Trichosporon beigelii é um fungo não patogênico, que, entretanto, pode se tornar um agente oportunista de infeções disseminadas e potencialmente fatais, especialmente em pacientes imunossuprimidos. Na literatura, foram relatados apenas 11 casos de endocardite infecciosa (EI) por T. beigelii, a maioria era de indivíduos imunocompetentes, cujo único fator de risco era a presença de prótese valvar. O maior intervalo registrado entre a cirurgia e a endocardite foi de oito anos. No presente estudo, será relatado um caso de endocardite de valva protética por Trichosporon beigelii em paciente imunocompetente, 11 anos após troca valvar mitral. Como nos demais relatos, a baixa suspeição clínica e hemoculturas negativas levaram ao atraso no início da terapia antifúngica e cirurgia cardíaca. Devido à alta gravidade e mortalidade da endocardite por Trichosporon beigelii, este relato de caso sugere que deve ser considerada nos casos de infeção de valva protética, mesmo com hemoculturas negativas, independentemente do tempo da intervenção.
Trichosporon beigelii is a non‐pathogenic fungus that can however become an opportunist agent of disseminating and potentially fatal infections, especially in immunocompromised patients. In the literature, there are only 11 published cases of infective endocarditis due to T. beigelii. Most of these cases involved immunocompetent individuals and the main risk factor was the presence of a prosthetic valve. The longest interval between surgery and endocarditis was eight years. In the present study, a case of prosthetic valve endocarditis due to T. beigelii is reported in an immunocompetent patient 11 years after mitral valve replacement. As with similar cases, low clinical suspicion and negative blood cultures delayed the beginning of antifungal therapy and cardiac surgery. Considering the high mortality and severity of T. beigelii endocarditis, it should be considered when there is a prosthetic valve infection with negative blood cultures, irrespective of the time elapsed since the previous surgery.
O Trichosporon beigelii é considerado um fungo não patogénico e causador de infeção superficial como a piedra branca1. A infeção sistémica é rara, mas muito grave, com mortalidade de até 80%2.
Onze casos de endocardite infecciosa (EI) por Trichosporon beigelii foram relatados até o momento1–11. A maioria não apresentava condição imunossupressora, tinha como único fator de risco a presença de prótese valvar. Desses pacientes, nove apresentaram endocardite por esse fungo em valva protética1,3,5–11, cinco em prótese valvar mitral1,7–9,11.
O maior intervalo descrito na literatura entre intervenção cirúrgica e EI em prótese valvar foi de oito anos3. No presente estudo, será relatado um caso de endocardite de prótese valvar por esse fungo, em paciente imunocompetente, após 11 anos de troca valvar.
Relato de casoPaciente masculino, 57 anos, portador de prótese biológica mitral havia 11 anos, foi admitido com história de febre alta e calafrios nos últimos 15 dias. Negou uso de drogas ilícitas, diabetes mellitus, doença neoplásica e outras condições imunossupressoras. Ao exame físico encontrava‐se febril (temperatura axilar de 38,4°C), pressão arterial de 125 x 78mmHg e frequência cardíaca de 118 batimentos por minuto. Ao exame cardiovascular apresentava ritmo cardíaco regular, bulhas normofonéticas e significativo sopro sistólico em foco mitral. Demais sistemas sem alterações.
Exames laboratoriais com leucocitose discreta, sem eosinofilia. Ao ecocardiograma transtorácico foi evidenciada imagem sugestiva de vegetação em prótese valvar biológica, confirmada através do exame transesofágico (Figura I). Após coletas de hemoculturas, foi iniciado esquema antimicrobiano empírico. Paciente evoluiu com pioria do quadro infeccioso e instabilidade hemodinâmica. Com isso, foi submetido à troca da valva mitral biológica por prótese metálica. A vegetação aderida à prótese foi enviada para a cultura e, após sua análise macroscópica (Figura 2), foi sugerido associar Anfotericina B. No sexto dia de pós‐operatório houve o crescimento de Trichosporon beigelii na cultura da válvula e, como houve pioria clínica, o antifúngico foi trocado por Voriconazol. Contudo, o paciente evoluiu com falência de múltiplos órgãos, seguida de óbito no 13.° dia após a intervenção cirúrgica.
Na literatura foram descritos apenas 11 casos de EI por esse fungo1−11. Nos nove relatos em valva protética1,3,5–11, o intervalo médio entre a cirurgia cardíaca e o diagnóstico de EI foi de quatro anos, variou de três meses a oito anos. O presente caso se destaca por ter transcorrido 11 anos após a cirurgia de troca valvar, foi o mais longo período já registrado até o momento.
Não há achados laboratoriais típicos da trichosporonemia1,3 e este é um fator de atraso no diagnóstico de uma condição tão grave quanto essa. Eosinofilia foi observada em apenas quatro dos 11 casos relatados3,5,6,8 e não foi verificada no caso em questão.
Na trichosporinose sistémica as hemoculturas são frequentemente negativas2, porém em sete casos de EI protética essas culturas revelaram a presença do Trichosporon2,3,5,7,9–11. Naqueles com hemoculturas negativas, as culturas de outros sítios confirmaram a infeção1,4,6,8. O mesmo ocorreu no presente caso, no qual o fungo foi isolado apenas através da cultura da vegetação valvar.
Atualmente o tratamento de escolha de endocardite por Trischosporon spp. é a troca valvar associada à terapia antifúngica11. Na maioria dos casos relatados foi usada Anfotericina B 2,10,11. Contudo, alguns autores sugerem o emprego de outros antifúngicos, como o Voriconazol1. A análise da eficácia do tratamento antifúngico é prejudicada devido à gravidade dos pacientes com fungemia por T. beigelii8, com mortalidade que ultrapassa 80%1. Dos casos registrados na literatura, apenas quatro foram considerados curados durante a internação4,7,9,11 e oito morreram ao longo de quatro anos de acompanhamento médico2–7,9,10.
ConclusãoDos raros casos de EI de valva protética por Trichosporon beigelii, esse foi o que apresentou maior intervalo entre a cirurgia de troca valvar e a infecção por esse fungo.
Como em todos os relatos, a baixa suspeição clínica levou ao atraso no início da terapia apropriada. Devido à alta gravidade e mortalidade da endocardite infeciosa por Trichosporon beigelii, ela deve ser considerada nos casos de infeção de valva protética com hemoculturas negativas, independentemente do tempo da intervenção cirúrgica prévia.
Conflitos de interesseOs autores declaram não haver conflitos de interesse.