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Vol. 37. Núm. 6.
Páginas 477-479 (junho 2018)
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Da delimitação do conceito de normalidade ao reconhecimento de uma nova entidade nosológica?
From the boundaries of normality to the acknowledgement of a new nosological entity
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Álvaro D.B. Bordalo
Serviço de Cardiologia, Hospital de Santa Maria, Centro Hospitalar Lisboa‐Norte, Lisboa, Portugal
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Mehmet Yaman, Ugur Arslan, Adil Bayramoglu, Osman Bektas, Zeki Yuksel Gunaydin, Ahmet Kaya
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A expressão QRS fragmentado (QRSf) foi cunhada por Das et al. em 20061, em doentes coronários. Esse termo passou a aplicar‐se à presença de entalhes medioterminais (ou os seus equivalentes) em complexos QRS com duração inferior a 120ms, independentemente da patologia subjacente. Foi também salientado que um padrão de QRSf pode ser uma variante do normal2,3, pode ser encontrado em 6% a 10% de indivíduos aparentemente saudáveis4,5.

A presença de tecido adiposo na superfície epicárdica é um fenómeno normal. Porém, o volume e/ou a espessura do tecido adiposo epicárdico (TAE) estão aumentados em doentes coronários e num variado conjunto de situações patológico, relacionando‐se o volume do TAE com o grau de fibrose subjacente.

Pelo que conhecemos até agora do significado da presença de QRSf e do comportamento fisiopatológico do TAE, há evidência de uma associação quer da presença de QRSf quer do aumento do TAE com a existência e a gravidade de doença coronária6,7, com a gravidade da disfunção ventricular esquerda em doentes com cardiomiopatia dilatada8,9, e ainda com a presença de artrite reumatoide10,11 ou psoríase5,12. Sendo o denominador comum nessas situações a maior ou menor prevalência de fibrose miocárdica associada à doença de base, levanta‐se uma forte suspeita de que exista uma ligação entre aumento do TAE, o consequente desenvolvimento de fibrose miocárdica e a subsequente ocorrência de QRSf em várias outras entidades nosológicas em que coexista um quadro inflamatório crónico.

Neste número da Revista, Mehmet Yaman et al. publicam um artigo13 em que analisam a presença de TAE e avaliam a função ventricular numa população de indivíduos aparentemente saudáveis e divididos em dois grupos, conforme apresentam ou não QRSf nos seus traçados electrocardiográficos (ECG) de rotina. Trata‐se de uma população maioritariamente de meia idade (idade média inferior a 60 anos), na qual a função ventricular esquerda (sistólica e diastólica) foi avaliada por ecocardiografia transtorácica convencional (EcoTT), Doppler tecidular e pelo método de speckle‐tracking. Os autores observaram que o grupo com QRSf tinha uma espessura de TAE significativamente superior à apresentada pelo grupo sem QRSf. Além disso, por um lado, o grupo com QRSf apresentava um comportamento da função diastólica do ventrículo esquerdo inferior ao do grupo usado como controlo (sem QRSf); por outro lado, embora a fração de ejeção fosse normal e similar nos dois grupos (à volta de 62%), uma avaliação mais fina da função sistólica (por EcoTT com speckle‐tracking) revelava um valor de strain longitudinal global (SLG) significativamente diferente no grupo com QRSf e sugestivo de um desempenho sistólico inferior ao do grupo sem QRSf. Finalmente, a análise multivariada mostrou que o número de derivações ECG com QRSf era um fator predizente independente de um aumento do TAE.

Este é, tanto quanto sei, o primeiro trabalho em que se apresenta uma relação direta entre o aumento de TAE e a ocorrência de QRSf (o aumento da espessura do TAE estava muito significativamente relacionado com o número de derivações ECG com QRSf). E considerando que a presença de QRSf pode representar (na ausência de cardiopatia isquémica) um marcador de fibrose miocárdica (pelo menos relativamente importante), interessa então questionar se o grupo com QRSf, estudado por Yaman et al., pode ser encarado como uma amostra de parte da população dita normal.

Reanalisando os dados demográficos, verificamos que nada é referido acerca do recrutamento dos indivíduos com QRSf (duração do período de recrutamento, referenciação ou não da maioria dos indivíduos, dimensão da amostra sujeita ao rastreio ECG, específicas áreas geográficas envolvidas ou não) e das características ECG globais (nomeadamente, nada nos é referido sobre a duração média dos complexos QRS, a duração da onda P e a sua morfologia, a duração média do intervalo PQ e o intervalo QT); por outro lado, nada nos é também referido acerca do perímetro abdominal, mas, como o desvio‐padrão da média do índice de massa corporal é maior no grupo com QRSf, isso sugere que (apesar de não haver excesso de peso nesse grupo, como um todo, mas tendo ainda em conta que a maioria dos seus membros é do sexo masculino) um número não irrelevante de indivíduos poderá apresentar um certo grau de obesidade abdominal; por outro lado ainda, nada é referido sobre a uricemia dos indivíduos estudados.

Tenho poucas dúvidas de que a duração média dos complexos QRS não seja superior no grupo com QRSf, dada a presença de entalhes. Todavia, interessaria saber qual a percentagem de indivíduos que apresentava uma duração de QRS superior a 105ms (e inferior a 120ms). Uma duração superior a 105ms representa já um transtorno franco da condução intraventricular e um indivíduo com essa característica deixaria de poder ser considerado estritamente como isento de doença cardiovascular.

Com exceção do chamado bloqueio completo de ramo esquerdo – a sua presença ou o seu aparecimento agudo provocam uma variável mas franca deterioração do SLG14,15 – não há de momento dados bibliográficos acerca das modificações introduzidas no SLG pela presença de outros tipos de bloqueio intraventricular, nomeadamente os bloqueios fasciculares esquerdos e formas de bloqueio parietal.

Até recentemente, não havia valores estandardizados dos limites de normalidade do SLG, nomeadamente quando se têm em consideração os diferentes equipamentos e softwares usados. Por outro lado, no artigo de Yaman et al. nada é referido acerca dos valores de referência em adultos saudáveis usados no seu laboratório e, mais, não é feita menção a diferentes valores normais consoante o género. Todavia, está hoje assente que as mulheres têm um melhor desempenho da deformação miocárdica sistólica do que os homens, apresentando valores de SLG significativamente mais elevados16,17. Se recorrermos às recomendações feitas recentemente pela European Association of Cardiovascular Imaging (EACVI)17 e se efetuarmos uma análise ponderada dos valores médios de SLG encontrados nos grupos QRSf(+) e QRSf(‐) do trabalho de Yaman et al., fica‐se com a impressão segura de que grande parte da diferença entre as médias dos dois grupos é atribuível ao predomínio de homens (excesso de 40%) no grupo QRSf(+). Porém, deve assinalar‐se que o desvio‐padrão da média dos valores de SLG no grupo QRSf(+) é claramente mais elevado do que o registado no grupo QRSf(‐), o que significa que naquele grupo os valores são mais heterogéneos e com uma maior dispersão do que nos indivíduos sem QRSf. Em consequência – e sem olvidar a possibilidade de diferentes softwares e equipamentos poderem distorcer os resultados – quando cotejamos as médias e os desvios‐padrão encontrados para cada grupo com os limites inferiores do normal para cada género propostos pela EACVI (17) é‐nos sugerido que a grande maioria dos indivíduos do grupo sem QRSf terá apresentado valores normais e que um número relevante (mais de um terço) dos pertencentes ao grupo com QRSf terá revelado valores patológicos, inferiores aos recém‐estabelecidos limites inferiores do normal. Esses valores baixos não são explicáveis pela idade: as idades médias dos indivíduos estudados nos dois grupos situavam‐se entre os 55 e os 60 anos (e eram sobreponíveis) e, embora os valores de referência propostos pela European Association of Cardiovascular Imaging tenham sido obtidos a partir de uma população com idade média inferior a 50 anos17, e, se é verdade que o SLG diminui com a idade, as diferenças só se fazem sentir a partir dos 55 anos16.

Temos assim um grupo de indivíduos que, à primeira vista, parecem normais e saudáveis, mas que, estudados com alguma profundidade, revelam a associação de QRSf com um aumento do TAE (provavelmente associados à presença de um excesso variável de fibrose miocárdica) e, além disso, um número relevante de membros desse grupo apresenta alterações ligeiras da função diastólica e sistólica do ventrículo esquerdo (embora com fração de ejeção bem conservada). O que representam? Têm doença coronária oculta (com antigo evento coronário agudo, inaugural, que passou despercebido)? Representam formas iniciais (subclínicas) de cardiomiopatia dilatada ou alguma forma pré‐clínica tardia de cardiomiopatia hipertrófica? Terão ainda, ocasionalmente, outras patologias (em fase subclínica)? Que relação têm com as doenças degenerativas do sistema de condução intracardíaco? Ou estamos perante uma zona cinzenta, de transição nebulosa entre o estritamente normal e algo que começa a «deslizar» para o patológico? Se os indivíduos com QRSf forem normais, serão os indivíduos sem QRSf mais normais do que os outros? Ou, finalmente, estamos perante uma nova entidade nosológica, não reconhecida até agora?

Torna‐se agora claro que os indivíduos do grupo QRSf(+) têm de ser exaustivamente estudados. Em primeiro lugar, é necessário analisar o metabolismo dos uratos (a hiperuricemia parece ser um fator de risco, independente, de desenvolvimento de bloqueio intraventricular em doentes com doença degenerativa do sistema de condução intraventricular, especialmente em doentes com doença coronária grave18), avaliar e confirmar a extensão da fibrose miocárdica por tomografia axial computorizada (TAC) ou ressonancia magnética nuclear e efetuar um estudo angiográfico das artérias coronárias (por angio‐TAC ou por coronariografia convencional) a fim de excluir a presença de doença coronária significativa. Um follow‐up apertado durante dois a cinco anos poderá excluir formas de cardiomiopatia até agora em fase subclínica ou outras patologias mais raras que se podem acompanhar de QRSf e aumento do TAE. Será importante manter uma avaliação periódica ecocardiográfica (com Eco‐Doppler e EcoTT com speckle‐tracking) e eletrocardiográfica ao longo dos próximos dez anos (atendendo à idade média dos indivíduos), a fim de monitorizar a função ventricular esquerda sistólica e diastólica e o eventual aparecimento de defeitos da condução intraventricular de grau avançado.

Excluídas todas as outras causas possíveis (e eventualmente verificado o carácter paulatinamente progressivo das alterações descritas por Yaman et al.), poderemos então confirmar aquilo que vou admitir agora – estarmos perante uma entidade nosológica até aqui não reconhecida e que designarei por fibrose miocárdica lipogénica idiopática, associada a um aumento da adiposidade visceral e possivelmente pré‐determinada geneticamente.

Está aberta uma nova avenida de investigação clínica. Veremos o que acontece…

Conflitos de interesse

O autor declara não haver conflitos de interesse.

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