A hipercalcemia é uma causa conhecida de perturbações do ritmo cardíaco, contudo, a sua associação a arritmias ventriculares é rara. Os autores apresentam o caso clínico de um doente de 53 anos de idade, com cardiomiopatia dilatada de etiologia isquémica e etanólica, e grave compromisso da função sistólica global, portador de sistema de ressincronização cardíaca (CRT) com cardioversor desfibrilhador (CDI), admitido no serviço de urgência por tempestade arrítmica, com múltiplos choques de CDI apropriados, refratária a terapêutica antiarrítmica. Na investigação etiológica foi documentada hipercalcemia grave secundária a hiperparatiroidismo primário até então desconhecido. Somente após redução da calcemia se observou cessação dos episódios de taquicardia ventricular.
Hypercalcemia is a known cause of heart rhythm disorders, however its association with ventricular arrhythmias is rare. The authors present a case of a fifty‐three years old male patient with a ischemic and ethanolic dilated cardiomyopathy, and severely reduced ejection fraction, carrier of cardiac resynchronization therapy (CRT) with cardioverter defibrillator (ICD), admitted in the emergency department with an electrical storm, with multiple appropriated ICD shocks, refractory to antiarrhythmic therapy. In the etiological investigation was documented severe hypercalcemia secondary to primary hyperparathyroidism undiagnosed until then. Only after the serum calcium level reduction ventricular tachycardia was stopped.
Doente do sexo masculino, caucasiano, com 53 anos de idade e vários fatores de risco cardiovascular (hipertensão arterial, hábitos tabágicos e etanólicos marcados), com antecedentes de síndrome coronária aguda sem supradesnivelamento do segmento ST, aos 49 anos, em contexto de doença coronária grave da coronária direita média e distal, tendo sido submetido a angioplastia destas lesões, seguida de colocação de dois stents metálicos. Por persistência de grave compromisso da função sistólica ventricular esquerda (fração de ejeção biplanar de 15%), mesmo após terapêutica médica otimizada foi implantado sistema de ressincronização cardíaca auriculoventricular (CRT) com cardioversor desfibrilhador (CDI). Três anos depois, na sequência de episódio de taquicardia ventricular (TV) monomórfica com padrão de bloqueio completo de ramo direito e eixo superior, com consequente choque de CDI, seguido de dor retroesternal e elevação da troponina I (valor máximo de 1,69mg/L, cut off <0,07), foi submetido a nova coronariografia que evidenciou oclusão intra‐stent, pelo que foi submetido a nova angioplastia e colocação de três novos stents com antiproliferativo. De outros antecedentes pessoais conhecidos, a destacar doença pulmonar obstrutiva crónica tabágica, gastrite erosiva e úlcera péptica. Encontrava‐se medicado em ambulatório com losartan, bisoprolol, espironolactona, furosemida, ácido acetilsalicílico, clopidogrel, amiodarona, sinvastatina e pantoprazol.
Doente em classe II da New York Heart Association (NYHA); desde então foi novamente admitido no nosso centro hospitalar, um ano após o último internamento, por múltiplos choques de CDI, precedidos de síncope, com recuperação transitória da consciência após cada choque, com início 24 horas antes, mas mais frequentes na hora precedente à admissão. Nos cinco dias antes havia descontinuado a medicação, por dificuldades económicas, e, desde então, referia sintomas de anorexia, astenia, obstipação e desequilíbrio. À admissão hospitalar encontrava‐se consciente, orientado, sudorético, mas sem sinais de hipoperfusão periférica. O eletrocardiograma (ECG) documentou TV monomórfica com padrão de bloqueio completo do ramo esquerdo (BCRE) e frequência de 300cpm (Figura 1). Foi administrada amiodarona, bólus 300mg, e iniciada perfusão endovenosa (ev) a 4ug/kg/min, com recorrência da TV (de morfologia constante em telemetria), tendo sido administrados dois bólus de lidocaína ev (num total de 150mg), igualmente sem efeito. O doente recebeu múltiplos choques de CDI imediatamente após a chegada ao hospital, tendo o gerador entrado rapidamente em exaustão, antes que a cardiologia tivesse oportunidade de proceder à utilização de um magneto para inibir as terapêuticas. Durante os períodos de ritmo próprio o ECG documentou QRS com padrão de bloqueio completo de ramo direito, intervalo PR no limite superior da normalidade, QTc: 405mseg e sem sinais de isquemia aguda (Figura 2). Foi realizado ecocardiograma transtorácico que mostrou ventrículo esquerdo muito dilatado, com hipocinesia difusa e grave compromisso da função sistólica global. A interrogação do CRT‐D revelou vários episódios de TV nas 24 horas precedentes, com um total de 48 choques apropriados (Figura 3), encontrando‐se o gerador em End Of Life (EOL). Por insuficiência cardíaca em agravamento progressivo e manutenção de tempestade arrítimica, o doente foi entubado orotraquealmente e submetido a sedo‐analgesia com propofol e midazolam. Na avaliação laboratorial realizada na admissão, destacava‐se lesão renal aguda acute kidney injury network (AKIN) 1 (creatinina: 1,5mg/dL, ureia: 101mg/dL), ligeira hipocaliemia (K: 3,0mmol/L, 3,5‐5,1), hipercalcemia grave (cálcio: 18,5mg/dL, 8,6‐10; Ca2+: 2,46mmol/L, 1,13‐1,32), e apenas ligeiro aumento da troponina I (valor máximo documentado de 1,5mg/dL, cut off <0,07). Corrigido de imediato a hipocaliemia. Por se tratar de TV monomórfica não associada a dor ou equivalentes anginosos e não havendo no ECG basal sinais de isquemia aguda, assumiu‐se como causa da disritmia a presença de hipercalcemia grave. Com o apoio da medicina interna e endocrinologia, procederam‐se a medidas farmacológicas com vista a correção da hipercalcemia (pamidronato, ácido zoledrónico, furosemida e hidrocortisona), mas atendendo à gravidade da mesma, e refratariedade à terapêutica instituída, foi necessário iniciar hemodiafiltração venovenosa contínua (HDFVVC). Com a instituição desta medida, verificou‐se redução progressiva da frequência e duração dos episódios de TV, que se tornaram não mantidos, até cessarem por completo quando a calcemia atingiu os 15,8mg/dL. O doente foi extubado e suspendeu a HDFVVC após 48 horas, mantendo, contudo, terapêutica com furosemida (60mg dia) para manutenção de normocalcemia. A necessidade de ablação de TV foi discutida, contudo, não realizada face à ausência de recorrência disrítmica após correção da hipercalcemia.
Na investigação etiológica da hipercalcemia destacava‐se a elevação muito acentuada da paratormona (PTH: 1020pg/mL, 14‐72), com albuminemia normal (3,5g/dL, 3,2‐4,9), sugestivo de hiperparatiroismo primário (HPP), ecografia cervical com formação sólida homogénea, hipoecogénica, de limites bem definidos, em topografia ligeiramente posterior e inferior do lobo esquerdo da glândula tiroideia compatível com adenoma da paratiroide e cintigrafia das glândulas paratiroideias, com documentação de lesão funcionante da paratiroide inferior esquerda. Estes resultados não excluíam, contudo, a possibilidade de se tratar de uma lesão maligna da paratiroide. O doente foi proposto e aceite para paratiroidectomia inferior esquerda, que decorreu sem complicações. Após a paratiroidectomia verificou‐se normalização da calcemia e dos níveis de PTH pelo que suspendeu terapêutica médica para o efeito. O relatório anatomopatológico confirmou tratar‐se de adenoma da paratiroide. O facto de não ter tido hipocalcemia, nem necessidade de terapêutica com cálcio depois da paratiroidectomia, sugere que o hiperparatiroidismo era recente ou a manutenção de um hiperparatiroidismo menos grave. Da avaliação endocrinológica basal à admissão a salientar também elevação dos níveis de gastrina (2130pg/mL, 13‐115) e cromogranina A (143,5mmol/L, cut off<6) e das metanefrinas e ácido hidroxindolacético urinários (ainda que menos acentuada e já ausente na segunda colheita de urina durante o internamento, o que excluiu a hipótese de feocromocitoma). Realizada endoscopia digestiva alta com documentação de úlcera na pequena curvatura do estômago compatível com gastrite crónica e pesquisa de Helicobacter pylori positiva. A presença de HPP, história prévia de úlcera gástrica e hipergastrinemia levantou a hipótese de síndrome de neoplasia endócrina múltipla tipo 1, contudo, o doente recusou a realização de octreoscan para confirmação do diagnóstico. Após 24 dias de internamento com evolução favorável, o doente teve alta clínica sob terapêutica médica otimizada para insuficiência cardíaca. Mantém seguimento em consulta de cardiologia, sem novos eventos até à data.
DiscussãoA hipercalcemia está associada a perturbações do ritmo cardíaco, mais frequentemente prolongamento do segmento PR e do intervalo QRS com encurtamento concomitante do intervalo QT1, o que tipicamente se associa a bradicardia e não a taquicardia. Nesse sentido, a situação clínica descrita é rara e muito original. Até à data, estão descritos na literatura apenas seis casos clínicos de HPP e hipercalcemia com arritmias ventriculares associadas. O primeiro dos quais, publicado em 1988 por Chaieb et al.2, onde os autores descrevem um caso de hiperparatiroidismo e bigeminismo ventricular. Mais tarde, no ano 2000, Chang et al. relataram o caso de uma mulher, sem cardiopatia estrutural, com HPP e TV monomórfica mantida espontânea, reprodutível em estudo eletrofisiológico apenas após injeção de gluconato de cálcio e terminada com verapamil3. Em 1993, 2003 e 2004, Kerney et al.4, Kolb et al.5 e Kiewiet et al.6, respetivamente, relataram casos de TV polimórfica com degeneração em fibrilhação ventricular. O segundo caso descrito até ao momento de TV monomórfica foi publicado em 2004 por Occheta et al.7.
O mecanismo através do qual a hipercalcemia pode precipitar arritmias ventriculares não é consensual, podendo ser atribuído a fenómenos de pós‐despolarização precoce4, tardia1, ou fenómenos de reentrada secundários ao encurtamento do período refratário absoluto8. Em contexto de HPP, não só a hipercalcemia tem potencial arrítmico como também a própria PTH, podendo tal facto justificar a ocorrência de disritmias ventriculares com níveis mais baixos de cálcio do que o descrito. Estudos em coração de ratos mostraram que a PTH tem efeitos inotrópicos e cronotrópicos positivos diretos, em parte mediados pelo estímulo ao influxo de cálcio nas células do miocárdio9. A combinação de diminuição da velocidade de condução do impulso cardíaco e o encurtamento do período refratário torna assim favorável a ocorrência de mecanismos de reentrada e consequente ocorrência de arritmias ventriculares. Sabe‐se que a presença de cardiopatia pode contribuir para o desenvolvimento de eventos disrítmicos em contexto de hipercalcemia, contudo, tal relação continua por estabelecer6.
Na situação aqui apresentada, a presença de cardiomiopatia em fase dilatada de etiologia etanólica e isquémica, com cicatriz transmural e má função sistólica global, bem como a cessação farmacológica prévia e a hipocaliemia, ainda que ligeira, podem ter contribuído para a TV. Contudo, o HPP com consequente hipercalcemia é o fator de maior peso neste contexto e desencadeante primário, uma vez que a cessação dos episódios de TV só foi possível após redução significativa da calcemia, ficando o doente com normocalcemia e sem recorrência de TV após paratiroidectomia. Não se pode excluir, no entanto, que os níveis elevados de PTH não possam também ter favorecido o sucedido.
Conflito de interessesOs autores declaram não haver conflito de interesses.