A comunicação intercoronária ou arcada coronária é uma anomalia rara da circulação coronária de etiologia congénita. Apresentamos o caso de um homem de 65 anos com dor torácica atípica com quatro meses de evolução. O ECG e o ecocardiograma não evidenciavam alterações. Realizou prova de esforço que foi interrompida no pico de esforço máximo por salvas de extrassístoles ventriculares consecutivas, sem alterações ST‐T significativas. A coronariografia não revelou estenoses coronárias significativas, contudo observou‐se uma continuidade entre as artérias circunflexa e coronária direita, compatível com arcada coronária. A importância funcional desta anomalia não está esclarecida, porém, poderá causar isquemia miocárdica através de um fenómeno de roubo coronário ou funcionar como um bypass natural e, eventualmente, exercer um papel protetor do miocárdio, caso se desenvolva aterosclerose significativa.
Intercoronary communication or ‘coronary arcade’ is a rare congenital coronary anomaly. We present the case of a 65‐year‐old man with atypical chest pain for four months. The 12‐lead ECG and echocardiogram were normal. Treadmill exercise testing was interrupted at peak exercise due to consecutive salvos of ventricular premature beats, without significant ST‐T changes. Coronary angiography showed no significant coronary stenosis, but a connection between the right coronary and circumflex arteries was observed, consistent with coronary arcade. The functional importance of this variant is not clear, but it may cause myocardial ischemia by coronary steal or function as a natural bypass, in which case it may play a protective role in the myocardium if significant atherosclerosis develops.
A coronariografia é frequentemente utilizada para a avaliação de doença coronária isquémica que advém, na maioria dos casos, de aterosclerose coronária1. O conhecimento da normal anatomia da circulação coronária, bem como das anomalias e variantes congénitas associadas, é fundamental para uma adequada abordagem dos doentes. Na população geral, a prevalência das anomalias congénitas coronárias é cerca de 1‐2%2,3. A apresentação clínica destas anomalias é variável, podendo apresentar‐se como clinicamente silenciosas ou causar situações potencialmente ameaçadores à vida, como enfarte agudo do miocárdio ou morte súbita4. As anastomoses entre artérias coronárias normais são uma anomalia congénita rara da terminação coronária, com uma prevalência estimada de 0,05% nas coronariografias diagnósticas5. Esta anomalia da circulação coronária resulta de uma malformação congénita, não devendo ser interpretada como circulação colateral secundária a doença coronária obstrutiva6.
Caso clínicoApresentamos o caso de um homem de 65 anos de idade, observado em consulta de cardiologia por dor torácica atípica (tipo «moedeira», sem relação fixa com os esforços, durando poucos minutos) com quatro meses de evolução. Como fatores de risco cardiovascular apresentava tabagismo, dislipidemia e obesidade. O exame físico, o ECG e o ecocardiograma eram normais. Na prova de esforço verificou‐se ectopia ventricular muito frequente, com salvas de extrassístoles ventriculares consecutivas de morfologia variada, tanto no pico de esforço, como durante o início da recuperação. No entanto, não foram observadas alterações ST‐T significativas (Figura 1). O doente foi referenciado para realização de coronariografia que evidenciou artérias coronárias com irregularidades, mas sem estenoses significativas. A injeção seletiva na coronária esquerda revelou a visualização simultânea da porção distal da coronária direita, por enchimento retrógrado, através de uma conexão intercoronária entre a circunflexa (CX) e a coronária direita (CD) (Figura 2). A coronariografia direita evidenciou o preenchimento da circunflexa e da descendente anterior, através da mesma conexão (CD – CX), ao nível da crux (Figura 3). A variante da circulação coronária observada foi compatível com a descrição de continuidade coronária ou arcada coronária. Posteriormente, o doente realizou um Holter que evidenciou ritmo sinusal de base, com extrassistolia supraventricular ocasional, 120 extrassístoles ventriculares polimórficas isoladas e um par. Atualmente, o doente encontra‐se medicado com bloqueador‐beta e está assintomático.
Injeção seletiva na coronária esquerda (A – projeção OAD 10°, cranial 40°; B – projeção OAE 45°, cranial 25°), visualizando‐se parcialmente o segmento distal da coronária direita e a descendente posterior, através de uma conexão intercoronária com a circunflexa, ao nível da crux (seta).
Coronariografia direita (A – projeção OAE 20°, cranial 20°; B – projeção OAD 30°) evidenciando a conexão entre a coronária direita e a circunflexa (seta). A projeção no painel A relembra uma «arcada coronária» e a projeção no painel B permite a delineação do sulco auriculoventricular, com as aurículas para a esquerda e os ventrículos para a direita da imagem.
As alterações congénitas da normal anatomia coronária são designadas como variantes da normalidade ou anomalias das artérias coronárias. As variantes da circulação coronária são uma alternativa ao padrão normal, com características morfológicas relativamente frequentes, observando‐se em mais de 1% da população. Contrariamente, as anomalias da circulação coronária, representam alterações morfológicas infrequentes, observadas em menos de 1% da população7. As anomalias e as variantes da circulação coronária podem ser divididas em quatro grupos principais: anomalias da origem, do percurso, da terminação e intrínsecas8.
A continuidade intercoronária ou arcada coronária é uma anomalia coronária rara da terminação em que existe uma comunicação/circulação aberta com fluxo bidirecional entre duas artérias coronárias principais. Na literatura, estão descritos dois tipos: um localizado no sulco auriculoventricular posterior entre a coronária direita e a circunflexa e outro no sulco interventricular, entre a descendente anterior e a descendente posterior9.
Ao contrário das colaterais, que estão frequentemente associadas a estenoses significativas das coronárias, as arcadas coronárias visualizam‐se em vasos coronários angiograficamente normais. As comunicações intercoronárias têm a camada muscular bem desenvolvida, diâmetros superiores (≥1mm), são extramurais e menos tortuosas, quando comparadas com as colaterais10.
Presume‐se que esta anomalia da circulação coronária seja congénita, resultando da persistência do padrão fetal da circulação coronária. Foi sugerido que um desenvolvimento embrionário imperfeito levaria a que o canal coronário permanecesse proeminente e de grande calibre11.
A prevalência exata desta entidade é desconhecida. No nosso hospital foram identificados dois casos em 9388 coronariografias realizadas nos últimos dez anos (0,02%), resultados consistentes com os encontrados na literatura12.
A importância funcional desta anomalia ainda não está esclarecida. Por um lado poderá funcionar como um bypass natural e exercer um papel protetor do miocárdio, caso se desenvolva aterosclerose ou aterotrombose significativa6. Por outro lado, foi também sugerido que as comunicações intercoronárias possam ser causa de isquemia miocárdica, através de um fenómeno de roubo coronário, resultando em perfusão inadequada. Esta possibilidade tem sido proposta principalmente quando o fluxo da comunicação intercoronária parece ser unidirecional na coronariografia13. No nosso caso, o fluxo era bidirecional, uma vez que a injeção de contraste tanto na coronária direita como na coronária esquerda levava ao preenchimento da artéria contralateral.
De forma relevante, em todos os casos descritos na literatura os doentes apresentavam dor torácica apesar da evidência laboratorial de isquemia ter sido quase sempre inconclusiva. Podemos especular que a dor torácica e as alterações eletrocardiográficas encontradas na prova de esforço do nosso doente possam ser consequência de distúrbios transitórios do fluxo coronário6.
Responsabilidades éticasProteção de pessoas e animaisOs autores declaram que para esta investigação não se realizaram experiências em seres humanos e/ou animais.
Confidencialidade dos dadosOs autores declaram que não aparecem dados de pacientes neste artigo.
Direito à privacidade e consentimento escritoOs autores declaram que não aparecem dados de pacientes neste artigo.
Conflito de interessesOs autores declaram não haver conflito de interesses.