A cardiomiopatia não compactada isolada do ventrículo é uma doença rara, classificada como uma cardiomiopatia genética primária. A doença é caracterizada por insuficiência cardíaca, embolia sistémica e arritmias ventriculares. O diagnóstico é estabelecido pelo ecodopplercardiograma. Relata‐se o caso de adulto jovem assintomático, sem história prévia de cardiopatia, que realizou avaliação pré‐operatória para cirurgia ortopédica de baixo risco. Eletrocardiograma apresentou bloqueio do ramo esquerdo, que suscitou investigação complementar com ecodopplercardiograma, angiotomografia do tórax e ressonância cardíaca. Concluiu‐se pelo diagnóstico de cardiopatia não compactada isolada do ventrículo e embolia pulmonar. Discutem‐se aspetos da avaliação pré‐operatória em pacientes de baixo risco cirúrgico.
Isolated left ventricular non‐compaction is a rare disease classified as a primary genetic cardiomyopathy and is characterized by heart failure, systemic embolism and ventricular arrhythmias. The diagnosis is established by Doppler echocardiography. We report the case of an asymptomatic young adult, with no history of heart disease, who underwent preoperative assessment for low‐risk orthopedic surgery. The electrocardiogram showed left bundle branch block, which prompted further investigation with Doppler echocardiography, cardiac computed tomography angiography and cardiac magnetic resonance imaging. A diagnosis of isolated left ventricular non‐compaction and pulmonary embolism was made. Some aspects of preoperative assessment in low‐risk surgical patients are discussed.
A cardiomiopatia não compactada isolada do ventrículo (CNCV) foi descrita pela primeira vez por Chin et al., em 19901. É uma doença rara, classificada como uma cardiomiopatia genética primária pela American Heart Association2. A fisiopatologia da CNCV é atribuída à interrupção durante a vida intrauterina, da compactação da trama que constitui o miocárdio primordial ou fetal3.
A prevalência da CNCV na população geral não está estabelecida. Os dados existentes são obtidos principalmente de pacientes submetidos ao ecodopplercardiograma. Uma revisão realizada na Suíça identificou 34 casos, o que correspondeu a 0,014% de todos os ecocardiogramas realizados em quinze anos4. Entre os pacientes com insuficiência cardíaca (IC), a prevalência de CNCV foi estimada entre 3‐4%5. A CNCV parece acometer principalmente pacientes do sexo masculino, conforme demonstrado nas quatro principais séries que avaliaram pacientes com CNCV1,4,6,7.
A história familiar de não compactação variou entre 12‐50% em série de relatos de casos8. A herança autossómica dominante é mais comum que a herança ligada ao cromossoma X ou herança autossómica recessiva9. Há um crescente reconhecimento de uma considerável sobreposição nos loci genéticos implicados na origem das principais cardiomiopatias. O compartilhamento foi encontrado para diferentes fenótipos cardiomiopáticos, incluindo fenótipos sobrepostos para CNCV e cardiomiopatia hipertrófica10. Apesar de a sobreposição genética entre a CNCV e as cardiomiopatias hipertróficas, a CNCV ocorre mais comumente associada às doenças congênitas cardíacas e à síndrome de Wolf‐Parkinson‐White11.
A avaliação pré‐operatória é uma janela de oportunidade para o clínico identificar condições silenciosas e otimizar o tratamento de doenças cardiovasculares prévias. Nos últimos anos, objetivando reduzir desperdícios de recursos com exames, diretrizes de sociedades médicas estabeleceram protocolos para a solicitação de exames pré‐operatórios. Editorial publicado pela Cleveland Clinic12, que se encontra em conformidade com a II diretriz de avaliação pré‐operatória da Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC)13, questiona o valor do eletrocardiograma (ECG) em cirurgias de baixo risco em indivíduos assintomáticos.
Relato do casoPaciente masculino, 35 anos, assintomático, com rutura parcial do tendão calcâneo esquerdo, causada por acidente em prática desportiva. Assintomático cardiovascular. Sem história prévia de cardiopatia ou uso de medicamentos, nega tabagismo. Encaminhado pelo cirurgião para avaliação pré‐operatória. Ao exame físico, apresentou pressão arterial de 134x78mmHg; frequência cardíaca de 89bpm; sem alterações dignas de nota. Aparelho móvel de imobilização em membro inferior esquerdo (MIE). Telerradiografia do tórax normal, assim como hemograma completo, glicemia, creatinemia, ureia e INR dentro dos valores de referência. Foi realizado ECG, que mostrou bloqueio do ramo esquerdo (BRE) de terceiro grau. Realizado ecocardiograma com Doppler tecidual (EDT), com fração de ejeção do ventrículo esquerdo (FEVE) de 61%; volume do átrio esquerdo indexado (VAE‐I) de 22mL/m2; e massa do ventrículo esquerdo indexada (MVE‐I) de 94,9g/m2. Alterações do relaxamento do VE (E’6cm/s) e aumento das pressões de enchimento (E/E’=16). O EDT mostrou uma hipertrabeculação da parede lateral média e septal. (Figura 1). Como o diagnóstico diferencial da CNCV inclui outras formas de miocardiopatia, o paciente foi encaminhado para angiotomografia coronariana que mostrou sinais de embolia pulmonar bilateral (Figura 2). Dosagem de D‐Dímero (2310ng/mL) O eco Doppler do sistema venoso do MIE mostrou as veias poplítea e tibial posterior, com material hipoecogénico no seu interior ocluindo parcialmente a luz do vaso. Foi submetido à ressonância magnética cardíaca (Figura 3), que mostrou hipertrofia do VE e acentuação do trabeculado subendocárdico médio‐apical, estimado em 22% da massa miocárdica total; presença de realce tardio do miocárdio compatível com fibrose miocárdica anterosseptal medial e basal inferosseptal medial; disfunção ventricular esquerda global moderada, com FEVE estimada de 38%, confirmando o diagnóstico de CNCV.
Ecocardiograma – corte apical quatro câmaras, onde se observa a disfunção sistólica global do ventrículo esquerdo mais localizada na região ântero‐lateral média e apical. Na mesma região, observa‐se miocárdio não compactado subendocárdio mais proeminente que a região endocárdica subepicárdica.
Foi realizado ECG ambulatorial contínuo pelo sistema Holter de 24 horas, que mostrou episódio de taquicardia supraventricular paroxística e extrassístoles ventriculares. Não houve sintomas durante a monitorização. (Figura 4)
DiscussãoA CNCV é uma doença rara, caracterizada pelo excesso de trabeculações na parede ventricular e processos intratrabeculares que se comunicam com a cavidade do ventrículo esquerdo. Na maioria dos casos, a doença é diagnosticada na infância, mas o aparecimento dos sintomas pode, em alguns casos, ser atrasado até a idade adulta. A incidência de CNCV é estimada em 0,05% na população adulta2.
A não compactação, geralmente, ocorre associada a outras doenças congénitas como defeitos atriais e septais. Por outro lado, a compactação isolada, a qual ocorre na ausência de outras doenças congênitas, é uma apresentação mais rara14.
Critérios diagnósticos para a CNCV, estabelecidos por Jenni et al., permitem a diferenciação da CNCV de outras formas de hipertrofia ventricular esquerda. Os critérios são: (1) a presença de, pelo menos, quatro trabéculas e/ou recessos intratrabeculares; (2) a presença de fluxo de sangue nos recessos intratrabeculares pelo Doppler colorido; (3) os segmentos do miocárdio não compactado envolvem o ápice e a porção inferior e média da parede do VE; (4) tipicamente, mostram uma estrutura com duas camadas, com uma razão maior que dois entre a camada subendocárdica não compactada e a camada subepicárdica compactada e; (5) a ausência de anormalidades cardíacas coexistentes15.
O diagnóstico de CNCV na população adulta é sempre atrasado devido à similaridade da doença com situações clínicas mais comuns, como cardiopatia hipertensiva na fase dilatada, miocardiopatia infiltrativa, miocardiopatia hipertrófica apical e doença endomiocárdica eosinofílica. O diagnóstico precoce da CNCV é importante, devido ao alto risco desses pacientes apresentarem IC, arritmias ventriculares fatais e embolização6.
O prognóstico desses pacientes é ruim e o estágio final da IC é tratado com transplante cardíaco. As arritmias ventriculares, com risco de vida, têm indicação de implante de desfibrilador. Os principais mecanismos de morte envolvidos na CNCV são a morte súbita e a IC refratária16.
O paciente aqui relatado, apesar de se encontrar assintomático, é classificado em estágio B para IC (ACCF/AHA) por apresentar alterações estruturais e funcionais (disfunção sistólica) cardíacas. O paciente encontra‐se em alto risco para desenvolver IC sintomática e, por isso, o tratamento deve ser iniciado precocemente17.
A embolia pulmonar diagnosticada nesse paciente parece estar relacionada à imobilização do MIE, não tendo relação com a CNCV, que tem alto risco para tromboembolismo arterial (acidente vascular encefálico)18.
Médicos cardiologistas são convocados de rotina para avaliar o risco de pacientes antes de uma cirurgia. O objetivo da avaliação pré‐operatória é identificar condições subdiagnosticadas que podem aumentar o risco de morbidade e morte peroperatória e, então, sugerir estratégias que possam reduzir tal risco19,20. A avaliação pré‐operatória é sempre multifatorial e fatores de risco para eventos cardíacos no pós‐operatório incluem o tipo de cirurgia e fatores do próprio paciente21. Autores recomendam que o ECG não seja feito de rotina, para pacientes com baixo risco cardíaco que irão se submeter a um procedimento cirúrgico de baixo risco. Nestes pacientes, a realização do ECG poderia atrasar a cirurgia desnecessariamente, aumentando os custos do procedimento e gerando mais ansiedade no paciente12. Em dissonância, algumas diretrizes abordam a possibilidade de se solicitar um ECG no pré‐operatório, mas são, na sua maioria, baseados em evidências de baixo nível e opinião de especialistas22.
A SBC recomenda que a realização de ECG no pré‐operatório deva ser criteriosa e considera que o ECG de rotina em indivíduos assintomáticos, submetidos a procedimento de baixo risco, tenha grau de recomendação III e nível de evidência C13.
Neste caso, o ECG, feito por solicitação do cirurgião, mostrou um BRE do terceiro grau e, como existem evidências de que o BRE tem um significado clínico prognóstico mesmo em indivíduos assintomáticos ou sem doença cardíaca, decidiu‐se pela indicação do EDT23, que levou ao diagnóstico de CNCV.
ConclusãoO ECG é uma ferramenta de baixo custo e fácil acesso, que pode ser útil na identificação de doenças miocárdicas e arritmias. O seu emprego de rotina no risco pré‐operatório pode ser importante na identificação de condições que se encontram assintomáticas e podem agravar o risco peri‐operatório. No presente caso, o reconhecimento precoce da CNCV, condição que pode levar a IC, eventos trombo‐embólicos, taquiarritmias ventriculares e morte, pode oferecer um melhor cuidado ao paciente. As recomendações da diretriz da SBC para sua não realização de rotina estão embasadas na opinião de especialistas, devendo essa questão ser respondida de forma definitiva, por estudos de metodologia robustos.
Responsabilidades éticasProteção de pessoas e animaisOs autores declaram que para esta investigação não se realizaram experiências em seres humanos e/ou animais.
Confidencialidade dos dadosOs autores declaram que não aparecem dados de pacientes neste artigo.
Direito à privacidade e consentimento escritoOs autores declaram que não aparecem dados de pacientes neste artigo.
Fontes de financiamentoNão houve financiamentos externos para o presente artigo.
Vinculação académicaEste artigo é parte da linha de pesquisa em insuficiência cardíaca pelo curso de Pós‐Graduação em Ciências Cardiovasculares da Universidade Federal Fluminense.
Conflito de interessesOs autores declaram não haver conflito de interesses.