Os fatores psicossociais afetam significativamente o risco cardiovascular, de modo comparável à hipertensão e à obesidade abdominal1.
Também as reações emocionais, por vezes graves, podem ser desencadeadas por síndromes coronários agudos (SCA)2,3. Um evento cardíaco agudo ou uma hospitalização súbita em unidade de cuidados intensivos poderão assustar e causar stress4. Estudos realizados após enfarte do miocárdio determinaram scores elevados de depressão e ansiedade, 31 e 26%, respetivamente, antes da alta2 e um e dois anos depois2,3. A importância destes valores resulta do facto de a depressão e a ansiedade terem um valor preditivo independente para reenfarte5, o que se relaciona com múltiplos mecanismos fisiopatológicos, como hiperatividade do sistema nervoso simpático e do eixo hipotálamo‐hipofisário‐suprarrenal, alterações da função plaquetária, inflamação e disfunção endotelial, entre outros6–8.
Alguns estudos demonstraram uma forte associação entre um evento major de stress e a incidência de enfarte ou mortalidade cardíaca. O risco de morte cardiovascular aumenta nas semanas seguintes à morte de um ente querido9,10, imediatamente após um ataque terrorista11, uma catástrofe natural12 ou um jogo importante de futebol13,14.
No Hospital de Santa Marta, verificámos através da avaliação psicológica dos doentes com enfarte do miocárdio que em mais de 50% dos casos existia um evento causador de stress agudo: divórcio, morte de familiar próximo, mudança de casa, reforma, mudança de trabalho (Abreu et al., dados não publicados, apresentados no Congresso Português de Cardiologia 2010). Estes doentes, à partida, têm fatores causais de ansiedade e depressão que não desaparecem com o enfarte. Poderemos especular que, além do stress agudo causado pelo enfarte, todos estes fatores predisponentes poderão agravar o estado emocional.
Doentes com depressão ou ansiedade tiveram mais internamentos no ano após enfarte15 e os deprimidos retornaram menos ao trabalho ou reduziram o horário16.
O impacto negativo no prognóstico da doença exige a identificação e tratamento correto e atempado dos problemas emocionais consequentes do síndrome coronário agudo.
Benefícios e limitações da intervenção psicológica breve após síndrome coronário agudoPresentemente, qualquer programa de reabilitação cardíaca (RC) deve considerar o componente psicológico como central, distanciando‐se do passado, em que os programas se dirigiam fundamentalmente ao treino de exercício (exercise‐based cardiac rehabilitation)17. A RC, como processo estruturado de intervenção multidisciplinar, abrangente, envolvendo as vertentes funcional, nutricional e psicossocial, e visando otimizar o estado físico e psíquico do doente cardiovascular após evento agudo, é o meio excelente para atingir este objetivo, através de estratégias diversas. Sabemos que intervenções adequadas podem modificar as consequências comportamentais e emocionais de um evento cardíaco agudo. Programas de RC com componente psicológica mostraram benefícios significativos na morbilidade e mortalidade após SCA18,19, contudo, infelizmente, doentes com problemas psicológicos integram menos os programas de RC20.
As intervenções educacionais podem afetar favoravelmente o estado psicológico do doente, reduzindo a ansiedade, o medo, as conceções erradas sobre doença cardíaca isquémica e suas consequências e aumentando a motivação para a mudança de hábitos e para a aderência terapêutica. É fundamental discutir com os doentes as suas preocupações, medos e crenças de saúde. O aconselhamento individual é mais específico e cobre apenas os problemas e fatores de risco presentes naquele doente. Reuniões de grupo permitem aos doentes cardíacos partilhar as suas preocupações comuns, fornecer suporte mútuo, obter informação educativa e receber orientações referentes a retorno progressivo às atividades21,22.
O artigo «Intervenção psicológica na fase I da reabilitação cardíaca pós-síndroma coronária aguda»23 visa avaliar a eficácia da ação sobre o aspeto psicológico do doente com SCA, nomeadamente enfarte do miocárdio, durante o internamento.
Neste estudo foram aplicados dois questionários traduzidos em português, HADS24 e IPQ‐B25, cuja validade foi previamente demonstrada26,27, para avaliar respetivamente a adaptação emocional e as representações de doença em três sessões de duração curta: nos primeiros três dias de internamento (1h15min), pré‐alta (1h15min) e ao um mês após alta (20min).
As características clínicas e demográficas dos doentes nos grupos intervenção e controlo foram sobreponíveis, sendo contudo mais jovens os doentes intervencionados que mostraram melhoria. Como acontece em geral nos SCA, a percentagem de homens incluídos foi superior à das mulheres, correspondendo neste caso a 70%.
Os resultados mostraram que a ansiedade, a depressão e as representações de doença melhoraram significativamente no grupo submetido a intervenção psicológica, comparando com o grupo de controlo. Estas alterações mantiveram‐se ou melhoraram no follow‐up de um e dois meses, enquanto se verificou uma deterioração no ajustamento psicológico no grupo controlo. Os autores concluíram que a intervenção psicológica breve durante a hospitalização por SCA, aliada ao tratamento médico convencional, pode ter efeitos positivos em termos de adaptação psicossocial, cujo impacto prognóstico está amplamente demonstrado. Seria importante termos um follow‐up mais alargado para determinar se as alterações verificadas se mantêm a longo prazo, sendo esta uma limitação do estudo, também considerada pelos autores. O valor de um efeito a curto prazo será provavelmente inferior ao de um efeito sustentado no tempo.
Um aspeto que não está explícito no artigo é o da terapêutica ansiolítica, antidepressiva e sedativa. Doentes ansiosos ou deprimidos acabam por ser frequentemente medicados com fármacos que lhes melhoram estes estados. O efeito farmacológico poderá ser independente do efeito da intervenção psicológica a que foram submetidos. Não sabemos se os doentes no grupo de intervenção tomavam medicação diferente em quantidade ou qualidade, relativamente ao grupo controlo. O conhecimento deste aspeto seria fundamental para entender o papel independente da intervenção psicológica.
Apesar de não terem sido avaliados outros outcomes, como novo SCA ou internamento de causa cardíaca, intervenção coronária ou aderência à terapêutica farmacológica/exercício, o facto de ocorrer diminuição de ansiedade/depressão aponta para uma melhoria no prognóstico. Quer a ansiedade quer a depressão têm valor independente bem estabelecido no risco cardiovascular após SCA28–32.
Vários investigadores sugerem, conforme realçado pelos autores do trabalho em análise23, que o estado emocional e as representações de doença necessitam ser avaliados precocemente como forma de otimizar a aderência e os benefícios da RC, promovendo melhor adaptação psicossocial no período pós‐SCA33–36. Sabemos que as crenças dos doentes acerca da sua doença e do tratamento são fatores preditivos dos outcomes clínicos e psicológicos pós‐alta. Elevados níveis de suporte social servem de travão ao impacto da depressão sobre a mortalidade em doentes com enfarte do miocárdio37.
As evidências na literatura apontam para a necessidade de intervenções clínicas especificamente dirigidas aos aspetos psicológicos envolvidos na aderência ao tratamento cardiológico e na modificação do estilo de vida. As estratégias cognitivo‐comportamentais, especificamente direcionadas para a modificação comportamental, parecem ser os métodos de escolha38. Será importante flexibilizar as abordagens de terapia em função das necessidades de diferentes tipos de doentes39.
Apesar de todos os benefícios da intervenção psicológica precoce, coloca‐se de imediato a questão do tempo de internamento. Atualmente, a maioria dos doentes com SCA internados em serviços de cardiologia são submetidos a cateterismo diagnóstico e a intervenção coronária, com alta aos 3‐5 dias após evento não complicado. A avaliação e intervenção psicológica são realizadas já fora dos cuidados intensivos. Do ponto de vista prático, se um doente tiver um SCA e entrar no serviço de cardiologia a uma sexta‐feira à tarde, poderá de imediato ser submetido a intervenção percutânea coronária e ter alta na segunda‐feira seguinte, caso não existam complicações. Parece mais plausível, pelo menos em parte dos casos, realizar a intervenção psicológica na fase de ambulatório precoce. Contudo, quando possível, a intervenção durante o internamento tem a vantagem de preparar o doente para a fase seguinte da reabilitação.
A intervenção reabilitadora deverá ser diferente, consoante a fase em causa: internamento (fase 1), ambulatório precoce (fase 2) e manutenção (fase 3).
Na fase 1, o aspeto de modificação do estilo de vida deve ser considerado desde logo, após avaliação cuidadosa, de modo diretivo, mas não agressivo e tranquilizante. Nesta fase, a RC e em particular a intervenção psicológica têm algumas limitações, sendo, conforme já referido, breve e encontrando‐se o doente muitas vezes «em estado de choque», consequência de stress agudo, sobretudo quando desconhece a existência de doença coronária ou é jovem. Neste estado, o doente poderá não se lembrar mais tarde do que lhe foi dito ou transmitido no internamento. Esta fase de internamento encerra medo e insegurança, pelo que o doente necessita verdadeiramente ser tranquilizado, genericamente informado e motivado para um acompanhamento, após alta hospitalar, pela equipa multidisciplinar da RC, nomeadamente por psicólogo. O apoio psicológico poderá ser particularmente importante em vários casos. Maioritariamente na fase de ambulatório precoce, o ensino de modificação de estilo de vida e controlo de fatores de risco e a intervenção psicológica deverão ser realizados gradualmente, sem excesso de informação e sem pressão, seguindo a norma «uma coisa de cada vez». Um aspeto fundamental da intervenção precoce relaciona‐se com aderência à terapêutica. Sabemos que estados psicológicos de depressão, ansiedade ou stress agudo, se associam a menor aderência à terapêutica, quer farmacológica quer não farmacológica40.
Nem todos os doentes que têm enfarte irão necessitar do mesmo tipo de intervenção. Estes deverão ser avaliados e posteriormente intervencionados, de acordo com o resultado da avaliação. Também, tal como acontece com outras terapêuticas, nem todos os doentes respondem de igual modo, desconhecendo‐se quais as melhores intervenções para os vários grupos de doentes. Estas devem seguramente ser individualizadas, tal como já se prevê para os programas de treino de exercício da RC.
Além destes considerandos, convém salientar que, na prática, os recursos humanos são limitados, pelo que em muitos centros uma criteriosa avaliação psicológica na fase de internamento poderá ajudar a selecionar quais os doentes que mais poderão beneficiar desta intervenção psicológica. Devido à desproporção entre número de psicólogos e de doentes, em muitos centros deverá existir uma triagem inicial por cardiologista/enfermeiro, orientando os doentes para o psicólogo, sempre que necessário.
Em Portugal, nos últimos inquéritos nacionais de RC da Sociedade Portuguesa de Cardiologia41,42, em apenas 3% (2009)41 e mais recentemente em 8% (2014)42 dos SCA, os doentes foram reabilitados (fase 1, 2 ou 3). A fase 1 encontrava‐se apenas em 31%41 e, posteriormente, em 40%42 dos centros. O componente psicológico estava contemplado em 43% dos programas de RC41, tendo aumentado para 61%42. Apesar da melhoria nos últimos anos, a acessibilidade à avaliação e intervenção psicológica breve no internamento, inserida em programa de RC, fica restrita a poucos centros em Portugal (não superior a 40% dos centros).
A possibilidade de intervir precocemente após SCA passa pela existência de psicólogos nos centros hospitalares e nas equipas de RC, em número suficiente e com disponibilidade para sistematicamente levar a cabo esta intervenção.
Comentário finalDe acordo com o estudo em comentário23 e com a informação presente na literatura é importante a avaliação e intervenção psicológica precoce nos SCA, com a vantagem demonstrada no presente estudo do baixo custo e curta duração, não dispendendo muito tempo de trabalho hospitalar, o que é sobretudo importante em meios com escassos recursos humanos e económicos. Esta intervenção deve ser sempre adaptada individualmente e inserida num programa de RC. A inclusão do doente no programa de RC e sua aderência são, na verdade, aumentadas pela própria intervenção psicológica, uma vez que doentes deprimidos aderem menos à RC. É, pois, importante reforçar a mensagem de não minimizar o papel da intervenção psicológica após SCA.
Poderá ser interessante em estudos futuros comparar os benefícios de uma intervenção breve e precoce com os de uma intervenção realizada apenas após a alta e mais prolongada, com avaliação em ambos os casos dos efeitos a longo prazo.
Conflito de interessesO autor declara não haver conflito de interesses.