As doenças do pericárdio apresentam-se como uma patologia particular do foro cardiovascular. Os seus componentes etiológicos e a gestão diagnóstica e terapêutica não estão tão bem compreendidos e estudados, comparativamente com outras áreas, como a doença coronária ou valvulopatias. Maioritariamente, a etiologia é benigna, mas a sua proporção diminui à medida que a apresentação e evolução clínicas são mais exuberantes.
Os autores descrevem um caso de um homem de 35 anos de idade, sem antecedentes clínico-patológicos de relevo conhecidos, que se apresenta num Serviço de Urgência com o que aparenta ser um episódio de pericardite aguda de etiologia idiopática. Contudo, ao longo de cinco meses, evolui desfavoravelmente, com necessidade de orientação para pericardiectomia por pericardite constritiva. Apenas no bloco operatório foi feito o diagnóstico etiológico final. Tratava-se de um caso muito raro de neoplasia primária do pericárdio, um mesotelioma.
Among cardiovascular diseases, pericardial disease has specific characteristics. Its etiology, diagnosis and medical management are not as well understood as in coronary and valvular heart disease. In most cases, its cause is benign, although the proportion decreases with more severe clinical presentation.
The authors present the case of a 35-year-old man with no relevant past medical history, who went to the emergency department with what appeared to be an idiopathic case of acute pericarditis. However, over the following five months, there was an unfavorable evolution to constrictive pericarditis, requiring pericardiectomy. The final diagnosis was only made following surgery – a rare case of a primary pericardial tumor, a mesothelioma.
As doenças pericárdicas geram frequentemente dúvidas quanto à etiologia e terapêutica, não envolvendo o consenso de outras áreas do foro cardiovascular. Contudo, o prognóstico é geralmente favorável, não sendo necessárias intervenções invasivas ou investigação extensa1.
As neoplasias primárias cardíacas malignas são raras, especialmente com origem no pericárdio, mais vezes afetado por metástases2. Assim, a «tipificação» da apresentação clínica, bem como da orientação diagnóstica e terapêutica, são dificultadas pelos poucos casos descritos na literatura2.
Caso clínicoPaciente do sexo masculino com 35 anos de idade, caucasiano, trabalhador na construção civil, sem antecedentes clínico-patológicos de relevo conhecidos e sem medicação regular no domicílio.
Em novembro de 2008, recorreu ao Serviço de Urgência por dor torácica opressiva, persistente, com irradiação para os ombros, agravada pela inspiração profunda e decúbito dorsal, sem outros sintomas acompanhantes e sem alterações ao exame físico. O eletrocardiograma revelou ritmo sinusal com supradesnivelamento côncavo do segmento ST difuso e infradesnivelamento do segmento PR nas derivações inferiores. O controlo analítico e a radiografia do tórax estavam dentro dos parâmetros normais. Com o diagnóstico de pericardite aguda de provável etiologia idiopática, o paciente foi medicado com ácido acetilsalicílico por via endovenosa, apresentando melhoria sintomática. Recebeu alta para o domicílio com prescrição de ácido acetilsalicílico e orientação para a consulta de cardiologia. Foi observado um mês depois, apresentando-se assintomático, e realizou ecocardiograma, que evidenciou derrame pericárdico de médio volume, sem mais alterações significativas. Ficou medicado no ambulatório com colquicina e ibuprofeno.
Quatro meses depois, em fevereiro de 2009, voltou ao serviço de urgência por dor interescapular pleurítica e dispneia de novo para médios esforços com 15d de evolução. O exame físico revelou auscultação cardíaca normal, auscultação pulmonar com diminuição do murmúrio vesicular e da transmissão das vibrações vocais na base direita, e turgescência venosa jugular aumentada a 45°, sem sinal de Kussmaul ou pulso paradoxal. Realizou controlo ecocardiográfico (Figura 1), que revelou função sistólica biventricular conservada, sem dilatação de cavidades, com espessamento do pericárdio e derrame circunferencial de pequeno volume, com aspeto organizado associado, sem variação significativa dos fluxos transvalvulares com os ciclos respiratórios. O eletrocardiograma mostrou evolução para inversão difusa da onda T, sem alterações dos segmentos ST ou PR. O estudo analítico foi sobreponível e a radiografia do tórax evidenciou derrame pleural basal direito de pequeno volume. Foi internado para estudo de derrame pericárdico organizado em aparente evolução para pericardite efusivo-constritiva de etiologia desconhecida.
O estudo etiológico alargado, que incluiu toracocentese, marcadores de autoimunidade, rastreio séptico (serologias infecciosas, hemoculturas e análise microbiológica de líquido pleural), prova tuberculínica e função tiróidea, foi negativo. Também realizou tomografia computorizada do tórax/abdómen/pelve, que mostrou espessamento difuso do pericárdio sem derrame significativo, adenopatias paratraqueais com 28mm de maior dimensão, de aparente natureza inflamatória, e derrame pleural bilateral, mais evidente à direita. Foi orientado para a realização de cateterismo cardíaco, no qual se observou elevação e igualização das pressões auriculares e ventriculares diastólicas (32mmHg), com curvas de pressão intraventricular em forma de «raiz quadrada» e com variabilidade respiratória sugestiva de interdependência interventricular, sem doença coronária angiográfica ou valvulopatias associadas. Não foi realizada pericardiocentese, uma vez que o derrame pericárdico não era significativo e, como tal, a «janela» de segurança para a sua realização era pequena. Clinicamente melhorado, teve alta para o domicílio com o diagnóstico de pericardite constritiva, a aguardar chamada breve para pericardiectomia eletiva. Nesse período, o paciente apresentou novo agravamento clínico com insuficiência cardíaca descompensada e episódios de dor retroesternal intensa associada a hipotensão, sendo reinternado uma semana após a alta.
Neste novo internamento, realizou duas toracocenteses terapêuticas por derrame pleural marcado (mais acentuado à direita) e colonoscopia por dor abdominal com retorragias de novo, que revelou mucosa sigmoideia friável, congestionada e sangrante, histologicamente compatível com colite isquémica.
Foi transferido para o centro cirúrgico de referência, cinco meses após o início do quadro clínico, para tentativa de pericardiectomia. Intraoperatoriamente, verificou-se a existência de um processo neoplásico fibroso e infiltrativo do coração, mais acentuado ao nível da aurícula direita e grandes vasos, o que impossibilitou a sua ressecção. Por instabilidade hemodinâmica com necessidade de suporte vasopressor e ventilatório invasivo, o paciente foi admitido na unidade de cuidados intensivos polivalentes. O ecocardiograma de controlo demonstrou depressão moderada da função sistólica biventricular com movimento anómalo do septo interventricular, derrame pericárdico de médio volume e fluxo transmitral com significativa variabilidade respiratória. O paciente acabou por falecer 3 dias depois.
O exame anatomopatológico revelou neoplasia maligna epitelioide de padrão em toalha e com áreas trabeculares, mas também áreas fusiformes (Figura 2). A análise imuno-histoquímica apresentou imunorreatividade das células neoplásicas para citoqueratina 7 e AE1/AE3 e multifocal para calretinina e citoqueratina 5, o que, juntamente com a ausência de evidência de atingimento da pleura, levou ao diagnóstico final de mesotelioma bifásico pericárdico primário.
DiscussãoAs doenças do pericárdio não são raras e, habitualmente, o diagnóstico não necessita de meios invasivos. No entanto, a identificação etiológica precisa costuma ser um desafio. As manifestações clínicas mais ligeiras como pericardite aguda ou derrame pericárdico de volume não significativo (muitas vezes, um achado acidental) têm, na sua maioria, uma origem idiopática (presumivelmente viral na sua maior proporção) e prognóstico favorável. À medida que a apresentação clínica agrava, como pericardite recorrente, derrames pericárdicos crónicos de médio-grande volume, tamponamento pericárdico ou pericardite constritiva, a etiologia idopática mantém-se ainda como a mais frequente, mas em menor proporção1. Assim, devem ser ponderadas estratégias invasivas como a pericardiocentese, pelo seu risco de complicações. Este procedimento diagnóstico (e também, por vezes, terapêutico) fica reservado aos pacientes com tamponamento pericárdico, derrame pericárdico de médio-grande volume crónico ou suspeita de etiologia grave (pericardite purulenta ou neoplasia, na presença de «janela» suficiente para a realização segura da técnica)1.
Os tumores cardíacos primários são relativamente raros, sendo os tumores secundários muito mais frequentes (20-40 vezes), ocorrendo em cerca de 15% das neoplasias malignas. Dos tumores primários, apenas 25% são malignos e o diagnóstico é, habitualmente, difícil. A ecocardiografia é a técnica de imagem principal para o diagnóstico. Todavia, outras técnicas, como a tomografia computorizada, ressonância magnética e a ecocardiografia-3D, oferecem maior acuidade2. As cintigrafias com radioisótopos também apresentam um papel diagnóstico e de estratificação, à semelhança de outras neoplasias3. O diagnóstico definitivo é sempre dado pela análise histológica2. A apresentação clínica pode ser bizarra ou, por outro lado, mimetizar etiologias benignas1.
Os mesoteliomas são tumores raros e bastante agressivos, com origem em serosas, entre as quais o pericárdio, e associados à exposição aos asbestos por mecanismos ainda não totalmente compreendidos. Apresentam fraca resposta às diversas modalidades de tratamento atualmente disponíveis, incluindo as combinadas. Contrariamente a outros tumores, não se conhece um estadio inicial não metastático. Como tal, a pesquisa de biomarcadores surge com importância reforçada para auxílio no diagnóstico precoce e orientação terapêutica. No entanto, a baixa incidência destes tumores dificulta a investigação dos defeitos moleculares associados. Apesar de terem sido identificados vários marcadores com potencial diagnóstico, prognóstico e para orientação terapêutica, tais como a osteopontina, mesotelina, metaloproteinases, fatores de crescimento ou de angiogénese, os achados na literatura não são concordantes e a sua utilização na prática clínica ainda está em evolução4.
Como seria de esperar, o mesotelioma pericárdico primário é extremamente raro (incidência estimada de 0,0022% num grande estudo com cerca de 500 000 autópsias), mas, ainda assim, o tumor pericárdico primário mais comum5. Pode apresentar-se como uma massa localizada ou difusa, estando descritos três tipos histológicos: epitelioide, fusiforme e bifásico (quando ocorrem os tipos epitelioide e fusiforme simultaneamente)6. Ao contrário dos mesoteliomas pleurais, não tem sido encontrada uma relação sustentada com a exposição aos asbestos, como no caso particular deste caso clínico6.
Poucos casos têm sido descritos na literatura e é infrequente o diagnóstico antemortem3. Parece ocorrer um predomínio de incidência no sexo masculino (3:1) e entre a quinta e sétima décadas de vida, apesar de já existirem casos descritos em idades extremas7. A apresentação clínica pode atravessar todo o espectro de manifestações das doenças do pericárdio, desde as mais ligeiras até ao estadio final de pericardite constritiva8. O mesotelioma pericárdico apresenta fraca resposta à radioterapia. A quimioterapia pode reduzir a massa tumoral, mas apenas a ressecção cirúrgica pode ser curativa nas formas localizadas9,10. Todavia, o prognóstico é péssimo, já que a apresentação clínica é geralmente tardia. A sobrevida mediana é de apenas seis meses após o início de sintomas, podendo a pericardiectomia (frequentemente parcial) ser paliativa na presença de pericardite constritiva3.
No caso deste paciente, a ressecção foi incompleta, pelo que não foi possível resolver a instabilidade hemodinâmica. Também interpretamos a ocorrência de colite isquémica em provável contexto de má perfusão, embora consideremos não ser possível excluir evento embólico no contexto de malignidade.
ConclusãoAo contrário da maioria dos casos de doença pericárdica, este demonstra a evolução clínica desfavorável de um paciente jovem após um episódio de pericardite aguda. O diagnóstico final foi apenas realizado por análise histológica após ressecção cirúrgica parcial e o paciente ter falecido.
A suspeição de causas malignas nas doenças do pericárdio deve ser maior quando os pacientes apresentam evolução clínica desfavorável e refratária à terapêutica instituída. Mesmo utilizando as diversas técnicas de imagem atualmente disponíveis, só o exame histológico pode dar o diagnóstico definitivo e, nesse sentido, a análise do líquido pericárdico após pericardiocentese pode ser elusiva.
Responsabilidades éticasProteção de pessoas e animaisOs autores declaram que para esta investigação não se realizaram experiências em seres humanos e/ou animais.
Confidencialidade dos dadosOs autores declaram ter seguido os protocolos de seu centro de trabalho acerca da publicação dos dados de pacientes e que todos os pacientes incluídos no estudo receberam informações suficientes e deram o seu consentimento informado por escrito para participar nesse estudo.
Direito à privacidade e consentimento escritoOs autores declaram que não aparecem dados de pacientes neste artigo.
Conflito de interessesOs autores declaram não haver conflito de interesses.