A fibrilhação auricular (FA) é um importante problema de saúde pública, com uma prevalência estimada em Portugal de 2,5% na população maior de 40 anos, de acordo com os dados do estudo FAMA, publicado em 20101. No mesmo estudo, apenas 37,8% dos doentes se encontravam medicados com antagonistas da vitamina K (AVK).
Uma das principais limitações ao uso crónico dos AVK na prevenção do tromboembolismo é a estreita janela terapêutica existente com estes fármacos, em muitos casos facilmente oscilando entre diminuição da proteção quando abaixo do intervalo terapêutico e risco hemorrágico quando acima daquele. A dificuldade em manter os doentes dentro de intervalos terapêuticos adequados (calculados pelo time in therapeutic range [TTR]) prende‐se às inúmeras interações e complexidade do metabolismo da varfarina. Entendendo‐se como ideal um TTR de >70%, esse é um valor raramente atingido, mesmo em contextos de grupos especialmente controlados. Assim, nos grandes ensaios clínicos que estabeleceram os anticoagulantes orais diretos, os TTR nos grupos de doentes do braço varfarina eram de 66% no RELY2 (versus dabigatrano), 55% no ROCKET‐AF3 (versus rivaroxabano), 62,2% no ARISTOTLE4 (versus apixabano) e 64,9% no ENGAGE5 (versus edoxabano).
Um estudo conduzido no Reino Unido, em doentes com FA incluídos na base de dados do UK General Practice Research, envolveu 27458 doentes tratados com varfarina e 10449 doentes sem terapêutica antitrombótica. O TTR médio dos doentes tratados foi de 63%. Todavia, a redução do risco mantém uma clara proporcionalidade à eficiência do controlo da coagulação com os AVK e assim, neste mesmo estudo, a redução do risco de AVC entre o grupo com TTR acima de 70% e abaixo de 30% foi de 79%6.
Além disso, o risco hemorrágico é também proporcional ao nível de anticoagulação atingido, sendo especialmente importante quando o International Normalized Ratio (INR) está acima de 4, sobretudo nos primeiros três meses de terapêutica7,8.
Nos dados divulgados por Luís Cunha, referentes à casuística do Serviço de Neurologia dos HUC no primeiro trimestre de 20119, 37,3% dos AVC foram cardioembólicos, 95% dos quais em contexto de FA. Nestes, apenas 34,7% estavam medicados com AVK e só 11% tinham o INR dentro de intervalos terapêuticos.
Num estudo observacional que envolveu todos os utentes com idade igual ou superior a 30 anos, inscritos em oito unidades de saúde familiar de Vila Nova de Gaia, com diagnóstico de FA, publicado já em 201510, a prevalência de FA era menor que a referida no estudo FAMA (1,29 versus 2,5%) e apenas 56,8% dos doentes com indicação para anticoagulantes orais estavam tratados com esta terapêutica.
O estudo de Marta Guedes e Catarina Rego, publicado no presente número da Revista Portuguesa de Cardiologia11, foi efetuado nas 26 UF que têm programa de hipocoagulação oral (73% do total) dos ACeS Espinho‐Gaia e ACeS Gaia.
Versam 5883 registos correspondentes a 479 doentes com FA não valvular e encontrando‐se sob hipocoagulação oral crónica com AVK. O TTR médio foi de 67,4%, variando entre 55,6‐79,5% nas várias unidades.
Os resultados apresentados ombreiam com os melhores publicados no mundo. De facto, como exemplo, na análise feita ao grupo controlo do estudo ROCKET‐AF12, o TTR individual (iTTR) foi de 66% na Europa Ocidental e de 65,8% no Canadá/EUA. Há mesmo unidades com os melhores valores reportados (valores médios de iTTR da Suécia, país líder neste campo, de 75% neste grupo).
Estes resultados mostram bem o que um grupo motivado e focado pode fazer de diferente e melhor. Fica demonstrado que um programa de hipocoagulação bem executado pode, também em Portugal, lograr níveis de eficiência muito altos. No entanto, esta realidade da região de Gaia contrasta com dados portugueses mais recentes, nomeadamente os do estudo SAFIRA13, apresentados no último Congresso Português de Cardiologia e referentes à população mais sénior (acima de 65 anos). Nesse estudo, que incluiu 7500 doentes com mais de 65 anos, seguidos em cuidados de saúde primários, hospitais distritais e terceiro setor. A prevalência global de FA foi de 9%, com apenas 43,7% dos doentes tratados com anticoagulantes (cerca de 2/3 dos quais com AVK e 1/3 com anticoagulantes orais diretos). Nos doentes medicados com AVK, o TTR médio foi de 41,7%. Parece‐nos que este é mais o retrato do mundo real, em sintonia, aliás, com a experiência que vamos acumulando na coordenação de programas de hipocoagulação.
O critério de inclusão adotado no estudo de Marta Guedes e Catarina Rego foi o de terem, pelo menos, seis visitas com registos de INR no ano de 2014. Trata‐se de uma avaliação pulsada de um registo retrospetivo, sem informação longitudinal. Não sabemos, portanto, a data de início de ACO/tempo de duração da ACO. Além disso, é importante ter informação da permanência dos doentes no programa ao longo do tempo, conhecida que é a elevada taxa descontinuação da terapêutica anticoagulante habitualmente referida (20‐25% nos ensaios clínicos dos anticoagulantes orais diretos – ACOD).
De todo o modo, os resultados são impressivos.
Muitos reclamavam que, em doentes bem anticoagulados com AVK (TTR>70), as potenciais vantagens dos novos ACOD se perderiam em termos de eficácia clínica. Não parece, todavia, ser o caso. Apesar de que os melhores resultados com ACOD se obtêm nos grupos com TTR mais baixos14, o certo é que o efeito do tratamento com os diversos ACOD, em comparação com a varfarina na prevenção do cardiotromboembolismo, foi sempre consistente nos diferentes patamares de TTR15,16.
Seria útil confrontar a metodologia do grupo de Gaia com a usada noutras regiões com piores resultados, de forma a introduzir nestas as melhorias apropriadas. A otimização organizativa e logística dos programas de acompanhamento dos doentes tratados com AVK certamente terá impacto clínico favorável. No entanto, mesmo em confronto com programas como o de Gaia, com tratamento otimizado com AVK, os ACOD mantêm, em minha opinião, a primazia na opção terapêutica, mesmo se em subgrupos de equivalência clínica: pela comodidade, pela menor taxa de hemorragias intracranianas, pela quase ausência de interferências alimentares e até pela demonstrada boa relação custo‐eficácia17, já que a questão do antídoto é um problema já resolvido para um deles e em vias de resolução para os restantes.
Conflito de interessesO autor declara não haver conflito de interesses.