Holter11. Contudo, a relação com o prognóstico tem‐se revelado controversa. A presença de RT associou‐se a risco acrescido de morte em dois grandes estudos de doentes assintomáticos ou pouco sintomáticos. Bruder et al. encontraram risco independente de morte súbita, que foi superior ao dos fatores clássicos6. Já num estudo de O’Hanlon et al., a presença de RT apenas se relacionou com um end‐point combinado de desfechos adversos, mas o risco era independente e aumentava com a extensão do RT7. A elevada prevalência do RT na MCH, em contraponto à relativa raridade da morte súbita na população em geral, tem intensificado o debate, sendo apontado constituir um marcador insuficientemente preciso para indicar a necessidade de implantação preventiva de CDI.
Num estudo recente envolvendo 1300 doentes com MCH, Chan et al. não encontraram relação entre a presença de RT e insuficiência cardíaca, mortalidade cardiovascular ou morte súbita. Contudo, a extensão de RT relacionou‐se de forma linear com os mesmos indicadores prognósticos e constituiu variável independente de morte súbita, mesmo após controlo para os marcadores de risco clássicos. A massa de RT ≥15% da massa miocárdica associou‐se a um risco três vezes superior de morte súbita. Estes achados abrem portas à possibilidade de reclassificação do risco arritmogénico, expresso na extensão da fibrose miocárdica12.
De ressaltar que outros trabalhos sugeriram não se relacionar a extensão do RT diretamente com o grau de disfunção ventricular, podendo ocorrer graus semelhantes em ventrículos com função ventricular no limite e nos que apresentam disfunção grave, em fase de end‐stage13.
No presente trabalho de Caetano et al.14, publicado neste número da RPC, apesar das questões limitativas decorrentes da dimensão da amostra, do recrutamento de conveniência da população (com os viés relativos à referenciação para RMC), da idade mais avançada dos doentes relativamente a outras séries (com possíveis comorbilidades associadas) e a sua relativa heterogeneidade, a presença de RT associou‐se a formas hemodinâmicas e morfológicas mais expressivas ou avançadas, assim como a fatores de risco clássicos, o que vai ao encontro da convicção atual expressa em trabalhos de larga expressão populacional de que a fibrose focal, identificada pelo RT por RMC, tem importância clínica.
É possível que os novos métodos de estudo da fibrose pela RMC, ao tornar possível mapear e potencialmente quantificar a fibrose difusamente distribuída15, possam acrescentar elementos com valor prognóstico acrescido, participando na compreensão dos mecanismos e na decisão clínica mais rigorosa e individualizada.
Estas perspetivas sugerem novos caminhos da investigação desta entidade ainda enigmática, que traz desafios estimulantes e para a qual se esperam respostas inovadoras em áreas que vão da genética à biologia celular e à interação ambiental na sua relação com o fenótipo clínico e o prognóstico.
Conflito de interessesOs autores declaram não haver conflito de interesses.