A ecocardiografia é o método de imagem mais usado na prática clínica diária da cardiologia moderna, dada a sua disponibilidade, portabilidade, ausência de efeitos biológicos deletérios relevantes e menor custo quando comparada com a maioria das outras modalidades de imagem. A evolução tecnológica das últimas décadas, com a introdução de novos e cada vez mais complexos métodos de avaliação ecocardiográfica, alargou ainda mais as indicações para a realização de um ecocardiograma; no entanto, conduziu igualmente ao aumento da informação produzida pelo exame e à maior complexidade da sua interpretação com potencial geração de erros de avaliação por operadores com menor experiência. De modo a assegurar a qualidade e a segurança dos exames minimizando os riscos para os pacientes e a necessidade de duplicação de exames, é necessário uniformizar a prática da ecocardiografia em Portugal. O presente documento pretende contribuir para este esforço, enumerando‐se competências a adquirir e procedimentos a adotar de modo a garantir operadores e laboratórios qualificados.
Echocardiography is the most widely used imaging technique in modern cardiological clinical practice, since it is readily available, portable and safe, and provides a comprehensive morphological and functional assessment at low cost compared to other imaging modalities. Recent technological advances have introduced new echocardiographic techniques and widened the clinical applications of echocardiography. However, these developments have also led to an increase in information, rendering interpretation of the data provided by the exam more complex; this may result in assessment errors by less experienced operators. Standardization of procedures and training in echocardiography is therefore essential to ensure quality and safety for patients. The present document aims to contribute to this end, recommending quality requirements for operators and echocardiography laboratories in Portugal.
A ecocardiografia é o método de imagem mais usado na prática clínica da cardiologia, dada a ampla disponibilidade e a avaliação completa (com informação morfológica, funcional e hemodinâmica) que proporciona, em tempo real e a baixo custo. É assim o método de primeira linha na abordagem de grande parte das patologias cardiovasculares, com impacto real na estratégia diagnóstica e terapêutica subsequentes1,2. Mesmo o exame ecocardiográfico básico implica o recurso a diferentes modos de imagem, que fornecem dados complementares. As recentes evoluções tecnológicas permitem aumentar ainda mais a quantidade de informação e as indicações do exame. Nesse sentido, é fundamental garantir operadores e laboratórios qualificados, capazes de executar e interpretar corretamente o exame.
ObjetivoContribuir para a melhoria e uniformização da prática da ecocardiografia em Portugal, enumerando‐se as competências a adquirir e os procedimentos a adotar por operadores e laboratórios que se entende dever estar presentes para se assegurar a qualidade e a segurança dos exames ecocardiográficos. Serão abordados os diferentes componentes considerados fundamentais para a qualidade final do exame: o exame ecocardiográfico (execução e relatório); o laboratório de ecocardiografia e o operador.
Este documento limita‐se à ecocardiografia transtorácica (ETT) de adultos. A ecocardiografia transesofágica (ETE), pediátrica (ETT e ETE), de sobrecarga (de esforço e farmacológica), bem como a perioperatória de cirurgia cardíaca e a periprocedimentos de intervenção percutânea (ETT e ETE), são genericamente excluídas dessas normas. Dada a sua especificidade e complexidade, merecerão documentos separados. Do mesmo modo, embora alguns dos pontos abordados possam ser mais aplicáveis à prática em meio hospitalar, os princípios gerais definidores de qualidade enunciados devem ser igualmente aplicados à prática de ecocardiografia de ambulatório extra‐hospitalar, não obstante a eventual necessidade de pequenas adaptações a esta realidade.
A regulamentação legal da execução de atos médicos, como a ecocardiografia, não é competência das sociedades científicas, pelo que estas recomendações não poderão sobrepor‐se à legislação em vigor. No entanto, o presente documento foi apresentado e discutido com o colégio da especialidade de Cardiologia da Ordem dos Médicos (OM) tendo obtido concordância formal e explícita do mesmo.
O exame ecocardiográficoO exame ecocardiográfico transtorácico (ETT) envolve obrigatoriamente uma combinação integrada de imagens bidimensionais, Doppler espectral pulsado e contínuo, Doppler codificado em cor e, geralmente, modo M e Doppler tecidular3. A ecocardiografia tridimensional, ainda em fase de consolidação clínica, é opcional, mas deve ser utilizada de acordo com a disponibilidade e a experiência locais, quando indicada4,5.
Um exame transtorácico completo inclui a avaliação morfológica e funcional de todas as câmaras cardíacas, válvulas e grandes vasos, utilizando diferentes planos de imagem. Isto implica medições sobre as imagens bidimensionais, medições sobre imagens de Modo M e de Doppler espectral e tecidular, a quantificação da função sistólica e diastólica, o cálculo dos orifícios valvulares estenóticos e regurgitantes e estimativas de pressões de enchimento e da pressão arterial pulmonar3.
Embora a sequência em que a informação é adquirida possa variar de acordo com as práticas locais e as preferências3,6,7, há um conjunto mínimo de imagens em movimento e fixas, nos diferentes planos, que são requeridas para um ETT completo de modo a ser possível produzir um relatório final com qualidade (Tabela 1).
Conjunto mínimo de imagens requeridas para um ecocardiograma transtorácico completo
Plano | Tipo de imagem |
---|---|
Paraesternal eixo longo 2D+Modo M + Doppler‐cor | Clip em movimento |
Paraesternal eixo curto (base com V.Mitral e segmentos médios com músculos papilares) 2D+Modo M + Doppler‐cor Velocidades transpulmonares Velocidades transtricúspides | Clip em movimento Imagem estática Imagem estática |
Apical 4‐câmaras 2D+Doppler‐cor velocidades transmitrais velocidades anel mitral (TDI) | Clip em movimento Imagem estática Imagem estática |
Apical 5‐câmaras 2D+Doppler‐cor velocidades transaórticas velocidades CSVE | Clip em movimento Imagem estática Imagem estática |
Apical 2‐câmaras 2D+Doppler‐cor | Clip em movimento |
Apical 3‐câmaras ∼Apical longo eixo 2D+Doppler‐cor | Clip em movimento |
Subcostal com Veia Cava Inferior 2D+Doppler‐cor Modo M – veia cava inferior | Clip em movimento Imagem estática |
Supraesternal 2D+Doppler‐cor Doppler espectral | Clip em movimento Imagem estática |
CSVE, câmara de saída do ventrículo esquerdo; TDI, Doppler tecidular.
Os clips gravados devem conter pelo menos um (mas preferencialmente três) ciclo representativo de um ciclo cardíaco normal; nos casos de arritmias com variabilidade RR significativa, deve ser considerada a aquisição de maior número de ciclos ou um tempo de aquisição mais longo. Patologias específicas identificadas no decurso de um exame podem requerer planos e medições adicionais para o diagnóstico correto. É fulcral e da responsabilidade do médico interpretante assegurar que toda a informação relevante seja obtida antes da emissão do relatório final.
As imagens do exame devem ser obrigatoriamente gravadas em formato digital, em sistemas que permitam a revisão posterior do exame. A gravação completa do paciente inclui as imagens e as medições gravadas, bem como o relatório interpretado. Reconhece‐se que em algumas circunstâncias, como situações de emergência ou limitações técnicas, possa não ser feita a aquisição completa de imagens e dados. Nestes casos, o exame deve ser catalogado como «limitado» ou focalizado e as condicionantes que tal determinaram deverão estar explícitas no relatório.
Os avanços tecnológicos têm fornecido sistemas de imagem mais pequenos e portáteis. Tais sistemas representam um avanço significativo, fornecendo potencialmente oportunidades para a execução de exames ecocardiográficos de modo mais vasto e de mais fácil acesso, expandindo assim os benefícios da tecnologia8. No entanto, a qualidade dos exames não deve ser afetada pelo seu uso. A decisão de fazer um ecocardiograma fora do Laboratório de Eco com um sistema portátil deverá ser guiada pela estabilidade clínica do doente, avaliada pelo médico assistente e de acordo com o médico cardiologista. Para os exames portáteis exige‐se o mesmo grau de qualidade no que respeita aos princípios acima indicados, ou seja, não devem variar com os diferentes sistemas de imagem, nomeadamente em relação à execução e ao arquivo digital do conjunto mínimo de clips/imagens. Admite‐se ainda, como exceção, a utilização destes sistemas por médicos não cardiologistas em contexto de emergência, para exclusão de quadros de choque, como extensão do exame físico, sem produção de relatório estruturado. Mantém‐se, contudo, a obrigatoriedade do arquivo digital das imagens e o registo da informação ecocardiográfica no processo clínico do paciente9.
O relatório do ecocardiograma deve ter uma estrutura clara e linguagem facilmente percetível por não cardiologistas e responder de forma objetiva à questão que motivou sua realização. A estrutura do relatório pode variar de acordo com preferências locais, organizando‐se os achados com base em estruturas anatómicas ou em modos de imagem. No entanto, o relatório deve obrigatoriamente incluir3,6:
- •
um cabeçalho, contendo sempre a identificação e os dados demográficos do doente, a data e o motivo do exame, a identificação nominal do executor e do relator do exame. Recomendando‐se igualmente o registo de outros dados, como peso, altura e superfície corporal, ritmo e frequência cardíaca, bem como a identificação do equipamento utilizado;
- •
uma secção de medições com o registo de todas as dimensões e valores obtidos pelas diferentes modalidades;
- •
uma secção descritiva dos achados morfológicos e funcionais das diferentes estruturas anatómicas avaliadas;
- •
uma conclusão, que deve ser clara, percetível para qualquer médico, respondendo objetivamente às questões que motivaram o exame, realçando os principais achados. Qualquer limitação ou condição passível de influenciar as conclusões deve ficar claramente registada.
O relatório deve ser escrito em suporte informático e/ou papel e ser assinado apenas pelo médico cardiologista com competência em ecocardiografia responsável pelo relatório, preferencialmente com assinatura digital protegida por palavra‐chave. Os relatórios dos exames eletivos devem estar disponíveis preferencialmente no próprio dia do exame, ou dentro de cinco dias úteis. Nos exames com carácter urgente/emergente, um relatório provisório deve ser feito imediatamente. Sempre que os achados do ecocardiograma impliquem atitudes terapêuticas urgentes, o médico responsável pelo doente deve ser informado pessoalmente.
De acordo com documento do Colégio da Especialidade de Cardiologia da Ordem dos Médicos relativo ao treino em ecocardiografia e normas para ecocardiograma10:
- •
O ETT deverá, preferencialmente, ter a sua execução e elaboração do respetivo relatório a cargo de médico cardiologista.
- •
Como opção, poderá ser contemplada a execução do ETT por técnico cardiopneumologista (CPL), que poderá produzir relatório preliminar, mas com supervisão e validação pelo médico cardiologista, que será sempre o responsável pelo relatório final.
Para realizar estas funções, aos médicos cardiologistas envolvidos exige‐se competência específica em ecocardiografia (vide infra), devendo estar fisicamente disponíveis de modo a que durante a execução do exame possam dar aconselhamento e, se necessário, proceder à reaquisição de imagens e finalmente à produção do relatório final. Independentemente do executor do ETT (médico cardiologista ou técnico cardiopneumologista), mantém‐se obrigatória a produção de relatório final em suporte informático e/ou papel, exclusivamente assinado pelo médico cardiologista relator.
O Laboratório de EcocardiografiaEmbora se reconheça que a organização interna dos serviços possa variar de acordo com os locais, o laboratório de ecocardiografia deverá idealmente estar integrado num Laboratório de Imagem Cardíaca, no qual se insere a ecocardiografia, bem como as restantes modalidades de imagem não invasiva (nomeadamente a ressonância magnética e a tomografia computorizada cardíacas).
De forma a poderem ser gerados exames ecocardiográficos completos e fiáveis, os executores com treino específico necessitam de local de trabalho adequadamente estruturado e equipado11,12.
As salas de exame devem ter espaço suficiente e adequado para assegurar conforto, privacidade e segurança a doentes e operadores (tipicamente cerca de 20 m2) e ter condições de climatização, ventilação e iluminação apropriadas. Embora fora do âmbito do presente documento, realça‐se que os laboratórios que façam ecocardiograma transesofágico (ETE) com sedação ou ecocardiograma de sobrecarga farmacológica devem ter no local de execução meios de monitoração e de eventual suporte avançado, bem como espaço para recobro, sob vigilância de profissionais de saúde apropriadamente treinados e qualificados13.
Para que se garanta a aquisição de imagens com qualidade e quantificação hemodinâmica Doppler completa, todos os ecocardiógrafos em utilização devem ter capacidade para imagem bidimensional com imagem harmónica, Doppler espectral pulsado e contínuo, Doppler codificado em cor, Doppler tecidular e para arquivo digital de imagem em formato DICOM com possibilidade de exportação para rede local. Todos os equipamentos e sondas devem ter manutenção regular (pelo menos duas vezes/ano), habitualmente realizada por representantes das marcas de acordo com contratos específicos de manutenção ou, em opção, por pessoal especializado local. A manutenção deve englobar procedimentos específicos que garantam a segurança dos equipamentos, como a limpeza dos sistemas de filtro e a verificação de eventual fuga de corrente elétrica e/ou interferência com outros equipamentos. Idealmente, todo ecógrafo em utilização deverá ter sofrido a última atualização de software/hardware há menos de sete anos.
O exame ecocardiográfico pode ser fisicamente exigente e resultar em lesões músculo‐esqueléticas do operador. É assim importante que os laboratórios de imagem cardíaca se encontrem bem estruturados de forma a minimizar os riscos do pessoal. Desse modo, recomenda‐se que:
- •
a sala de execução de exames deve ser separada e limitada apenas a esse utilização; as área de espera, vestiário e recobro devem ser fisicamente separadas do local de execução;
- •
deve existir uma sala própria para revisão off‐line do exame e produção do relatório;
- •
na área de execução dos exames, a luz, a ventilação e as cadeiras de utilização dos operadores durante a execução dos exames devem ser apropriadas;
- •
a marquesa de execução dos exames deve ter um sistema de regulação da altura.
O prolongado contacto físico operador‐paciente levanta a questão do risco de propagação de infeção. Nesse sentido, os laboratórios de ecocardiografia devem manter ligações adequadas ao departamento hospitalar de controle de infeção e seguir as recomendações padrão. Toda a equipa do laboratório deverá ter conhecimento atualizado dessas recomendações. Como regra geral:
- •
as sondas de ETT devem ser desinfetadas entre exames, com toalhete/líquido desinfetante apropriado;
- •
os operadores devem lavar adequadamente as mãos entre exames, sendo obrigatória a existência de lavatório nas salas de exame;
- •
os ecocardiógrafos devem ser limpos diariamente;
- •
as sondas de ETE requerem procedimentos de desinfeção particulares, exigindo local e equipamento específicos de desinfeção, com sistema de extração de ar apropriado, de modo a evitar contaminação do ambiente e operador de limpeza pelos desinfetantes voláteis.
Os laboratórios de ecocardiografia devem ter um sistema de agendamento organizado. Nesse agendamento, o tempo destinado a um ecocardiograma transtorácico padrão deverá ser, no mínimo, de 30 minutos. Sempre que seja previsível a necessidade de quantificação complexa e/ou a utilização de técnicas avançadas de ecocardiografia, o tempo destinado para o exame deverá ser de 60 minutos. O médico cardiologista diretor/responsável do laboratório deve organizar um sistema de revisão das requisições de modo a estabelecer graus de prioridade para a execução do exame. Deverá igualmente promover medidas de controlo de qualidade através de auditorias periódicas, com avaliação da adequação do motivo dos exames realizados, dos tempos de espera e de execução, do conjunto de imagens/medições adquiridas e dos relatórios.
Reuniões com carácter periódico (preferencialmente semanal) com revisão de casos clínicos – e idealmente em conjunto com as outras modalidades de imagem – são aconselháveis e devem igualmente ser promovidas pelo responsável clínico. É ainda um critério de qualidade a produção científica. Os elementos do laboratório devem ter acesso à bibliografia necessária para a sua atividade clínica e de investigação, seja através de uma biblioteca local (com livros de texto de referência) seja através de acesso eletrónico às principais revistas na área da ecocardiografia.
O operadorNos últimos anos, vários documentos com recomendações sobre treino e competência em ecocardiografia, emanados por diferentes sociedades científicas, foram publicados7,14,15. Em linha com estes documentos, considera‐se que a ecocardiografia é uma técnica de imagem altamente dependente do operador, exigindo deste formação específica de forma a ter competência na técnica. Assim, a formação básica do operador terá de incluir:
- •
treino geral na área cardiovascular, incluindo treino em auscultação cardíaca;
- •
conhecimento detalhado da anatomia, fisiologia e hemodinâmica cardiovasculares em condições normais e nas diferentes patologias;
- •
domínio dos princípios físicos e dos efeitos biológicos dos ultrassons, de forma a saber como utilizar os equipamentos de ecocardiografia e reconhecer as indicações e limitações da técnica;
- •
capacidade de obter informação clínica do médico referenciador, do processo clínico ou do doente, de modo a aplicar a metodologia mais apropriada para obter informação ecocardiográfica coerente;
- •
reconhecimento da patologia e capacidade de formulação de diagnósticos diferenciais preliminares, de forma a ser capaz de explorar os planos e proceder às quantificações necessárias;
- •
capacidade de correlacionar os achados ecocardiográficos com os de outros meios complementares de diagnóstico e de integração global dos resultados;
- •
conhecimento das potenciais complicações das diferentes técnicas ecocardiográficas.
Existem algumas diferenças nos esquemas e requisitos para atribuição de níveis de competência entre as sociedades científicas internacionais, de acordo com especificidades locais e com a regulamentação legal da formação pós‐graduada nos diferentes países. A Associação Europeia de Ecocardiografia/Associação Europeia de Imagiologia Cardiovascular propõe a existência de dois níveis de competência em ecocardiografia15 que se aceitam como genericamente válidos no nosso país:
- a)
Nível básico
A ser cumprido durante a formação de todos os cardiologistas em geral. No fim deste nível, o operador deverá ser capaz de executar, de forma independente, um ecocardiograma‐padrão, com vista a responder às questões clínicas mais comuns e a algumas situações de urgência/emergência.
A obtenção deste nível implica um treino de seis meses num laboratório de ecocardiografia hospitalar de alto volume, com pelo menos 350 exames completos de forma autónoma e com contacto com as principais entidades patológicas (designado como case‐mix adequado): valvulopatias, cardiopatia isquémica, miocardiopatias/insuficiência cardíaca, hipertensão arterial, endocardite infeciosa, massas intracardíacas, cardiopatias congénitas mais comuns, tromboembolismo pulmonar, hipertensão pulmonar, doenças da aorta e doenças do pericárdio. Os exames normais não deverão exceder mais do que um terço do número total. Deve ser considerado o prolongamento do tempo necessário para cumprimento deste nível quando o período de treino tenha que ser interrompido ou seja realizado concomitantemente com outras atividades, ou quando o número de exames seja inferior ao previsto nestas recomendações.
Quanto ao ETE e ao ecocardiograma de sobrecarga, é recomendado o seu acompanhamento e sua execução sob supervisão de médico cardiologista com nível avançado de competência em ecocardiografia. Assim, no fim do nível básico de competência deverá o médico cardiologista ser capaz de reconhecer as indicações, contraindicações, capacidades diagnósticas, limitações e potenciais complicações destes métodos ecocardiográficos. Contudo, este nível de treino não confere competência para a execução autónoma dos mesmos (ETE e ecocardiograma de sobrecarga).
As recomendações para a obtenção deste nível estão em linha com a Portaria que regula o Internato Médico na área profissional de especialização de cardiologia (Portaria no 46/2011) e com documento recente do Colégio de Especialidade de Cardiologia da OM sobre «Treino em ecocardiografia e normas para realização de ecocardiograma»10, pelo que se considera que qualquer cardiologista no fim do internato da especialidade deverá ter obtido este nível básico. Ressalva‐se, no entanto, que a obtenção deste nível de competência não equivale à sua manutenção e que esta implica treino continuado (vide infra). De igual modo, sendo de estimular a obtenção de acreditação individual em ecocardiografia por outra sociedade científica idónea reconhecida pela Sociedade Portuguesa de Cardiologia e pela Ordem dos Médicos, esta deve ser reconhecida como «certificação da obtenção de conhecimento», não podendo substituir, mas apenas complementar, a formação continuada em laboratório de ecocardiografia idóneo. Esta última será sempre o componente determinante e obrigatório da obtenção nacional de «competência» em ecocardiografia.
- b)
Nível avançado
O nível avançado destina‐se aos cardiologistas cuja principal área de interesse e de subespecialização é a ecocardiografia. Os operadores com este nível são competentes para a execução independente de ecocardiogramas transtorácicos complexos e/ou com necessidade de recurso a técnicas avançadas, como a quantificação hemodinâmica completa de valvulopatias complexas, ecocardiografia tridimensional, ecocardiografia com contraste, imagem de deformação miocárdica (strain/strain rate) ou a selecão de candidatos a tratamento percutâneo de cardiopatia estrutural valvular e não valvular. A aquisição de competência para a realização autónoma de ecocardiografia transesofágica (ETE) e de sobrecarga, ecocardiografia intraoperatória de cirurgia cardíaca e ecocardiografia para monitoração de procedimentos percutâneos deve estar igualmente restrita a operadores com este nível de competência.
A obtenção deste nível implica um treino adicional de seis meses e a realização de, pelo menos, 750 ETT completos (para além dos efetuados para obtenção do nível básico) num laboratório de ecocardiografia hospitalar idóneo e sob supervisão de um cardiologista com nível avançado de ecocardiografia. Durante o período de treino para a obtenção de qualquer um dos níveis, os operadores devem participar nas reuniões periódicas do laboratório de imagem/ecocardiografia para discussão de casos clínicos, bem como em reuniões nacionais ou internacionais acreditadas de ecocardiografia/imagiologia cardíaca. A participação em atividades de investigação deve ser valorizada.
- c)
Manutenção da competência
De modo a manter a competência adquirida durante a formação, os operadores deverão executar e interpretar de forma autónoma pelo menos 250 ETT/ano, com case‐mix adequado, devendo o número de exames normais ser inferior a 30% do número total de ETT por ano. Esta exposição deve poder ser verificável através de acesso a arquivo digital das imagens adquiridas em cada exame. Para além da execução de exames, a manutenção de competência deverá implicar a participação continuada em programas de formação em ecocardiografia, preferencialmente verificável por sistema de créditos.
O cardiologista que não tenha atingido os requisitos para a manutenção da competência em ecocardiografia nos últimos dois anos deve realizar um período de, pelo menos, um mês de treino em ecocardiografia em laboratório de elevado volume de casos (mínimo de 20 casos/dia) e patologia variada.
Tal como afirmado previamente, encoraja‐se a obtenção de recertificação individual por sociedade científica idónea reconhecida pela Sociedade Portuguesa de Cardiologia e pela Ordem dos Médicos, embora, isoladamente, este não constitua requisito suficiente para prova de manutenção de competência.
Competência em ecocardiografia por não cardiologistas- a)
Técnicos de cardiopneumologia (CPL)
A integração de CPL nas equipas dos laboratórios de ecocardiografia é comum à maioria das instituições portuguesas. De acordo com o Decreto‐Lei no 564/99 de 21 de dezembro, a sua atividade profissional “centra‐se no desenvolvimento de atividades técnicas para o estudo funcional e de capacidade anatomofisiopatológica do coração, vasos e pulmões e de atividades ao nível da programação, aplicação de meios de diagnóstico e sua avaliação, bem como no desenvolvimento de ações terapêuticas específicas, no âmbito da cardiologia, pneumologia e cirurgia cardiotorácica”. Estes profissionais, com formação superior (licenciatura), estão integrados na Carreira dos Técnicos de Diagnóstico e Terapêutica, que é regulada legalmente por diferentes documentos: Decreto‐Lei no 261/93, Decreto‐Lei no 320/99, Decreto‐Lei no 564/99, Portaria no 256‐A/86 (n° 3). No entanto, todos estes documentos são generalistas e omissos quanto ao grau preciso de autonomia/responsabilidade atribuível ao CPL na realização de ecocardiogramas transtorácicos.
É reconhecido, no já citado documento do Colégio de Especialidade de Cardiologia sobre “Treino em ecocardiografia e normas para realização de ecocardiograma”10, que o padrão de autonomia com que exercem as suas funções varia de acordo com as instituições. O mesmo documento contempla a execução de ETT por técnico CPL, mas recomenda a sua supervisão e validação por médico cardiologista, que será o responsável pelo relatório final.
Em linha com esta orientação, recomenda‐se que sejam competências do técnico CPL integrado na equipa do laboratório de ecocardiografia:
- •
a explicação das características do exame ao doente, previamente à execução; de realçar que a obtenção da informação clínica necessária para o exame deverá caber exclusivamente ao médico responsável pelo relatório final;
- •
a execução de exames tecnicamente padronizados através da obtenção das imagens e medições que constituem um ecocardiograma completo, de acordo com as recomendações atrás descritas. Em caso de dificuldade ou inconsistência, o médico cardiologista supervisor deve ser notificado durante a execução do exame de forma a prestar assistência direta;
- •
o registo de vídeos e imagens em formato digital, de modo a permitir a revisão completa dos exames e o seu arquivo em longo prazo;
- •
a interpretação das imagens sob supervisão de médico cardiologista com competência em ecocardiografia;
- •
a possível realização de relatório preliminar;
- •
a participação, em conjunto com o cardiologista supervisor, na produção do relatório final; esta colaboração é necessária para assegurar que toda a informação técnica e diagnóstica obtida foi relatada do modo mais completo possível. De realçar que o CPL não poderá ser responsável pela validação do relatório final, cabendo essa responsabilidade ao médico cardiologista. Do mesmo modo, a discussão com o doente ou com o médico referenciador dos achados clínicos do exame e suas eventuais implicações deverá caber exclusivamente ao médico cardiologista responsável pela validação do relatório;
- •
a verificação periódica da qualidade e da segurança dos ecocardiógrafos e respetivas sondas.
Considera‐se ainda que os conhecimentos básicos para a prática de ecocardiografia detalhados no início desta secção deverão ser dominados por qualquer operador que execute ecocardiogramas, incluindo os CPL16.
- b)
obtenção e manutenção de competência por cardiopneumologistas.
Reconhecendo diferenças significativas entre países e regiões geográficas no que respeita ao papel de técnicos de ecocardiografia17, as recomendações europeias são omissas quanto a diferenças entre médicos e não médicos e/ou requisitos específicos para estes últimos no que respeita ao tempo de treino e número de exames a realizar para obtenção de competência em ecocardiografia transtorácica15. Na ausência desta distinção, e atendendo a que estes profissionais participam igualmente na realização de exames transtorácicos complexos, de ecocardiogramas transesofágicos e de sobrecarga na maioria dos centros em Portugal, recomenda‐se como requisito obrigatório para obtenção de competência em ETT pelos CPL um período de treino pós‐graduado contínuo de pelo menos um ano, a tempo inteiro, em laboratório de ecocardiografia hospitalar com volume de casos elevado (mais de 20 ETT/dia), patologia diversificada e sob orientação de médico cardiologista com nível avançado em ecocardiografia. Neste período, devem ser executados, pelo menos, 350 exames transtorácicos completos. A efetiva realização dos exames deve ser verificável através do registo digital das imagens e da elaboração de um log book.
Tal como para os médicos cardiologistas, é desejável a realização de exame de acreditação em ecocardiografia por sociedade científica idónea, reconhecida pela Sociedade Portuguesa de Cardiologia e Ordem dos Médicos, sob proposta do diretor clínico do laboratório ou de outro médico cardiologista com competência em ecocardiografia. Do mesmo modo que para os médicos cardiologistas, este tipo de acreditação deve ser considerado como «certificação de conhecimento», mas não de competência em ecocardiografia, não conferindo per se habilitação para realização e/ou interpretação de ecocardiogramas sem apoio e validação por médico cardiologista com competência em ecocardiografia. Essa recomendação está também explícita no já citado documento emanado pelo Colégio da Especialidade de Cardiologia da OM10: «A acreditação europeia em ecocardiografia deve ser assumida como reconhecimento formal de autonomia pré‐existente e continuada na execução de ecocardiogramas e respetiva elaboração de relatórios, que em Portugal são restritos a médicos cardiologistas». Também como para os cardiologistas, a manutenção da competência deverá estar dependente de atividade prática continuada em laboratório de ecocardiografia com adequado volume (mais de 20 ETT/dia) e case‐mix variado, com execução de, pelo menos, 250 ecocardiogramas transtorácicos/ano, os exames normais não poderão perfazer mais do que um terço do número total de ETT/ano. Em caso de interrupção da atividade superior a um ano recomenda‐se que o treino seja repetido durante, pelo menos, quatro semanas num laboratório de ecocardiografia de alto volume, com execução pessoal de pelo menos oito ETT diários.
- c)
Médicos não cardiologistas
É recomendação do Colégio da Especialidade de Cardiologia da OM, relativamente ao treino e ao uso de ecocardiografia, que a utilização desta técnica por médicos não cardiologistas deve ficar circunscrito a um nível que envolva estritamente ecocardiografia 2D e Modo M, permitindo em situações clínicas de emergência o diagnóstico de causas de choque potencialmente reversíveis, nomeadamente disfunção ventricular esquerda grave, hipovolémia grave, tromboembolismo pulmonar de alto risco e tamponamento. Neste contexto, a execução de um ecocardiograma emergente e focalizado poderá salvar a vida do doente. Este conceito, baseado na metodologia internacionalmente reconhecida FATE e FOCUS18–20, enquadra‐se num nível de treino e competência que exige aquisição de conhecimento básico da física dos ultrassons, da ecoanatomia normal, das imagens típicas dos quadros de choque acima referidos e sobretudo da identificação das limitações desse nível de competência, que passa pelo reconhecimento da necessidade a recurso a médico cardiologista com competência básica ou avançada. O nível de competência para «ETT na Emergência» só ficará completo com a execução de 50 ETT, em período não superior a um ano, sendo obrigatória a verificação da adequação da indicação para a realização do ETT em quadros de choque acima descritos, bem como a aquisição de clips/imagens padronizadas de acordo com o protocolo FATE/FOCUS, devidamente registados em arquivo digital e validados por médico cardiologista com competência em ecocardiografia. É importante salientar que a obtenção dos níveis de formação básico e avançado, em ecocardiografia, apenas é reconhecida pela Ordem dos Médicos a «especialista em cardiologia»10.
Realça‐se que a ecocardiografia em contexto de urgência/cuidados intensivos, aparte a metodologia focalizada para quadros de choque, pode ser um procedimento altamente complexo9. O contexto clínico, com necessidade de obtenção de informação e tomada de decisão rápidas, a frequente dificuldade de obter imagens de boa qualidade e a variabilidade hemodinâmica (condicionada quer pela patologia quer pelo manejo de fluidos e suporte inotrópico) exigem um ETT com estudo Doppler completo adicional à avaliação 2D e Modo M, o que pode gerar erros de interpretação com consequências graves na abordagem terapêutica do doente. Esstes erros de interpretação serão tanto mais prováveis quanto menor for a experiência e diferenciação cardiológica do executor. Neste sentido, é recomendação da SPC que os médicos não cardiologistas que realizam ecocardiogramas na urgência hospitalar e em unidades de cuidados intensivos polivalentes na ausência de cardiologista devam ter um período de treino prévio de seis meses em laboratório de ecocardiografia hospitalar, com execução de 350 exames completos e interpretação adicional de 150 ecocardiogramas, cobrindo as principais entidades clínicas em contexto de urgência/cuidados intensivos polivalentes. Dos exames executados pessoalmente, 50 deverão ter sido realizados na urgência geral ou em cuidados intensivos polivalentes, sob supervisão de médico cardiologista com competência em ecocardiografia. Por outro lado, reforça‐se que a situação clínica de urgência/emergência não pode justificar a ausência de registo e arquivo digital das imagens obtidas, devendo estes exames ser reavaliados e o relatório deve ser validado o mais rapidamente possível por médico cardiologista com competência em ecocardiografia. A manutenção da competência de ETT em contexto de urgência/cuidados intensivos exige a prática regular de ecocardiografia, recomendando‐se execução pessoal mínima de 50 casos/ano.
Também para estes profissionais, a realização de exame de acreditação em ecocardiografia por uma sociedade científica idónea reconhecida pela SPC e OM não deve poder ser considerada como uma certificação de competência, não conferindo per se habilitação para a realização e/ou interpretação de ecocardiogramas sem acompanhamento e validação por médico cardiologista com competência em ecocardiografia.
Relativamente à ecocardiografia transesofágica intraoperatória em cirurgia cardíaca ou em ambiente de cuidados intensivos, reconhece‐se que existem especificidades locais, quer em nível nacional quer europeu, que resultam na execução destes exames por médicos não cardiologistas (anestesiologistas e intensivistas). A proposta de regulamentação da formação nesta área, de modo a assegurar a qualidade dos exames e a segurança dos doentes, deverá ser estabelecida em documento futuro pelos órgãos próprios da Ordem dos Médicos e sob recomendação da SPC. Sem prejuízo do acima referido, recomenda‐se que os requisitos mínimos de treino para obtenção de competência nesta área nunca sejam inferiores aos determinados para os médicos cardiologistas de nível avançado – treino completo em ecocardiografia transtorácica (conforme descrito previamente) e realização adicional de, pelo menos, 75 ecocardiogramas transesofágicos. A manutenção de competência deverá igualmente implicar a realização de 50 ecocardiogramas transesofágicos por ano.
Em conclusão, sendo a ecocardiografia uma técnica de imagem diagnóstica, da qual resultam procedimentos e orientações terapêuticas de grande importância para o doente, terá de ser encarada como um ato inegavelmente médico e cardiológico com inerentes implicações médico‐legais. Pretende‐se que a regulamentação da prática da ecocardiografia em Portugal introduzida pelo presente documento contribua para assegurar a qualidade e a segurança dos exames ecocardiográficos, minimizando o erro diagnóstico e o risco para os pacientes, mas que também conduza à redução da duplicação de exames e consequentes custos.
Conflitos de interesseOs autores declaram não haver conflitos de interesse.