Descrevemos um caso de teratoma intrapericárdico, tumor cardíaco primário raro, usualmente encontrado em neonatos e lactentes. O teratoma pode causar insuficiência respiratória, grande acúmulo de líquido pericárdico e compressão cardíaca, levando à morte no período intrauterino ou neonatal. O presente caso é raro, pois se trata de uma jovem de 16 anos, assintomática, portadora de tumor intrapericárdico em achado ecocardiográfico. As características à ressonância magnética cardíaca sugeriram cisto pericárdico complexo. Ela foi submetida à cirurgia para retirada do tumor e o diagnóstico de teratoma foi firmado pelo estudo histopatológico. O acompanhamento clínico mostrou‐se de boa evolução.
We report a case of intrapericardial teratoma, which is a rare primary cardiac tumor usually found in newborns and infants. Cardiac teratomas can cause respiratory failure, large accumulations of pericardial fluid and cardiac compression leading to death in the intrauterine or neonatal period. The case described is rare because it is of a 16‐year‐old asymptomatic girl with an intrapericardial tumor as an incidental echocardiographic finding. Cardiac magnetic resonance imaging showed a complex pericardial cyst. Due to the potential for malignant evolution, she was referred for surgery to remove the tumor and a diagnosis of teratoma was confirmed by histopathology. Clinical follow‐up had a good outcome.
Os tumores primários do coração são raros, com uma incidência variando de 0,001‐0,28% em achados de necrópsias1,2. Aproximadamente 75% são benignos, sendo mais frequentes os mixomas, com 50% dos casos. Os outros 25% dos tumores cardíacos são malignos, sendo a grande maioria constituída por sarcomas (angiosarcomas, rabdomiosarcomas e fibrosarcomas). Menos frequentemente são relatados casos de teratomas malignos, mesoteliomas e linfomas1,2.
O teratoma intrapericárdico é um tipo de tumor cardíaco benigno, tendo sido relatados menos de 100 casos na literatura desde o ano de 18903,4. Destes relatos, a maioria foi observada no sexo feminino (1,6:1)5 e em fetos, neonatos e lactentes. Estes tumores sempre foram associados a um quadro clínico dramático (hidropsia fetal, instabilidade hemodinâmica e respiratória ao nascimento)3,4.
Relato de casoG.D.A, 16 anos, hígida e sem antecedentes prévios, foi encaminhada ao serviço de cardiologia para avaliação clínica, a fim de iniciar atividade física. A paciente apresentava‐se assintomática, com ritmo cardíaco regular, auscultação sem alterações, sem sinais clínicos de congestão e ausência de visceromegalias. Os exames complementares mostraram eletrocardiograma de repouso normal e, ao ecocardiograma transtorácico, evidenciou‐se imagem hipoecogênica junto ao átrio direito, de aproximadamente 6,5×3,7cm, extrínseca, com conteúdo parcialmente heterogêneo e sem repercussão hemodinâmica, podendo corresponder a cisto pericárdico. A função biventricular encontrava‐se preservada e não havia alterações adicionais.
Devido ao achado da imagem sugestiva de cisto, foi solicitada ressonância magnética cardíaca para melhor elucidação. A pedido clínico, foi realizado estudo sem contraste, com achado de formação arredondada extracardíaca bem delimitada, de aspecto cístico, em contato com a parede lateral do átrio direito, sem comprometer seu enchimento e sem invasão de estruturas adjacentes. As medidas encontradas da estrutura em seus maiores eixos foram de 7,9×8,6×4,3cm, com paredes finas, múltiplas trabéculas em seu interior e de conteúdo heterogêneo. Devido ao achado inicial de conteúdo heterogêneo, o estudo foi complementado com sequências de Inversion Recovery (IR), Double IR com saturação de gordura e in‐phase e out‐of‐phase.
Na sequência de Double IR pesada em T2, observou‐se sinal hiperintenso predominante como conteúdo cístico, que sugeriu componente líquido, gorduroso ou hemático/hiperproteico. Após a realização de Double IR com saturação de gordura, foi confirmado hipersinal de componente líquido (Figura 1). Porém, ainda foram visualizadas pequenas áreas hipointensas, que sugeriam outro tipo de tecido em seu interior. Nas sequências de in‐phase e out‐of‐phase, foi observada pequena área hipointensa mais bem visualizada no out‐of‐phase, o que sugeriu a presença de gordura intra‐voxel, caracterizando diferentes tipos de tecido no interior do cisto (Figura 2).
As hipóteses diagnósticas, então, foram: 1) cisto pericárdico complexo, 2) lesão de origem tímica e 3) cisto broncogênico.
Pelos achados sugestivos de cisto complexo (constituído por diferentes tipos de tecido), o que pode compreender diagnósticos de teratoma e mesotelioma, foi indicada sua ressecção pelo risco relacionado a neoplasias. A cirurgia foi realizada por videotoracoscopia e enviada peça cirúrgica para a análise. O diagnóstico histológico final foi de teratoma intrapericárdico. A evolução no pós‐operatório foi satisfatória e sem intercorrências.
DiscussãoOs teratomas cardíacos são bastante raros e podem ocorrer em adultos3,4, porém perfazem menos de 1% dos tumores cardíacos nessa faixa etária e são encontrados pouquíssimos casos na literatura relatados até o momento6–9. Sua maioria se encontra no grupo de faixa etária pediátrica e recém‐nascidos (aproximadamente 15% dos tumores cardíacos nesses pacientes)4. Mulheres são discretamente mais afetadas do que os homens, na proporção de 1,6:15. O pico de incidência de apresentação em adultos é entre a segunda e terceira décadas de vida6.
A maioria dos teratomas primários cardíacos emerge da base do coração, localizando‐se no mediastino anterior, e são intrapericárdicos. Muito raramente eles são intramiocárdicos6. Usualmente se encontram próximos ao átrio direito, presos por um pedículo na emergência da artéria pulmonar e aorta. O seu suprimento sanguíneo é proveniente da vasa vasorum, podendo, esporadicamente, apresentar suprimento coronariano.
Os teratomas intrapericárdicos podem assumir grandes proporções, medindo acima de 15cm de diâmetro. São piriformes e usualmente com superfície lisa e lobulada. Abertos mostram numerosos cistos multilobulados, que são interpostos por áreas sólidas. Ao exame microscópico encontram‐se, tipicamente, epitélio respiratório e gastrointestinal, cartilagem, osso, tecidos neurogênicos e outros tecidos originados das várias camadas germinativas. Estes aspectos diferenciam os teratomas dos cistos broncogênicos intrapericárdicos, nos quais são encontrados apenas tecidos de origens gastrointestinal e respiratória. Em contraste com os teratomas ovarianos, os intrapericárdicos geralmente não apresentam cabelos, glândulas sebáceas ou epitélio escamoso queratinizante. Como todos os teratomas, estes tumores apresentam potencial para malignidade (em torno de 15%)10. Embora este tipo de evolução não seja o usual, todos devem ser avaliados rigorosamente quanto a esta possibilidade11.
O sintoma mais proeminente é uma grave insuficiência respiratória, normalmente secundária à compressão pulmonar, causada pelo pericárdio distendido pelo tumor e pelo derrame que frequentemente o acompanha. Derrame pericárdico está frequentemente associado aos teratomas9. A rotura de áreas císticas no pericárdio devido à sua natureza multicística, associada com a obstrução do sistema linfático de retorno venoso ao ducto torácico, leva ao desenvolvimento de derrames pleural, peritoneal e pericárdico.
O comprometimento da função cardíaca também pode ocorrer pela compressão tumoral do coração, grandes vasos, ou veia cava superior em variados graus, o que contribui para a gravidade da insuficiência cardiorrespiratória. A compressão direta da traqueia e do esôfago é incomum, e os sintomas tendem a ser menos graves nos pacientes mais velhos, nos quais o tumor pode ser um achado radiológico incidental.
O diagnóstico diferencial deve incluir tumores do mediastino anterior, aumentos tímicos, outras causas de derrames pericárdicos e lesões cardíacas primárias11. A diferenciação com cistos broncogênicos intrapericárdicos só é possível ao exame microscópico4. Neoplasias cardíacas como rabdomioma, fibroma e mixoma são mais comuns, porém localizam‐se em átrios ou ventrículos. E são, portanto, facilmente distinguidas das massas pericárdicas. O diagnóstico diferencial entre teratoma e outras massas intrapericárdicas (hemangioma, mesotelioma) não é possível intra‐útero4.
A radiografia de tórax, em incidência anteroposterior, mostra uma área cardíaca aumentada e, em perfil, pode mostrar compressão traqueal pela massa mediastinal anterior, um dado que não pode ser atribuído ao timo normal.
No ecocardiograma transtorácico, a presença de uma grande imagem cardiotímica ou alargamento do mediastino com derrame pericárdico é característica do teratoma intrapericárdico e poderá levar a um estudo diagnóstico mais definitivo11.
O tratamento cirúrgico é imposto tão logo o diagnóstico de teratoma seja estabelecido10, pois apesar da sua característica benigna, existe a probabilidade de se transformar em tumor maligno. Se não realizada a excisão, há ainda o risco de compressão de estruturas adjacentes resultando em arritmias ou em derrame pericárdico9, além da chance de se tornar um tumor infectado6–9.
A esternotomia mediana é o acesso cirúrgico de eleição e é realizada sem auxílio de circulação extracorpórea, visto que as aderências do tumor com o coração, especialmente em nível da aorta ascendente, podem ser desfeitas sem dificuldades. A ressecção deve ser completa, pois se incompleta pode levar à formação de derrame pericárdico com prejuízo hemodinâmico, com cuidadosa revisão para a identificação de eventuais outros teratomas8,9.
Caso o exame histológico revele sinais de malignidade, podem‐se associar radioterapia ou quimioterapia ao tratamento cirúrgico10.
O caso apresentado tem peculiaridades, pois a maioria dos teratomas intrapericárdicos ocorre em fetos e neonatos e, quando em adultos, entre a segunda e terceira décadas de vida6. Tratou‐se de uma jovem de 16 anos de idade, assintomática, com diagnóstico incidental pelo ecocardiograma transtorácico de cisto pericárdico justaposto ao átrio direito.
Conforme descrito em outro relato da literatura8, o papel da biópsia transtorácica é controverso para o diagnóstico. Se necessária, deve abranger abordagem multidisciplinar, pois sérias complicações podem ocorrer durante o procedimento, sob o risco de não se obter material suficiente para a análise.
Especificamente em nosso relato, a ressonância magnética cardíaca foi de suma importância, pois revelou um cisto de características complexas (septado e com conteúdo parcialmente heterogêneo), o que levou à hipótese de teratoma, com remoção cirúrgica e diagnóstico definitivo posterior. Relatos da literatura descrevem dois casos cuja abordagem foi feita com a tomografia computadorizada8,9. A vantagem da ressonância magnética se torna evidente pela sua capacidade em caracterizar diferentes componentes teciduais.
Nas sequências de Double IR e Double IR com saturação de gordura pesadas em T2, foi visualizado sinal hiperintenso predominante no interior das lojas císticas, que ficou caracterizado como conteúdo líquido/hemático/hiperproteico. Porém, foi também visualizada pequena área com sinal hipointenso mal‐caracterizado em meio ao hipersinal.
Prosseguiu‐se a investigação com sequências in‐phase e out‐of‐phase, que demontraram melhor a pequena área de sinal hipointenso, caracterizando‐se tecido adiposo intra‐voxel.
Sabe‐se que a sequência de in‐phase and out‐of‐phase é utilizada rotineiramente em casos em que há necessidade de caracterizar tecido adiposo microscópico. Devido aos diferentes tipos de ligação entre o hidrogênio na gordura (CH2) e na água, o próton gira em diferentes frequências. Com esta sequência, usualmente um gradiente eco spoiled, a imagem é adquirida quando a gordura e a água giram em fase (com TE=4,2ms em campo de 1,5T) e fora de fase (com TE=2,1ms em campo de 1,5T). Se o tecido adiposo microscópico estiver presente, seu sinal é anulado nas imagens out‐of‐phase12,13.
O in‐phase and out‐of‐phase é utilizado principalmente para caracterizar tumores que contêm lipídios intra‐voxel (por exemplo, os tumores hepatocelulares, os adenomas adrenais e os tumores renais de células claras), e, no início da sua aplicação na prática clínica, foi muito utilizado para quantificação da esteatose hepática12,13.
Em nosso caso, ele foi importante, pois caracterizou diferentes componentes teciduais no interior do cisto pericárdico, comprovando o componente de gordura, e consequente encaminhamento da paciente à cirurgia e diagnóstico patológico final.
ConsentimentoO relato de caso foi aprovado pelo Comitê de Ética da instituição, sob o registro HSL‐RC 2015‐03, em oito de outubro de 2015.
Responsabilidades éticasProteção de pessoas e animaisOs autores declaram que para esta investigação não se realizaramexperiências em seres humanos e/ou animais.
Confidencialidade dos dadosOs autores declaram que não aparecem dados de pacientes neste artigo.
Direito à privacidade e consentimento escritoOs autores declaram que não aparecem dados de pacientes neste artigo.
Conflito de interessesNão há interesses financeiros e tampouco não financeiros (políticos, pessoais, religiosos, ideológicos, acadêmicos, intelectuais, comerciais ou qualquer outro) a declarar em relação a este relato de caso.